Alma desdobrada, capítulos 213, 214. 215 e 216.
213.
saio do apartamento, indo para a chácara. sofro. isto foi ontem à noite. estou frustrado porque pretendia amar Z… até o seu orgasmo, mas ele não quis habitar o país do orgasmo, conduzido por mim. eu, que teimava em dirigir seus passos.
resolvo rodar o carro, encontro um adolescente belo, macio, morto como um viciado. ele entra no carro. sua fala é cortada por palavras que nunca dirão a metade do que pretendem. ele aceita meu convite, que convite é esse? não uso a palavra trepar, não falo em foda, apenas perguntei se ele queria ir num lugar comigo. como eu já segurava seu sexo em ereção, ele entendeu a mensagem. pretendeu fazer um pacto que não ficou claro, tive que traduzi-lo, entendo, você não quer dar, só quer comer, é isto?, tudo bem, digo; cada qual sabe do que gosta.
abraçados, nus, ele se entrega ao meu entregar-me. aqueço-o, descubro seus pedaços maiores de excitação, é uma agradável troca de prazer. seu orgasmo vem antes, ele participa do meu.
no meio da noite escura, criatura, você sem nome, e nos entendemos na hora do prazer! a quem estariam destinados todos os nossos carinhos? a quem amaria você? você amaria a alguém?, adolescente semimorto!
você me pergunta por bola, não sei o que é isto, não se faça de inocente!, você fala em maconha?, claro!, não tenho, não transo nada disto, se incomoda se eu puxo uma?, claro que não, você sabe o que faz.
sou viciado!, cara! enquanto prepara o cigarro. me conta que tem pé de maconha no local de trabalho, uma padaria onde também mora. os donos sabem, mas fingem não saber.
eu o levo pelas ruas, enquanto ele traga sua fumaça fétida. o carro recende forte, eu abro todos os vidros. insiste em me ver de novo, marco sexta-feira, mesma hora, mesmo lugar, sabendo já que não irei ao encontro. ele tosse, tosse muito, se cala.
adolescente macio, foi bom ter você dentro de mim porque, enquanto você buscava o seu prazer, você não se amarrou a nenhuma ponte de moral ou culpa. seu corpo era um só vôo que tentava a sincronia com o meu vôo. voamos alto, fomos às esferas superiores, e voltamos à terra da polícia e das pessoas sem nenhuma liberdade.
todavia, sua liberdade é pequena para mim, a casa de seu espanto é apertada para meus gestos pretensiosos, sua loucura é a de um anjo abatido diante de minha fúria de todos os deuses pagãos.
não, não tenho a quem me dar de verdade.
usei sua carne cor de rosa para amaciar minha dor. consegui transferi-la para depois. no transferir-se, ela amainou um tanto.
é preciso saber resistir à dor absoluta.
214.
o choro pode vir a ser uma forma de orgasmo. libertário, irrefreável, anárquico, absoluto. erupção necessária para que, em seguida, o vulcão tenha seu provisório adormecer.
215.
que tenho eu ainda a falar de música? a música é o mais estranho dos convívios. encontramos abertas as portas dessa casa, entramos, um pouco compelidos por nosso desejo de autocontemplação, um pouco sugados por essa anfitriã que nos absorve a vontade de defesa. frágeis como recém-nascidos, imensos como titânicos tiranos, eis-nos então na casa da música, com seus corredores sinuosos e sugestivos, a nos mostrar sensações não compreendidas.
não sei de onde a idéia, a música me é um útero. colorido, cálido, premeditando com vigor uma nova expulsão, mas dando a segurança inteiriça de que fomos realimentados.
por que confundo música com mãe? porque elas não precisam de palavras? porque elas nos envolvem e ao seu toque nos fortalecemos? como a terra fazia ao seu filho gigante, qual mesmo o nome dele? porque, na mistura de sons, a música se confunde com o universo?
seria por isso que as madonas-mães-fêmeas estão presentes nas artes de todos os povos e de todos os tempos?
não estou conseguindo escrever sobre os nós que ligam as idéias, apenas apresentar pedaços de idéias.
216.
meu pai, meu pai, bom e ótimo e grande foi para mim que não te confundi com deus, mas com o diabo. só assim pude redimir-me da doença do monoteísmo crédulo, insano, soberbo e idiota. meu mundo foi virado ao avesso e na busca por justificar o negativo, eu me fiz mais amplo.
não tenho medo do diabo. tenho pena desse confuso deus de todas as gentes.
numa linguagem psicanalítica, dá pra dizer que amei meu pai num período de primeiríssima infância. de repente deixei de vê-lo e a mulherada da família passou a atribuir a ele um papel de demônio. isto, porque ele de rico virou pobre e dependente. as irmãs mais velhas tiveram que assumir a responsabilidade de criar os menores.
durante todo esse período, meu pai me foi indiferente. eu passei, todavia, a me interessar pelos vampiros, pelos demônios, pelos deuses pagãos. meu primeiro livro se chamou caim e era uma tentativa de aliviar a culpa do primeiro homicida. recentemente, minha tia natália principiou por limpar a imagem negativa da figura paterna. sua pobreza não adveio da bebida, mas de ser avalista em empréstimos a amigos, que não pagaram a dívida, o que comprometeu o seu patrimônio. quem sabe a bebida tenha impedido que ele reagisse com determinação.
a terapia me fez ver que meu pai me amou e que eu o amei. foi a única figura do passado que me deixou como lembrança total uma paisagem paradisíaca, sem unhas ou dentes ou arestas de inferno.
meu universo já está completado. a linha de meu destino não pára no ponto zero. se estende do menos infinito ao mais infinito.
as coisas começam a se fechar. deus e o diabo, meu pai e minha mãe, minha sexualidade. quando eu temia o pecado, temia desagradar a deus. teria eu escolhido uma sexualidade que fosse demoníaca? de jeito nenhum! minha sexualidade está inserida na evolução das espécies como manifestação possível de uma forma específica de vida: a da espécie humana.
berrem os líderes religiosos!, esses pobres coitados com viseiras de burro e cangas de búfalo a lhes pesar nos ombros e nas almas, enquanto eles trilham as vias do não aprendizado, com soberba nos gestos e arrogância nos corações. serão esses os que vão atirar a primeira pedra?
estas coisas não me perturbam por agora. meu orgasmo é mais importante que sua causa. meu amor é mais importante que sua história.
quantos homens habitam cada homem?