bumba-bumba parte 1

BUMBA-BUMBA.

Nota: Este texto se compõe de duas partes. A primeira peça, Bumba-meu-, foi apresentada em Curitiba, pelo Grupo É Hoje, em 1983.

Primeira parte: Bumba-meu-

MESTRE:
Boa tarde, senhores,
Boa tarde, senhoras,
A todos presentes
Digo que são horas
Da nossa chegança.
E sem mais tardança
Vamos começar.
O bumba-meu-boi
Vai se apresentar.

Eu sou o Capitão
Boca Mole chamado.
Este moço aqui
É um capataz.
Sujeito decente,
Ótimo rapaz.
Pois bem, meus amigos,
Agora é a hora
De entrar nossa banda!
Entre a sarabanda
Tocando a ciranda!
É o Boca quem manda!

(entram e tocam; entra também o Jornalista que, durante toda a encenação, passará de vez em quando no meio dos atores, fotografando com flash e anotando o que se dirá a seu tempo)

Atenção, senhores,
Muita atenção!
Chegamos enfim
Ao grande momento
De encantamento!
Mas eu também digo
Que é hora de perigo!
Vamos receber
O Boi, nosso amigo!

(entra o Boi e as Pastoreiras; todos dançam e cantam)

TODOS:
Boi, boi, boi, boi,
Entra sem acanhamento.
Boi, boi, boi, boi,
Dança sem ressentimento.
Boi, boi, boi, boi,
Eu te dou consentimento.
Boi, boi, boi, boi,
Manso e sem atrevimento.
Boi, boi, boi, boi,
De grande merecimento.
Boi, boi, boi, boi,
Respeita o alinhamento.
Boi, boi, boi, boi,
Lembra do regulamento.
Boi, boi, boi, boi,
É hora de divertimento

JORNALISTA:
A entrada do Boi é um espetáculo triunfal, um dos momentos mais encantadores nesta nossa festa folclórica.
MESTRE:
O Boi, meus amigos,
Bonito e matreiro
Representa, é a alma
Do povo brasileiro.
É um boi muito manso.
É um boi fatigado.
É um boi muito triste.
Está enfeitado
E parece alegre,
Mas está cansado.
É trabalhador,
Sujeito excelente!
Esse Boi é boi
Amigo, paciente,
Vive como besta
Mas é como gente.
Não é indolente.
Não é delinquente.
Não é renitente,
Não é negligente,
Não é maldizente,
Não é exigente,
Mas é penitente.

Pastoreiras, pastoreiras,
Levai o Boi a pastar.
Ele já dançou bastante,
Deve agora descansar.

(Saem as Pastoreiras com o Boi)

Prestem agora atenção
A quem eu irei chamar!
Catirina e Catiró,
Heróis aqui do lugar,
Com a Criada Raimunda
E o Raimundo exemplar.

(Entram os quatro; cantam)

CATIRÓ:
O meu nome é Catiró,
Sou mais inteligente do que bocó.
O meu nome é Catiró,
Da minha Catirina eu sou o xodó.

CATIRINA:
O meu nome é Catirina
De cintura grossa e de perna fina.
O meu nome é Catirina
De cabeça burra mas de língua viperina.

RAIMUNDO:
O meu nome é Raimundo
Mas os meus amigos me chamam de Ray.
O meu nome é Raimundo,
E na minha vida está tudo OK.

RAIMUNDA:
O meu nome é Raimunda,
Sou feia de cara mas boa de coração.
O meu nome é Raimunda
Eu conheço a rima mas não quero rima não.

JORNALISTA: (enquanto os outros cantam baixo)
… as pessoas são puras na sua pobreza, sóbrias na sua simplicidade, ingênuas na sua ignorância…

CATIRINA:
Boa tarde, senhores.
Eu sou Catirina.
E como estão vendo,
Estou de barriga.
Garanto procês
Que não é lombriga.
Já faz vinte vez
que eu fico assim.
Coitada de mim!
Eu tenho seis filho
Que os outros goraram.
Que os outros morreram.
De todas mulher
Cá do lugarejo
Eu sou a que mais
Sofre de desejo.
Se penso em goiaba
Ou jaboticaba
A saliva baba
E quando o marido
Me atende o pedido
O desejo acaba.
Marido, marido!

CATIRÓ:
Que foi Catirina?

