Alma desdobrada, cap. 53, 54, 55, 56, 57 e 58.

Alma desdobrada, capítulos 53, 54, 55, 56, 57 e 58.

 

053.

          quando eu tinha medo, rezava: ave-maria e pai-nosso.

         depois, por influência do protestantismo a que me fizeram aderir (eu, ligeiramente teimoso, recusei a profissão de fé até o dia em que não mais ousaram sugeri-la), eu, depois, me contentava com o pai-nosso. qualquer situação de ameaça de pânico, o pai-nosso brotava livre e solto dentro de mim.

         eu tinha pesadelos, demônios e monstros que me perseguiam a maciez do sono: acordava e desabava dentro do silêncio da alma aflita aquela fileira de pais-nossos até que o sono…

         deu-se que mudei de opinião e deus deixou de me machucar. parei de rezar, na intenção de passar a contar comigo mesmo. mas, curioso!, percebi que, quando tinha pesadelos, acordava já no meio da reza, eu principiava a rezar dentro ainda do sonho.

         se não acredito de verdade, porque rezo? me perguntei.

         nunca mais acordei rezando, após este questionamento. acordava do pesadelo, abria os olhos e olhava o escuro. não orava. às vezes, não tinha coragem para abrir os olhos.

         quantas crianças habitam cada homem? quantas?

         eu não orava.

 

054.

         que sonho mais doce me ocorreu esta manhã: estava sentado a uma mesa redonda; a meu lado, alice, a professora de inglês. à minha frente, Z…, meu amado amigo. então Z… colocou meus pés no seu colo e, segurando-os, ficou um tempo a acariciá-los. nós nos sorrimos, que doçura eterna de sorriso! e que felicidade quase pronta me invadiu, depois que acordei. menino, meu amigo, meus pés no seu colo e você os segurava tranquilo e os esfregava e os acariciava. sei dos detalhes que me provocaram este lindo sonho. não quero causas, causas não interessam aos sonhos. foram causas, mas não foram elas que o fizeram. é um sonho filho de meu amor, este sonho se fez por si mesmo.

         meu amigo amado.

 

055.     

         devo ter dezesseis, dezessete anos. uma fantasia sempre me persegue: eu estaria caminhado numa rua e duas portas se abririam. numa delas, um homem, noutra, uma mulher. ambos me convidariam para entrar e amá-los. eu sabia que meu desejo pelo homem era forte, mas, na minha fantasia, eu escolheria a mulher. então, a partir daí, eu pensava, todos os meus problemas com sexo estariam terminados. eu me sentia culpado por ser como era.

  

056. 

         vou esperar que bruno e leonardo entendam este livro. só depois, terei coragem para publicá-lo.

  

057.        

         JJ…, a primeira vez que te vi, cidade, depois de adulto, foi desoladora. uma aldeia suja e feia, cheia de gente provinciana, a reparar em todos os detalhes de todas as pessoas. então, deu-se que conheci W…, de onze anos. eu tinha dezoito. desespero e dor, ao me percebe apaixonado. que força me arrebatava?, que entranhas me cuspiam para esse mundo?, esse mundo tão cheio de imprevistos e condenações! não foi ele o primeiro homem por quem me apaixonei. não diria hoje, depois de tanta coisa que já me aconteceu, que teria, ou não, sido aquele amor o maior amor de minha vida. foi um grande amor.

         

058.  

         aos dezesseis anos e dez meses, comecei a trabalhar na madeirit. horário integral, salário razoável, viajava de vez em quando, discos e livros. aos vinte anos e dez meses, entrei pro instituto de resseguros do brasil. horário melhor, à tarde, salário mais alto. muito mais tarde descobri que um bom emprego é uma gaiola de ouro. me deu casa, viagens, comida, chácara, crio dois filhos. mas não sou senhor de meu tempo. há quase vinte anos que passo aqui meus melhores e piores dias. aqui, praticamente, escrevi tudo que escrevi (exceção da missa, toda escrita no apartamento). eles estão em volta de mim e eu deles. não sabem, todavia, o tamanhão ou o tamaninho de cada uma de minhas dores ou alegrias. a gente convive de casca pra casca, raras são as oportunidades em que se mostre ou se vislumbre miolos de sangue. só o passatempo.

         nem foi o meu trabalho que compraram, escrevi eu, um dia. foi meu tempo.

         não sei se dá pra reclamar.

 

(nota acrescentada em 2014: FHC, ou o PSDB, arrebatou dos funcionários aposentados mais da metade de seus salários. Foi uma manobra suja, um crime trabalhista, para que diminuíssem os encargos para o acionista de 50%, na privatização do IRB, Banco Itaú. Houve quem apelasse para a Justiça Trabalhista e aconteceu o que sempre acontece no país: os processos entraram em órbita. Os aposentados estão morrendo, um após o outro. O Pretensioso Pretenso Estadista fez a mesma porcaria com outras estatais. Algumas conseguiram reverter o processo. Os aposentados do IRB estão atirados na lixeira, à espera do fim. Uma praga te visite, presidente.)

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