a espécie humana – capítulo final
A Espécie Humana – capítulo final
60.
Réquiem para todas as ausências.
O último homem está caído ao chão. É sua última queda. A custo encostou-se a uma pedra. Seu corpo dói. O respirar é aflito. Olha as pernas e os pés mas vê apenas ossos e uma pele suja. Há hematomas, arranhões, unhas partidas, sangue preto colado ao seu corpo. Suas mãos são mãos de um esqueleto. As pontas dos dedos feridas e sanguinolentas.
O último homem caiu. Não se lembra do que aconteceu. Guerra? Cataclismo? Doença? Não sabe nada. Por dentro da sua cabeça há apenas um ruído assustador, contínuo e surdo. Olha e não compreende. Perambulou errante, aos tropeções, mas a cada momento o tempo se dilatava mais. Perdeu o rumo, perdeu o norte, perdeu o sentido de existir.
Sente fome mas só tem os dedos para comer. O sangue tem um bom paladar mas há dor.
Sente sede mas não consegue se lembrar do que é água.
Olha à frente e não percebe o que vê. Há uma natureza que não tem significado. Cores não mais existem, apenas tons de cinza e muita escuridão espalhada sobre as coisas.
O coração está dentro da cabeça. Explosões tremendas que fazem balançar seu corpo. Tudo é dor. Fome e sede e dor. Mas já não tem capacidade para perceber o que está acontecendo. Contrai-se por inteiro. É apenas um moribundo animal encolhido.
O último homem está no limiar do fim.
Fecha os olhos e vai deixando cair a cabeça. O sono da morte. O silêncio vai tomando conta de suas veias. O rumor surdo vai se apagando. E as pancadas do coração vão indo para longe… para longe…
O último homem, que não sabe por que morre nem por que é o último, abre os olhos pela última vez.
E seu coração silencia.
Wedo, a deusa do arco-íris dança iluminada à sua frente. Ele não se move. As cores tremulam e faíscam esplendorosas. Todo o ambiente se enche de deslumbramento. Mas o homem nada vê.
Ah Puch se aproxima dele. Tem a cabeça descarnada, uma caveira terrível, e ao seu lado sibilam e estalam apavorantes cascavéis. Executa uma dança macabra ao som dos implacáveis chocalhos. O homem não se move, seus olhos esbugalhados não vêem e seu coração não teme.
Ah Puch se afasta assustado porque quem surge ali, agora, é Nocuma. Nocuma, o que criou o céu e a terra. E fez do barro a Ejoni, o primeiro homem, e Aë, a primeira mulher. Nocuma olha entristecido o último homem. Aproxima-se. Curva-se. Toma-lhe o pulso. Ossos e pele sem palpitação. Não pode fazer nada. Nocuma chora.
E surge Li N’Gwa Se N’Gwe, a mãe de todos! Balança suas mamas colossais e dança ao redor do último homem. Mas está morto o último homem e, se os deuses ainda não o sabiam, a morte não oferece retorno.
Mas que bando peregrino é esse que se aproxima? De todos os lados figuras assombrosas, gigantescas, umas, transparentes, outras, em torno do homem morto, do último homem que acabou de morrer! Vão se reunindo as criaturas, e tudo chameja, reflexos exuberantes de todas as cores, a aurora boreal, o resplendor absoluto.
Teshub e sua esposa Hebat!
Lug, o deus soberano mágico e Kumarbi, o pai de todos e Anu, o grande!
Perun, o raio, e Manitô, o supremo mundo natural!
T’ien, Ti-e, Tsu Tsung, jade, sedas de mil cores, rostos da porcelana mais pura!
Tezcatlipoca, Quetzalcoátl e Tláloc, imensos, tremeluzir de todos os brilhos! e prata! e turquesa! e obsidiana! Huitzilopochtli, o feiticeiro deus colibri e Xochipilli, o príncipe dos lírios, plumas e ouro!
E os guerreiros gigantes Tor, Loki, Odin, Lug, escudos, espadas, lanças e martelos! e Freia!
