Alma desdobrada, cap. 232, 233, 234, 235, 236, 237 e 238.

Alma desdobrada, capítulos 232, 233, 234, 235, 236, 237 e 238.

 

232.

          mãe, uma vez que você se me negou, a quem teria eu elegido para cobrir-me do frio?, cantar-me no sem sono?, limpar-me o suor diante da injustiça?, consolar-me nas pequenas fraquezas do meu cotidiano?

          não sei! não sei!

          quando escolho no meio das gentes um adolescente a quem proteger e a me satisfazer uma distante ânsia, cujo eco não atinjo, nessa hora estarei em busca de u’a mâe? ou de um pai? ou de ser eu mãe? ou eu pai? ou tudo isto junto?

          mãe, onde no mundo se aninhou a ave daquilo que você me significa? na música? na literatura? na amizade? na minha casa? naquilo que penso ser amor? hoje, em Z…? ou em minha proposta de rejeitar-me?

          terra, terra! conjunto de sons e cheiros e cores do universo! terra, água, fogo e ar! envolvam-me, protejam-me! apertem-me e me asfixiem com a presença viva do universo! tenho frio, quero ter frio! tenho fome, não tenho pejo de ter fome! tenho sede, não me assusta a sede do mundo! mas não quero ter medo!

          tenho medo de ter medo!

          terra, água, fogo e ar! envolvam-me, deem-me essa força escondida e tão necessária: a da autossuficiência!

          quero ser um filhote de gente, de bicho, de coisa, qualquer filhote que, já parido, disponha de agilidade para evitar predadores e suficiência para cuidar-se em sobreviver. quero-me filho sem mãe.

          quero-me filho sem mãe!

          nessa minha nova parição, com tantas parteiras ao meu redor, pai, mãe, angela, neuza, V…, W…, X…, Y…, Z…, leonardo e bruno, estas presenças que invoco, tão cheias de ausência…

          quero-me filho sem mãe, com gestação tamanha e suficiente a um monstro de mil pernas.

          quarenta anos, dos quais não me lembro de vinte!, quero-me filho sem mãe!

          quarenta anos e um novo parto. eu, zeus e hefaistos e atena, os três ao mesmo tempo.

           eu, zeus, de terrível dor de cabeça, pressentindo dentro de mim uma nova e ameaçadora presença,

          eu, hefaistos, munido do machado da determinação de não ter medo e de ir até o fim desta partenogênese,  

          eu, atena, saindo de minhas entranhas inteiro e armado para a guerra da vida e para as tentativas sedutoras das artes.

          eu-pai-parteiro-filho.

          eu, jorge, jorge teles. filho sem mãe.

          pra não correr novo risco de rejeição, serei eu o meu filho bem amado, como era atena para zeus.

          só não farei voto de castidade. eu me quero todo e inteiro. não tive medo de minha dor, como ártemis teve medo da dor de sua mãe.

          mãe, não ligue pra essas coisas que falo de rejeição. o problema não é seu. o problema é meu.

          o problema é sempre meu.

 

233.

          aqui termina meu relato – os dez dias que não me abalaram em nada – e eu resolvo que isto não chega a ser um livro. muito fácil, pra ser livro.

          é mais um conjunto de anotações.

          e nada mais.

          te amo, Z…. livro ou não, quero terminar com você.

          te amo.

 

234.

          eis a casa que habito hoje: decido evitar a emoção de amar, por não sofrer tanto; decido conviver com a rejeição, por me fazer adulto; decido sofrer a dor menor.

          sem literatura: sinto que preciso enfrentar a rejeição de Z…. Z… não quer dormir comigo. escapole ao meu abraço. quero conviver com minha segurança e decido entender sua liberdade.

          nessa nova terra, porém, me sinto árido e ressecado. chão pisado por fantasmas vazios, água nunca bebida, gruta sem eco.

          tento de novo, sem literatura: sinto que um vazio ameaça fragmentar minha existência. me sinto não vivo.

          não estou conseguindo escrever o que pretendo escrever. as imagens envenenam as minhas idéias.

          tentarei de novo:

 

235.

          Z…, pretendo, a partir de hoje, rejeitar sua rejeição. vou me esconder numa dor maior, a dor de estar sozinho, sem você.

 

236.

          encontrei, afinal, o meu estilo. pedaços de textos que vão e voltam, seguindo o roteiro de meu instinto.

          dionísio impera solto e senhor dentro de mim.

          não estou bêbado.

 

237.

esta tarde que não termina nunca

dura apenas uma tarde.

eu que não sei calcular

tamanho de tardes.

 

esta angústia que não acaba mais

dura apenas uma angústia.

eu que não sei avaliar

duração de angústia.

 

esta vida a que falta tanto

dura apenas um resto.

eu que não sei, nada sei,

de resto de vida.

 

238.

          nilton, você estava no segundo ginásio, eu no terceiro. percebi algo estranho no teu olhar, uma feminilidade sedutora. apaixonei-me por você. nunca te falei, nunca te toquei. mas como você mexeu na minha vida! tive que adaptar-me a esta nova verdade. eu amava um menino! sabia o que era amar! não podia me enganar!

          e eu, glória, glória!, que nunca quis me enganar!, tive que admitir minha estranha situação.

          não foi fácil. reflexos doem ainda hoje.

          mas hoje, se não estiver sendo feliz, há de ser por outros motivos, não porque esteja amando a quem amo.

          caia o mundo na cabeça de todas as pessoas que estão com sua moral prontinha, pra apresentar junto com a carteira de identidade.

          não tenho medo de aceitar minha sexualidade! foi ela que me mostrou esse meu caminho de liberdade! não tenho eu uma moral pronta nem a procuro.

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