Alma desdobrada, cap. 258, 259, 260, 261 e 262.

Alma desdobrada, capítulos 258,  259, 260, 261 e 262.

 

258.

          minha mãe, purgado eu agora de meu medo de rejeição, aquietado eu agora de minha frustração por não ter assumido antes o meu desamor, esvaziado eu de falsas piedades nunca inteiramente vestidas, convivido que fui com as eumênides que me habitaram nos confins do meu inferno!, todas as garras cortadas e dentes quebrados e cegados os olhos e arrancadas as asas…

          eis-me agora saído destes infernos.

          não conseguiria sair de lá sozinho. Y… me fez chorar, brunetti me deu a mão e me ensinou de coisas dolorosas e Z… me garantiu durante todo esse tempo um significado para a vida.

          desci a aquilo que os antigos chamavam limbo, um covil enevoado, polvilhado de fantasmas amarrados a minhas lembranças. tive que conviver com fantasmas tão antigos, que já não havia palavras para explicar o que eu sentia, mas tão somente sensações.

          numa das sessões de terapia, fui à gruta do teu útero, vermelho de luz, enorme, catedral humana, nave de proteção; e, no meio daquele calor que devia aquecer, eu me senti só no mundo.

          pequenino, triste; humano, demasiado humano. não querido.

          e eu tentei entender tua dor e tua vida cheia de amargura e derrota e comecei a falar alto dessas coisas. mas brunetti me disse: isto, entende você hoje, com a sua idade e a sua cabeça. mas o que sentiria o menino que ainda não pensava direito?

          e eu tive que engolir boca adentro o veneno do purgante que é odiar u’a mãe. ou simplesmente não amá-la, já que nunca recebi motivação a tanto.

          e o purgante fez efeito, forçando-me a defecar as cacas das pombas. saíram demônios da ponta de meu lápis, eu sei, saíram as fúrias implacáveis da vingança impotente.

          vingança impotente…

          vingança impotente é escrever dessas coisas. impotente, mas necessária.

          como ulisses, desci aos infernos. aos meus infernos. convivi com os mortos. os meus mortos.

          eles estavam lá. escondidos por trapos negros que lhes tentavam tapar as garras e os dentes venenosos. e, diante deles, pude entendê-los ou senti-los.

          em toda a sua fragilidade!

          em toda a sua pequenina significação.

          exatamente como deus e minha sexualidade. eu os temia, por não ter tido a ousadia de compreendê-los. de enfrentá-los.

          de enfrentá-los, para compreendê-los.

          mortos meus!, meu deus extinto!, minha sexualidade específica!

          eis que as coisas se fecham em si mesmas. quem estava perdido no labirinto retorna ao ponto de partida.

          mas eu não sou mais aquele que partiu.

          estou sendo este que chega.

 

259.

          minha mãe, minha mãe. não quero esquecer de dizer que, de todos os meus mortos, você é a mais importante.

          AGORA, você é a mais importante.

          não queria te separar de meu pai neste momento de tantas lágrimas. tantas e tantas, que mal consigo enxergar o papel por onde corre o lápis. não queria me separar de vocês dois, eu, vivo, vocês, mortos como estão.

          mãe e pai me habitam.

          quantos homens podem habitar um homem?

          apenas um! ele mesmo!

          quantos homens podem habitar um homem?

          todos! partindo daquilo que só ele é, atingindo o resto da humanidade através de seu pai e sua mãe.

          o menino de seu pai e de sua mãe.

  

260.

          não me sinto mais órfão.

         não me sinto mais órfão!

 

261.

          vivo…

 

262.

         espalhadinhas, fingindo que são verdades, um tanto debochadas e muito bem camufladas, existem nesse livro cinco mentiras. por que uma biografia teria que ser toda feita de verdades? que falta de graça! eu sei onde se escondem. passo por elas, de vez em quando, e lhes pisco o olho…

 

 

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