E em torno do cadáver começam já a ecoar os primeiros lamentos de dor.
Resheph e Anat e Horon e Baal e El!
Lamentos já gemidos.
Sin, Shamash, Assur, Marduc, Enlil, Adad e Ishtar!
Gemidos já desesperados.
Tangaroa, Tane, Tu, Hina, Pele, Rongo!
A dança funeral, o grande círculo macabro, a procissão funérea.
Oxalá, Xangô, Oxóssi, Iemanjá, Oxum, quantos são? Metais e máscaras, anéis e cetros, brilhos de miçangas e espelhos! E coroas e cajados!
Uivos e clamores.
E que multidão é essa? Cabeças de elefante, seis braços! Reluzir de diamantes, safiras e rubis! Vishnu, Prajapati, Purusha, Kali, Ganesha, Varuna, Indra, quantos são?, eles se transformam, um é muitos, muitos são um, entoam um lamento interminável, um agonizante murmúrio de desespero.
E num barulhento cortejo avançam agora estes seres multicoloridos, alguns com cabeça de animal: Hator, Osíris, Ísis, Nut, Anúbis, então estávamos enganados? Então a morte é para sempre?
E essas etéreas figuras de maravilha? Todos muito róseos e louros e quase todos seminus e seus véus são levíssimos e seus passos não tocam o chão e Zeus e Hera e Atena e Afrodite e Apolo e há outros! E são tantos! E que vieram fazer aqui? Vieram presenciar a morte? Deuses gregos não podem! Vieram assistir à derradeira queda de Prometeu? Contemplem o espetáculo!
Pasmo.
E sofrimento!
E diante da incalculável multidão de cores e formas, eis que se corporificam as três grandes entidades dos monoteísmos: Jeová, Jesus e Alá.
E se misturam e se perdem e já são todos apenas criaturas de todas as cores e todos os brilhos que se organizam num gigantesco funeral.
E, de repente, assustadoras, mas elas mesmas espantadas, vão surgindo fantásticas criaturas, misturas do delírio total!, híbridos da alucinação!, gigantes com asas, dragões, cavalos não cavalos, serpentes já divindades, pedaços de deuses e pedaços de pesadelo, o horror da colagem desesperada, esporos saltados dos cérebros doentes e infantilizados, os filhos do susto, os netos do arrepio, os herdeiros do medo, os monstros de todas as lendas e os deuses não se inquietam porque já se acostumaram a estas ramificações da fantasia tresloucada e porque sabem eles mesmos, os deuses de todos os tempos, que também eles têm a mesma perdida origem, a célula primordial, brotada por geração espontânea no coração ignorante e aterrorizado do primeiro homem.
Ninguém ousou tocar o cadáver.
Todos sabiam que ele pertencia a Tellus Mater, Gaia, Papa, Luminuut, Oduna, Tamaiovit, Asaseya, Okwapin, Mokos.
A Terra.
Os deuses todos, mais do que todos os homens, sabem agora que só se morre uma vez. E que a morte é a única divindade que prevalece.
Alá, Jeová e Jesus se dão as mãos e marcham. Harmonizam-se e entram de acordo. Mas percebem que agora é tarde demais. Que isto de nada mais adianta. E percebem também que acabam por fundir-se numa só criatura desesperada.
Todos vêm e vão em filas, todos os deuses de todos os tempos, e querem chorar esta morte de corpo presente.
E entre olhares desolados e entendimentos silenciosos, todos os deuses de todos os tempos resolvem, para aplacar a dor da perda irremediável, decidem que vão entoar um canto fúnebre, um hino à morte, um réquiem, um peã, um lamento gigantesco e extraordinário que traga a consolação ao inconsolável; algo mais que o canto de Ngofio-Ngofio, o pássaro da morte. E resolvem que junto às vozes soarão os prodigiosos sons dos instrumentos feitos pelo homem. E seja essa liturgia do despedir e da saudade a última manifestação de todos os deuses de todos os tempos.