CATIRINA:
Tô tendo um desejo!

CATIRÓ:
O quê?, desta vez!

CATIRINA:
É doce com queijo.

CATIRÓ:
Raimundo, depressa,
Vai lá, no freguês
E traz goiabada,
Só se for cascão,
E traz requeijão.

CATIRINA:
Marido, socorro!
Me acuda, que eu morro.

RAIMUNDA:
Que foi?, Catirina.

CATIRINA:
Mudou o desejo.

RAIMUNDA:
Calminha, menina,
Não fique nervosa!

CATIRÓ:
Não fique chorosa!
Eu vou resolver
O que ocê quiser.
E assim, todo homem
Devia fazer
Pra sua mulher,
Que eu, afinal,
Tenho culpa no cartório.

CATIRINA:
Socorro, que eu morro!

CATIRÓ:
Pois fala, mulher!
É doce com quê?

CATIRINA:
Caju e araruta!

CATIRÓ:
Caju e araruta!
Ô raio de desejo
Mais filho da mãe.
Raimundo, vem cá,
Vai correndo à venda
Aqui do lugar
E vê se encomenda
Caju e araruta!

CATIRINA:
Não vá mais, Raimundo,
Já é outro o desejo.

CATIRÓ:
Mudou outra vez?

CATIRINA:
Mudou outra vez.
Desculpa, minha gente,
Mas, também, ó xente,
Que culpa que eu tenho.

RAIMUNDA:
E agora, o que é?

CATIRINA:
Um bife de boi.
Um bife grelhado
Muito bem passado,
Com pimenta e alho.

CATIRÓ:
Ai, ai, meu carvalho!
Minha Catirina,
Juízo, menina.
Onde é que eu encontro
Um boi nesta altura?
Você bem que sabe
Que o tempo atual
Não é de fartura.
A seca anda brava
Aqui no sertão.
Os bois que aqui tinha
Foi tudo embarcado
Pro povo do sul.
Quê que eu faço?, então.

CATIRINA:
Ai, ai, meu marido,
Socorro! O desejo.

CATIRÓ:
Bem vejo, bem vejo,
Mas carne de boi,
Não sei onde acho.

RAIMUNDO:
Catiró, no riacho,
Atrás das colinas,
Eu vi um boizinho
E lindas meninas,
Suas pastoreiras,
Cantavam e riam
Enquanto da água
Do rio bebiam.

CATIRÓ:
De quem é o boi?

RAIMUNDO:
Não sei, não senhor.
Era um boi tão lindo
Que devia ser
De algum doutor.
Ou de um coronel.
E todo enfeitado
E cheio de flores
E fitas e contas
De todas as cores.

CATIRINA:
É esse, é bem esse,
O boi do desejo.

CATIRÓ:
Mas o seu desejo
É um bife ou um boi.
É um boi ou um bife.

CATIRINA:
Não seja patife!
O que eu quero é um bife
Do boi enfeitado.
Você bem que sabe:
Se a mulher deseja
E não é atendida,
Dá uma recaída
E o filho nasce
Todinho abalado.

CATIRÓ:
Então, combinado.
De noite, bem tarde,
Sem nenhum alarde,
Eu vou com o Raimundo.
Vamos procurar
O boi enfeitado.

RAIMUNDO:
Vamos procurar
O boi enfeitado.

CATIRÓ:
Se não o meu filho
Vai nascer aguado.

RAIMUNDO:
Vamos procurar
O boi do Coronel.

CATIRINA:
Se não meu filho nasce
Com cara de réu.

TODOS:
Vamos procurar
Esse boi na certa.

CATIRÓ:
Se não meu filho nasce
Com a boquinha aberta.

TODOS:
Vamos procurar
O boi do capataz.

CATIRINA:
Se não meu filho nasce
Com o pé pra trás.

TODOS:
Vamos procurar
O boi lá da horta.

CATIRÓ:
Se não meu filho nasce
Com a mãozinha torta.

TODOS:
Vamos procurar
Esse boi capeta.

CATIRINA:
Se não meu filho nasce
Com a cara preta.

TODOS:
Vamos procurar
O lindo boizinho.

CATIRÓ:
Se não meu filho nasce
Com a cara do vizinho.

TODOS:
Vamos procurar
O boi colorido.

CATIRINA:
Se não meu filho nasce
Sem a cara do marido.

