alma desdobrada, cap. 41, 42, 43, 44 e 45

Alma desdobrada, capítulos 41, 42, 43, 44 e 45.

 

 041.

          é estranho tudo isto que escrevo. o personagem do meu livro desistória afirmou: contar uma história é escolher, dentre as lembranças mais quentes, as que mais queimam. seria isto que escrevo a minha história?

  

042.

          lembro mais de meu pai agora. descobri tanto dele na terapia! foi todo esse proceder como tirar panos velhos, fétidos e ameaçadores de sobre uma múmia que eu julgava indiferente, antes, perigosíssima, depois. aos poucos, entretanto, foi-se modificando a figura que seria a múmia. transformou-se devagar num cadáver sagrado de um amigo. meu pai me amou. sei hoje, sinto agora, que foi ele quem me amou mais que todos.

  

043.

          no silêncio da tarde, eu leio. não estou só em casa. estou só em casa. no quarto, estendida sobre a cama, o corpo magro e ossudo e branco da neuza que dorme. se vou beber água ou ao banheiro, passo e olho. ela está viva. controlo os horários de seus tantos remédios e vigio seu sono. é difícil que ela durma muito tempo. geralmente, fica tão apenas estendida no leito, os cabelos muito negros a empalidecê-la mais ainda e os enormes dedos a trazer a lembrança daquilo que está por acontecer. ela fica entre a casa e o hospital. a cada vinda, seu organismo está mais debilitado.

         neuza convive com a morte. ela sabe que esta sua morte não pode ser enganada com facilidade. já abriu as portas de seu corpo, já se instalou furtiva e silenciosa.

         resta a espera do momento fatal.

         neuza espera com alguma esperança escapulindo do seu olhar. a distância entre o anúncio do fim e o fim, é feita com todos os segundos de que é feita. mas estes segundos não são, para mim, os mesmos segundos que são para ela.

         para ela, outro é o tempo.

         seu tempo como que está parado no que já se acabou.

  

 044.

          no dia em que ela morreu, uma frase batalhou impune dentro do meu pensar:

         cortaram as asas da avezinha!

 

 045.

          leonardo e bruno me amam. sei disto profundamente. não queria agora falar do meu amar mas tão somente do ser amado.

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