Mas nada é ouvido, além de um gemido estrangulado nas gargantas divinas. Nenhum som se transforma em melodia. É que os deuses, sem a participação humana, não são capazes de criar música.
Choram os olhos de todos os deuses. E a procissão forma um grande círculo que começa a flutuar em torno do planeta azul. Plumas vão caindo! Diamantes se vão perdendo! Vestes suntuosas flutuam, anéis gravitam e mudam de órbita, coroas descoroam e tombam. Véus de uns passam a cobrir outros. Lanças que flutuam lentas mudam de mãos e são abandonadas e viram cor e luz e se integram ao grande círculo.
Entretanto, os rostos já não são tão belos.
Porém, por fidelidade ao homem, eles continuam a flutuar, misturando-se entre si. Matizes mil, a policromia e o brilho, sóis espalhados entre sedas e jóias, todas as cores e todas as estrelas e todos os luzeiros cambiantes, a poeira iluminada, a Via láctea, não láctea, mas iridescente, já não há rostos, já não há formas, mas ainda há fulguração e resplendor.
O grande círculo paira em torno do planeta azul.
Visto de longe, o planeta ganhou um anel. Como os de Saturno.
Já não sabem chorar os deuses todos de todos os tempos. Já não sabem quem são. São nuvens sem cor, sopro e luz. São poeira em um colossal anel, agora monocromático, que gravita em torno de um perdido planeta azul.
Quanto tempo durou aquele anel silencioso?, formado por uma estupenda fosforescência espectral! Dez anos? Cem anos? Mil anos?
O tempo está parado.
Não existe tempo, quando não há mais esperança.
Campo Largo, 24 de setembro de 2003.
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a espécie humana 55, 56, 57, 58 e 59
A Espécie Humana – capítulos 55, 56, 57, 58 e 59
55.
liguei a fita de Gounod. e sentei-me, colocando sobre as pernas um travesseiro onde deitei a cabeça de meu filho.
Ego sum…
pai, grandes obras foram dedicadas à religião. os maiores músicos acabaram por criar obras-primas em torno da liturgia. e, ao final, o catolicismo ficou com um patrimônio artístico dos mais espetaculares.
isto não tem nada a ver com Deus mas com o Poder e com a criatividade do ser humano. o Poder compra, sustenta e garante a manutenção da arte. o homem cria obras-primas porque é capaz de criá-las. se não tivesse um pretexto, inventaria. ouça esta música, filho. os instrumentos têm sons prodigiosos. as melodias são dilacerantes. acordes e polifonias, parece que isto já existia, o autor apenas tirou-lhe a névoa que a escondia. e essas vozes! criaturas privilegiadas que transformam suas gargantas no instrumento mais esplendoroso de todos.
pouca gente gosta disso.
Kamalas. novamente a imagem da criança que não tem oportunidade pra aprender. já te falei da estética da nostalgia?
não.
é assim. numa determinada época, identificamo-nos com determinada obra. fiquemos com a música. uma canção infantil, quando criança. uma canção de amor, quando apaixonado. uma novela repete a mesma música durante meses, é claro que após um tempo todos estão gostando dela. então, o que sucede? esta obra vira para nós uma coisa bela. nem sempre é bela. mas como vem sempre carregada de uma carga de nostalgia, ah!, essa música! acaba por ferir forte as cordas da nossa emoção.
o que quero dizer, então, é que existe uma valoração da obra de arte que considera, não a beleza em si, mas a emoção que ela provoca. pessoas vão a um concerto: o Messias, de Haendel. bocejos e tédio. não de todos, claro! então irrompe o Aleluia, oh!, os corações todos estremecem. Kamala não aprendeu a diferença entre o que é belo e o que comove.
coelum novum et nova terra…
não está cansado?
hoje não tenho esse direito.
você esteve espantoso, pai. a dança dos ditirambos… falou tudo que eu queria ouvir. mas eu acabo me tornando mais pessimista do que já sou.