(dançam e cantam baixinho)

JORNALISTA:
…por cento é a taxa de mortalidade infantil no país. Segundo as autoridades, porém, o problema…

MESTRE:
Vocês viram como é que é:
Catirina, sem pensar no banzé,
Desejou o boi do coronel,
Fazendeiro aqui da região.
Um boi estimado e venerado,
Um boi muito lindo e enfeitado!
E isto é o começo malfadado
De uma enorme e tremenda confusão!

(escurece; entra Raimunda com um bebê e, a seguir, o Boi e as Pastoreiras)

RAIMUNDA:
Pisando as flores do caminho
Em meio ao despontar da noite amiga
As Pastoreiras do boizinho
Trazem-no cantando esta cantiga.

O lindo Boi vem caminhando
Seguindo sua sina tão antiga.
Elas o deixam descansando,
Pois grande vem sendo a sua fadiga.

PASTOREIRA I (de branco):
Meu nome é Esperança.
Pastoreira sou.
Cuidado!, boizinho,
Que agora me vou!

A esperança vou deixar
De raiar um novo dia
E o galo da luz voltar
A cantar com alegria.

PASTOREIRA II (de branco):
Meu nome é Fé.
Pastoreira sou.
Cuidado!, boizinho,
Que agora me vou!

A fé vou deixar
De raiar um novo dia
E o galo da luz voltar
A cantar com alegria.

PASTOREIRA III (de branco):
Meu nome é Promessa.
Pastoreira sou.
Cuidado!, boizinho,
Que agora me vou!

A promessa vou deixar
De raiar um novo dia
E o galo da luz voltar
A cantar com alegria.

PASTOREIRA IV (de negro):
Meu nome é Ilusão.
Pastoreira sou.
Cuidado!, boizinho,
Que agora me vou!

A ilusão vou deixar
De raiar um novo dia
E o galo da luz voltar
A cantar com alegria.

(saem todas; entram Catiró e Raimundo)

JORNALISTA:
… anos, desde que os militares alteraram o regime de governo do país; seus objetivos eram, entre outros, acabar com a miséria, a inflação, a manipulação das massas pelos mais poderosos, e, sobretudo, evitar que o país caísse nas malhas das nações estrangeiras que pretendem, através de uma exploração corrupta e desenfreada, destruir a liberdade nacional e transformar o país numa colônia econômica, de mãos desunidas e voz silenciada…

(o Boi fica inquieto)

CATIRÓ:
Boizinho, boizinho,
Deixa eu me chegar.
Eu sou teu amigo,
Não corres perigo,
Só vou te abraçar.

RAIMUNDO:
Boizinho, boizinho,
Não fique manhoso.
Viemos em paz.
Eu sou bom rapaz.
Não seja medroso.

(o Boi se acalma; ambos matam o Boi, com uma facada na nuca; cai o Boi)

RAIMUNDO:
Rapaz, que facada!
E foi bem na nuca.

CATIRÓ:
Agora, depressa,
Pra nossa baiuca.

RAIMUNDO:
Espera um momento.
Pra quê tanta pressa?
Não há impedimento.
Cair fora! Sem essa!
Eu vou retalhar
O Boi inteirinho
e tudo levar.
Por que vou deixar
O boi no caminho?

CATIRÓ:
E se chega alguém?

RAIMUNDO:
E o que é que tem?
Eu digo que vinha
andando, absorto,
Topei com o Boi morto
No meio da estrada!

CATIRÓ:
Então, é pra já.
E é numa facada
Que eu não corto torto.

JORNALISTA:
A taxa de delinquência e marginalidade subiu assustadoramente para…

(quando Catiró e Raimundo levantam a faca, chega o Capataz)

CAPATAZ:
Há, há, mas que achado!
Apanhei em cheio
Catiró e o criado
Mexendo no alheio.
Aqui!, pessoal,
Acudam correndo!

CATIRÓ:
Eu acho melhor
Eu ir me escondendo!

RAIMUNDO:
É bem racional
Eu ir me mexendo.

(quando pretendem fugir, chegam o Mestre, as Pastoreiras, pessoas)

CAPATAZ:
Peguei os gatunos
Bem na hora agá!

MESTRE:
Mas o que é que há?

CAPATAZ:
Mataram o Boi.

MESTRE:
O quê?

PASTOREIRA II:
O que foi?

