Alma desdobrada, cap. 266, 267, 268, 269, 270, 271, 272, 273 e 274.

Alma desdobrada, capítulos 266, 267, 268, 269, 270, 271, 272, 273 e 274.

266.

          sim, o duende não falava.

          e o príncipe falou:

          você sabe que eu sei a resposta! eu tive medo porque atribuí a você coisas que não te pertenciam. pra que você fosse forte, eu tinha que te desenhar terrível. nunca imaginei que alguém pudesse ter tanta força, com este teu corpo de bebê, recém nascido de um ovo. eu não tinha percebido que você tem força porque tem esses dois olhos. eu imaginava garras e pernas fortes e dentes afiados, mas a tua força está dentro da sua cabeça ou dentro do seu coração. a tua força esta na tua ternura; se você segurar minha mão, eu me desmancho. se você me abraçar, me sentirei bebê.

          e eis que descubro…

          e era uma vez um príncipe que descobre agora… que eu não devia ter te aprisionado, que eu devia ter te visitado antes.

          e o teu olhar me diz que as coisas são assim mesmo. que eu deveria esperar. e eu não sei mais quem foi que desenhou aquele demônio na minha cabeça, se fui eu, se foi o mundo, se fomos nós dois juntos, o mundo com o meu consentimento, ou eu, por opressão do mundo.

          e eu gosto de te ter conhecido.

          e eu me pergunto se poderia te levar lá pra cima e os teus olhos me dizem que não. que o teu lugar é aqui.

          e que eu preciso vir aqui de vez em quando, me alimentar de tua sabedoria. olhar a tua fonte de luz, que vai me ensinar coisas. eu preciso que você esteja aqui, longe de mim. eu aprendo isto agora, olhando teus olhos. porque, na tua solidão, do fundo desta gruta, você zela por mim.

          foi você quem machucou o meu estômago outro dia e provocou a reação mais violenta que já vivi. foi você, duende, que me fez apaixonar por meninos. os teus olhos me dizem que é assim.

          não é culpa tua. não é culpa minha. não existe culpa.

          e, porque eu não queria me acostumar com a idéia de me apaixonar por meninos, eu te transformei num demônio. e agora eu vejo que você é o meu anjo protetor, como o anjo da guarda dos católicos. só que o anjo deles está por fora. e você está por dentro de mim.

          porque você é eu. eu acho que é mais do que isto, é mais do que isto: eu é que sou você.

          não era uma vez um príncipe; era uma vez um duende.

          era uma vez um duende que me olha agora, mas o mundo não pode vê-lo.

          o mundo pode ver a minha cara, a minha fachada, o meu sorriso.

          mas não essa gruta que está no fundo de mim.

          por isso, que o mundo me chama de eu.

          mas eu te chamo de eu.

          era uma vez um duende.

 

267.

          bruno, paz haja entre nós, quando você me descobrir aquilo que não corresponde à sua fantasia!

          verdade haja!

          haja também amor.

          queria sempre ser capaz de medir o tamanho de sua liberdade.

 

268.

          passam voando ao meu redor, como borboletas vivas e risonhas, pessoas que conheço e a quem amo, com este amor menor, que não dói tanto: angela, célia, silvia, marli, marina, geraldo, outro geraldo, zélia,  joão carlos, flávia, outra flávia…

          passa voando ante mim, pairando à minha frente, a lembrança doce do meu amigo paulo. que veio você fazer nesse mundo?, criatura macia. você não saberá jamais o que vou contar: você foi o homem a quem mais amei no mundo, com este amor de ser amigo. fizemos teatro, você fiel e carinhoso com todos… e eu gostava muito de você, mas nenhum desejo veio dar ferroadas dolorosas em meu coração.

          queria que você entendesse isso.

          por que o mar te devorou?

 

269.

          as coisas se fecham dentro de mim. escrevi ontem aquilo que escrevi sobre neuza e sonhei com ela esta manhã.

          era um enorme caixão e ela estava dentro, pronta para ser enterrada.

          eu fizera o caixão. a tampa não tinha trincos, apenas era pousada sobre a caixa. e também não coloquei alças, as pessoas deveriam segurá-lo pelo fundo.

          era enorme, largo e alto. do tamanho de uma cama. pessoas desconhecidas a levaram para fora do sonho.

 

270.

          leonardo, de você espero o dia em que me brindará com a primeira grande descoberta de sua vida. espero-a comovida, chorosa, com mãos que se esfregam, com confiança.

          uma descoberta para todo o sempre.

 

271.

          meu corpo passeia pelas cidades da europa. realizo um sonho sonhado há muito.

          os museus não me surpreendem. conheço tudo, através de reproduções. são cadáveres de antigos amigos, já não tão significativos.

          eu merecia aqueles museus quando tinha dezessete, dezoito anos. então, teria enlouquecido por total.

 

272.

          meu pai, meu pai, não quero que meu recém descoberto amor venha a se transformar, para mim, numa nova forma de escravidão.

          quero me dar o direito de continuar a manipular tua imagem, te redescobrir tantas vezes quantas as vezes em que eu precisar mexer na minha memória.

          se vivo estou, quero-te também vivo, mutante dentro de mim.

          minha vida, em parte, resulta disto.

 

273.

          a avó virou protestante e eu, o bonzinho e obediente, devo levá-la à igreja todos os domingos. tenho doze, treze anos.

          a avó chega cedo à igreja. sentamo-nos para esperar a hora do culto. algumas vezes estamos lá antes de abrirem a igreja.

          a avó é analfabeta e pede que eu leia a bíblia, para passar o tempo. leio a vida de cristo, comparando as cenas narradas pelos evangelistas.

          ela tem o semblante triste e as costas vergadas. minha avó é um cristo, como tantos outros, a ouvir sua própria história.

          eu me comovo muito com a leitura. mas sei-a irreal.

 

274.

          comecei a escrever um conto. queria falar de meus sete cadernos, grossos cadernos escritos por amar X… o conto diria de um senhor feudal que solta sete prisioneiros perigosos por concluir que, soltos, seriam menos temíveis do que aprisionados no porão de seu próprio castelo (meus cadernos dormiam escondidos num cofre de ferro). quando dei por mim, apareceu um menino de treze anos. o conto virou o romance apolo e jacinto. delirava enquanto o escrevia. foi bonito, sensual, quase posso considerá-lo um princípio de libertação.

          tratava de assuntos que desconhecia por inteiro. narra cenas de sexo que eu mal tinha coragem de imaginar.

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