e se amanhã de manhã você passear com o menino e encontrar a mais linda borboleta azul, vai esquecer o pessimismo e se encher de esperança. como vai o livro?
estou terminando. estou apavorado!
apavorado! é a sua cabeça!
deixa eu aproveitar e perguntar: por que você foi tão severo?, quando Kamala morreu.
isso de deixar que os mortos cuidem dos mortos, só no evangelho. pra um vivo já não é fácil!
te decet hymnus…
estas coisas de Deus e religiões não me incomodam tanto, pai. mas as coisas do homem e seu sofrimento, é tão difícil! mesmo porque não tenho certeza se entendo. há sofrimentos inevitáveis, mas tanta coisa podia ser mudada!
suba e me traga a História da Civilização Ocidental, de Burns. quero te mostrar uma coisa.
o que fiz. meu pai folheou o livro, me indicou e eu li:
A democracia econômica, conforme sua definição geral, traz a noção de que todos tenham oportunidades iguais para atingir sua capacidade potencial. Nada tem a ver com aquele conceito liberal de igualdade perante a lei, debochado por Anatole France quando dizia que rico e pobre têm o mesmo direito de dormir debaixo da ponte e mendigar o pão. Democracia econômica significa que crianças não devem trabalhar em fábricas, sendo exploradas por empregadores egoístas; velhos não devem ser atirados aos montes de lixo humano depois que máquinas desumanas esgotaram suas energias; finalmente, não são os operários quem deve arcar com todo o peso do risco industrial, do desemprego e da doença.
isto foi publicado em 1941. havia então uma guerra. mas este conceito só funciona para o primeiro mundo. talvez, nem lá.
este mesmo livro, pai, fala que a morte de Schubert, de fome e doença, foi uma nódoa sobre o século dezenove.
sim. mais um crime perpetrado pela humanidade.
e eles, os americanos, mesmo com este livro, não aprenderam?
aprende quem pode.
tuba mirum spargens sonum…
coloco a História da Civilização na mesa, sobre outro livro, e percebo que o outro livro é o volume com as aventuras de Nils Holgersson. minha lista de 10 livros só tem oito. quero que a partir de agora Nils Holgersson faça parte da lista. principalmente nos dias de hoje, em que os animais são tratados com tanta crueldade. fica ainda uma vaga…
pai, você disse que a quantidade de processos judiciais poderia ser um fator pra se determinar sobre o atraso ou o progresso de um país…
digamos, sobre a civilidade e a incivilidade de sua população, isto é, sua capacidade de convivência.
este critério não é considerado?
não sei. mas agora, na calma da noite e no meio de nossos chazinhos, eu penso em algo mais terrível. o livro que eles tanto louvam, diz: bem aventurados os que têm fome e sede de justiça. e, na terra, qual é o prazo pra que essa fome e essa sede de justiça sejam saciadas? quantos dias?, quantos meses?, quantos anos?, a justiça tem o direito de ficar rolando pra cá e pra lá nas pastas da magna caterva, aumentando o número de páginas, alimentando com honorários, mas não a aqueles que precisam e esperam ser saciados, quantos?, quantos anos? então dá pra dizer que o país mais triste seria aquele em que, em média, os processos demoram mais tempo. talvez, um programa chamado Fome e Sede de Justiça-Zero?
Judex ergo cum sedebit…
trago mais chá. pai, a religião já esteve mais ligada ao Poder. parece que hoje…
alguns países ainda são vinculados à religião. mas, de fato, o dinheiro hoje está concentrado nas mãos, não de um país, mas de grupos de poucas pessoas. quem são? onde se escondem? manipulam governos, manipulam jornais…
rex tremendae majestatis…
mas e os americanos?
quer saber minha opinião? os americanos funcionam hoje como uma guarda pretoriana. talvez eles mesmos não saibam a quem defendam, já que estão preocupados apenas com o soldo que lhes mantém o estilo de vida.
estou com um pouco de sono. mas então este presidente que passa por cima de resoluções da ONU…
não passa de um metido chefe da guarda pretoriana.