CAPATAZ:
Eu digo e repito:
Mataram o Boi.

RAIMUNDO:
Acho que estou frito.

CATIRÓ:
Te avisei, não foi?

CAPATAZ:
Tão presos os dois.

MESTRE:
Espera! Um momento.
Prender é depois
Que houver julgamento.

ADVOGADO: (entrando)
Muito bem falado!
E para isto, eu,
Que sou advogado
Venho apresentar
Minha humilde pessoa.
Mister é se faça
Uma citação
Datíssima venia
Para a execução
Da tramitação
Da ordinária ação.
Sem apelação,
A intimação,
A contestação,
Justificação,
Sem consignação
Pra condenação.
Ad-referendum
A posteriori
Mutatis mutandis
O primo recurso,
Os autos, pro-forma,
E o deferimento
Com o consentimento
Do réu, lato sensu,
Ex-vi, ex abrupto,
E exempli gratia,
Ex-lege, o edital,
Sem obive, in casu,
Jus, habeas corpus,
Hic, pro domo sua,
Digo que a sentença
Sine sua pendência
Nem improcedência,
Mas com renitência,
Requer competência,
E ipso-facto
Toda a audiência
Cairá em carência
E o juiz sem clemência
Decreta falência
Com grande urgência
Indicando a vigência.
E impugnados
Todos os embargos,
Autos apensados,
Processos datados,
E quanto mais basta,
Conforme o consoante,
De forma que entanto
Posto que entretanto
Mas porém todavia
Contudo não obstante
Porquanto e embora
À proporção que a menos
Ao passo que afora
E adiantados,
Os meus honorários
E extraordinários.

PASTOREIRA III:
Como fala bem!

PASTOREIRA IV:
Você entendeu?

PASTOREIRA I:
Que voz que ele tem.

ADVOGADO: (para o Mestre)
Por obséquio, senhor, queira assinar esta procuração.

MESTRE:
Ele é que é o réu.

RAIMUNDO:
Com esta defesa
Vou pro beleléu.

(entra o Médico com a Enfermeira)

PASTOREIRA III:
Chegou o doutor.
Aqui, faz favor.

PASTOREIRA IV:
Dê uma olhada
No nosso boizinho.
Olhe com carinho.

PASTOREIRA I:
Quem sabe, está vivo!

DOUTOR:
Primeiro, é preciso
Pagar a consulta!
Tire a turbamulta
De perto do cliente.
Faz mal tanta gente.
Quem vai transportá-lo
Ao meu hospital?

PASTOREIRA II:
Não dá pra levá-lo
Pra outro lugar.

DOUTOR:
Consulta local,
E particular.
Quem vai acertar
A conta comigo?

PASTOREIRA II:
Doutor, há perigo,
O Boi já fenece!

DOUTOR:
Este malfadado
Está registrado
No INSS?
Se não, já se sabe,
A mim, não me cabe
Curar o animal.

ADVOGADO:
Digam, afinal,
Que eu já nada sei.
O caso do Boi
É caso de lei
Ou de hospital?

CAPATAZ:
Nosso Boi morreu!

ESCRIVÃO: (entrando)
Morreu o boizinho?
É preciso então
Passar certidão!
Eu sou o escrivão!
Boa tarde, pessoal.
Precisa o registro
Contendo os dados
Do pobre animal.
Boi sem certidão
Indicando a data
A causa da morte
E outros que tais
É boi que não morreu.
De quem é o Boi?

MESTRE:
Não é meu!

CAPATAZ:
Nem meu!

CONTADOR: (entrando)
Eu sei de quem é!
O Boi que morreu
É do coronel!
O homem mais rico
Desta região.
Sou seu contador.
A escrituração
Do deve e do haver
Sou eu que resolvo.
Sou economista.
Se falta, no fim,
Se a coisa vai mal,
Eu viro a estatística
E provo pra todos
Que o país vai bem,
Seguro e legal.

ROCK DOS ABUTRES:
ADVOGADO: Vou defender a tua causa!
TODOS: O pagamento, faz favor!
ADVOGADO: Hei de trabalhar sem pausa.!
TODOS: O pagamento, meu senhor!
ADVOGADO: Mas se isto te der prisão!
TODOS: O pagamento, seu doutor!
ADVOGADO: Não te conheço mais, não!
TODOS: O pagamento, estupor!

TODOS: (refrão)
Eu ganho com tudo que tenho mentido
E muito eu perco, se sou verdadeiro.
Pro vida não vejo nenhum outro sentido
Que não seja ganhar e ajuntar dinheiro!

ESCRIVÃO:
Passo a tua certidão! (o pagamento…)
Faço a escrituração!
Nada vale a tua vida
Sem firma reconhecida!

(refrão)

DOUTOR:
Vou salvar você da morte (o pagamento…)
Com um remédio muito forte.
Mas se ataca o coração
Eu não sei de nada, não!

(refrão)

CONTADOR:
Sua renda eu calculo, (o pagamento…)
O teu orçamento é nulo.
Mas não liga muito não.
Vai muito bem a nação.

(quando cantam o refrão pela última vez, entra o Diabo e espeta a todos)

DIABO::
Pra fora daqui!
Toma esta garfada!
Cambada danada!
Pra fora! Pra fora!
Mais uma espetada!
Outra mais ali!
Abutres, vão embora!
E já, sem demora!
Vão juntar dinheiro
Nos confins do inferno!
Seu cão faroleiro!
Doutor açougueiro!
Escrivão coveiro!
Contador de bosta!
Vê se isto te gosta?
Pra fora daqui
Abutres do cão.
Ladrões descarados,
Piratas antigos!
E ficam agora
Com cara de amigos!
Pra fora! Pra fora!

(fica um tanto de costas)

PASTOREIRA I:
Chegou bem na hora!

PASTOREIRA II:
Isto, sim, que é Diabo!

MESTRE:
Que cabra danado!

PASTOREIRA III:
Mas eu tenho medo!
Tá certo que o Diabo
Baniu as serpentes.
Mas quem que garante
Que não vai adiante
E não continua
A expulsar as gentes?

PASTOREIRA IV:
Se ele espantou
O quarteto bandido
E não nos chateou,
É porque é amigo.

CAPATAZ:
Eu tenho um palpite!
Se a gente pedir
Pro Diabo vir
E curar o Boi?

MESTRE:
Pois vamos tentar!
Se a gente não tenta
A oportunidade
Pode evaporar!

PADRE: (entrando; fala com sotaque estrangeiro)
Boa tarde, amigos!
Como vão vocês?

MESTRE:
Como vai?, seu Padre!

PADRE:
Que estavam falando?

CAPATAZ:
O senhor chegou
numa boa hora!
Íamos agora
Pedir ao Diabo
Que ressuscitasse
O Boi enfeitado!

MESTRE:
Amigos, escutem,
O que estou pensando!
O Padre chegou
Segurando a cruz,
Espalhando a luz,
O Diabo olhou
E não estourou.
Estou desconfiado
Que ele está fingindo!

CAPATAZ:
Pois deixa comigo!
Vou lá perto dele
Com cara de amigo,
Dou nele um bom tapa
E lhe arranco a capa!
Veremos, então,
Se é Diabo, ou não!

(vai e faz)

PASTOREIRA I:
Mas vejam, que horror!
É o professor!

PADRE:
Professor, que é isto?
De espanto estou mudo!
Pra quê isto tudo?

PROFESSOR:
São ossos do ofício!
Depois de viver
Faminto e desnudo
E num sacrifício
Medonho e agudo,
Resolvi mudar.
Vesti essa roupa,
A cara pintei,
E emprego de Diabo,
Então, arranjei.
Não mais professor.
Só faço cobranças.
Sou, pois, cobrador.
Vocês bem que sabem:
Cobranças vencidas,
Dívidas passadas,
Hipotecas perdidas,
Contas atrasadas,
Serviço não falta.
Mas, por que se espantam
E ficam aí
Com cara de nabo?
Professor não passa
Dum pobre diabo.

PASTOREIRA II:
Não deixa de ser
Um pouco frustrante.

PASTOREIRA III:
Pensamos que agora,
Aqui, neste instante,
Você, como Diabo,
Curasse este Boi.

CAPATAZ:
Amigos, quem sabe
Fazemos pedido
À autoridade
Pra nos ajudar.
Eu vou à cidade
E posso falar.

PADRE:
A autoridade
Não quer mais saber
De povo e de ajuda.
Vai lá só pra ver!
É um Deus nos acuda!
O povo sofrendo,
Crianças morrendo,
Famintas, doentes,
E ninguém pra ouvir
O apelo das gentes.

(entram dois soldados)

Eu não sei, amigos.
A morte do Boi
Parece um aviso.
O Boi sempre foi
O representante
Das gentes humildes.
O Boi é trabalho
E é mansidão.
O Boi é folclore,
Nossa festa e pão.
Agora está morto.
Igual nosso povo.
Ninguém o escuta,
Ninguém o ajuda.
E a coisa não muda
Praquela cambada
De filhos da puta!
Este é o meu sermão
Que irei discorrendo
Pra todo o irmão!
Estamos sofrendo
Sem necessidade
E a autoridade
Que não foi eleita,
Mas como um ladrão,
Tomou o poder,
A autoridade
Não deixa de ser
Um vil impostor,
Um usurpador,
Tirano safado.
E nós precisamos
De muita união.
Vamos repartir
O medo e o pão.
Vamos dividir
As casas sem teto.
Vamos nos unir
Contra o desinfeto.
Chegou, pois, a hora
Da grande união.
Nós vamos vencer
Sem apelação.

SOLDADO I:
Padre, têje preso!

SOLDADO II:
Têje preso, Padre!

(todos se juntam em grupinhos isolados)

MESTRE:
Amigos, que é isto?
Prender nosso Padre?

SOLDADO I:
Está blasfemando…

SOLDADO II:
…contra a autoridade!

MESTRE:
Mas o que ele disse
É a pura verdade!

SOLDADO I:
Não tem mais conversa.
Pois padre e artista
Que fala em medo
E reclama pão
É tudo comunista.
Fica solto, não!

MESTRE:
Esperem, esperem!

TODOS:
Calma, esperem!
Calma, esperem!

(os Soldados vão levando o Padre)

PADRE:
Amigos, amigos!
Já sabem como é!
Avisem pro bispo!
Avisem à Sé!

(durante toda essa cena, o Jornalista estará escrevendo sem parar e dizendo)

JORNALISTA:
… o Evangelho do Oprimido… as autoridades… a religiosidade do povo… todavia… são taxados de comunistas… a Teologia da Libertação…

(todos começam a repetir as últimas palavras do Padre; o recitar vira uma canção)

TODOS:
E nós precisamos
De muita união.
Vamos repartir
O medo e o pão.
Vamos dividir
As casas sem teto.
Vamos nos unir
Contra o desafeto.
Chegou, pois, a hora
Da grande união.
Nós vamos vencer

(cantam e dançam e tudo vira um carnaval; ou um maracatu; enquanto dançam e cantam, chega o Pajé-Feiticeiro, misto de índio brasileiro e negro africano; fica junto do Boi; faz um fogo mágico; alguém grita)

VOZ:
Fogo! Fogo! (cessa a cantoria; todos fazem um grande círculo)

MESTRE:
Pajé-feiticeiro! Amigo!
Não vimos você chegar!
Você é mesmo indicado
Pra nossa gente ajudar!
Nosso boizinho morreu!
Morto não pode ficar!

PAJÉ: (pergunta, um por um, a todos os personagens)
E o que é que você estava fazendo, enquanto o boi estava morrendo?

(todos dão a mesma resposta)

TODOS:
Eu estava esperando que alguém fizesse alguma coisa!

JORNALISTA:
Eu estava anotando todos os detalhes desta festa, para organizá-los numa reportagem que publicarei numa revista de grande circulação nacional.

CORONEL: (entrando; é um boneco que tem as mãos, os pés e a cabeça amarrados por cordas até uma cruz ao alto, esta segurada por um personagem com o capuz da ku klux klan)
Isto é que não! Isto é que nunca! Pra virem depois os gringos com suas organizações de direitos humanitários? Quer que nos incluam, como insistem sempre, na lista dos países mais miseráveis do planeta? E quer indispor o povo contra nós, autoridades, que tudo fazemos para o bem das gentes?

(à medida que fala, os soldados cercam o Jornalista)

Quer fazer provocações? Agitações? Subversões? Terror?
Pois fique avisado: se quer continuar com o emprego, faça reportagens sobre o futebol! o carnaval? Itaipu! as usinas atômicas, a transamazônica, as praias, a mulata, a cachaça, o café, os rios, o sol, a fauna e a flora, Abra os olhos para o que temos de belo e grandioso.

(o Jornalista sai, cabisbaixo)

Ah! um conselho melhor ainda! Faça crônica social! Vai manter o emprego e, além disso, conviver com o que temos de melhor no nosso país.

(voltando-se para as figuras do Boi)

Vejo que estou participando de um bumba-meu-boi. Como são bonitas as vestes e representativas as figuras! Desculpem eu ter chegado assim, sem avisar. Gosto de sentir de perto as gentes, com seu cheiro, seu calor humano, sua espontaneidade. Vocês são o verdadeiro povo brasileiro. E é através de suas festas que se mantém vivo aquilo que temos de mais vivo e nosso aquilo que mais nosso é. Continuem, amigos.

(há um silêncio constrangedor; ninguém se move)

Continuem, por favor. Posso até anunciar o que será visto agora. Agora, o Pajé-feiticeiro, representante genuíno daquilo que é mais instintivo, puro e forte, num passe de mágica ressuscita o Boi e dá início à grande festa da apoteose final.

(silêncio ainda; há que ser um silêncio demorado o suficiente para incomodar; entra outro soldado)

SOLDADO:
Coronel, houve um problema na capital e estão pedindo o seu comparecimento.

CORONEL:
Oh, desculpem, meus amigos todos. Que problema? Fale! (o Soldado cochicha)
Amigos, desculpem, imperiosos deveres me chamam à capital para evitar que males cresçam e nos ameacem. Prometo comparecer ao bumba da próxima temporada. Adeus, amigos, adeus. (saem ele e os soldados)

MESTRE: (pesado)
E agora, senhores,
Vamos continuar.
Retomo a linguagem
De meu versejar.
O Pajé chamamos
Com sua magia
E a fantasia
Vai o Boi salvar.

PAJÉ: (tira a máscara e fala como ator)
Amigos, não vou conseguir falar em versos. Não estou mais sabendo de minhas magias. O quê pôde nossa magia até agora? Fazer teatro? Vestir cores e dedilhar canções e bater os tambores no ritmo alucinado? E enquanto isto, para todas as perguntas, só temos uma resposta: estamos esperando que alguém faça alguma coisa! E de onde esperamos que venha esta resposta? Do bumba-meu-boi! Do carnaval! Das serenatas e dos balões e das danças. E enquanto, aqui, salvamos o Boi, com nossas artes, eles, lá fora, com suas artes, fazem suas contas e escrevem suas leis e nos incluem nas contas e nas leis.

Direi a todos que o nosso boi não está morto! Não está morto! Está morrendo! Está quase morto. Mas no fundo do seu coração, pode estar acesa a chama que algumas vezes existe no fundo do coração dos povos! E de onde é que vem a salvação dos povos?

Eu nada posso com minha magia de teatro.

O que pode a magia de um Pajé contra as assinaturas dos decretos? O que pode a fantasia contra os soldados que saem à rua a defender as pilhagens dos usurpadores? O que pode a poesia contra os que sorriem nas telas e não falam de suas tramas escondidas? O que pode a beleza contra caríssimas obras faraônicas que dão emprego de fome apenas à metade do povo e garantem os cofres de alguns eunucos? O que pode um cenário contra as eleições que sabemos teatrais? O que pode um ator contra o formidável espetáculo de milagre e ruína que armaram para ser representado por toda uma nação? Não ha necessidade de fazer uma lista de todas as nossas misérias. Elas são contadas em números e não se pode esconder o poder dos números por muito tempo. Agora crescem os números do desastre e os mentirosos ainda sorriem a sua hipocrisia. Os abutres atacam a caça pequena e a águia voa fazendo sombra à dignidade humana.

Quem começou tudo isto? Por quê? Com que objetivo?

São estes, incompetentes ou desonestos?

São estes, desonestos ou incompetentes?

Não há lugar para Pajés neste bumba-meu-boi. Não há lugar para bumba-meu-boi neste país.

E se houver apresentações de Pajés de extintos grupos brasileiros, eu apenas perguntarei: o que significo?

E se houver apresentações de bumba, quero terminar por onde comecei: o que é que VOCÊ faz, enquanto o Boi está morrendo?

De onde é que vem a salvação dos povos?

(fecha o pano e soa a música – sem texto – de: E nós precisamos de muita união; no momento de reabrir a cortina, o Jornalista está amordaçado).

Atenção: A continuação desse texto está em: Português, Teatro, Bumba-bumba, parte 2.

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