ne me perdas illa die…
e por que a droga?
veja. hoje tomamos licor. riso. quer dizer, você tomou um traguinho e eu engoli o resto. todas as culturas, ou quase todas, usa este tipo de escape num momento sagrado em que tentam entrar em contato com a divindade. mas durante o resto do ano há trabalho e prudência, como se fosse um controle a favor da sobriedade. a nossa civilização perdeu o controle. diga-se porém que os nobres de todos os tempos, quase sem exceção, nunca exerceram este controle sobre si mesmos. a nossa civilização quer escapar durante o ano todo. por quê? por que os jovens do mundo se drogam? por que os jovens de alguns países se drogam mais do que os de outros? qual é a mais importante característica de um usuário de droga? eu diria que é a adolescência prolongada. o usuário de droga, como o adolescente, precisa ser mantido pela família. não trabalha e vira um tipo de piolho. e o usuário de droga, como o adolescente, vive no mundo da fantasia, os últimos momentos da fantasia infantil. a pergunta fica sendo: por que o drogado resolve viver nesse estado de eterna adolescência? talvez ele apenas se recuse a aceitar o mundo à sua volta. um mundo que se diz adulto mas não passa de uma projeção de um tipo de inferno da civilização.
lacrymosa dies illa…
fecho os olhos e tento me concentrar na música. estou cansado mas uma inquietação nervosa aninhou-se no meu cérebro.
quer dormir?
não.
vou dizer só mais uma coisa. se esse país que acumulou armamentos capazes de destruir o planeta diversas vezes para agora se pavonear feito um garotão inseguro e neurótico, e por isso mesmo muito agressivo e perigoso, se esse país tivesse investido todo o seu dinheiro em educação, filósofos e psicólogos nas salas de aula, filósofos e psicólogos, ah!, esse país seria o esplendor! a Nova Jerusalém na terra! o esplendor!
quam olim Abrahae promisisti…
mas não passam de um Fomá Fomitch.
como?, pai.
eles, os americanos, são o Fomá Fomitch da nossa época.
dei uma gargalhada. estivemos calados um tempo.
et lux perpetua luceat eis…
os cães estão tão quietos, pai. fizeram festa quando cheguei com o menino e agora dormem. parece que não aconteceu nada.
silêncio. meu pai fechou os olhos e recostou a cabeça no colo de Joan Baez. levantei-me e troquei a fita. ouvi os primeiros fogos de artifício. fui lá fora. esperei um tempo, passeando sobre a grama. de vez em quando, olhava o portão, onde há pouco tinham estado os cães negros. entrei. meu pai cochilava. sentei-me à mesa e fiquei ouvindo a música.
a música é uma bolha confortável e dentro dela flutuamos e é como se houvesse na alma a doce embriaguez e o perfume do licor de banana. fecho os olhos para melhor me perder nesse rio de sons perfumados…
o súbito silêncio me resgata da sonolência. meu pai continua dormindo, seu respirar é lentíssimo e uma paz como que paira em seu semblante. levanto-me e coloco a fita do Réquiem de Dvorjak.
e, novamente, me deixo levar nessa jangada de sons, acordes, vozes, textos…
mors stubebit et natura…
quando uma pessoa enfrenta uma situação desagradável, se não vê saída, ela fantasia. recurso primeiro para… é comum alguém desejar a morte de outrem. aplacar a dor ou resolver um problema com um fato apenas imaginado. eis aqui a célula-mater de tudo quanto derivará depois.
liber scriptus proferetur…
e quando duas crianças falam, vamos brincar de mocinho e bandido, estamos novamente diante de uma fantasia. mas, consciente! eu sei que não sou o bandido, faço de conta. brinco, jogo, homo ludens… quando o adulto concretiza um livro ou um filme ou uma música ou um quadro, também brinca, joga, o homem que faz arte… o elán é o mesmo do ludens… a arte seria a única forma da fantasia consciente…
et de profundo lacu…
e a filosofia? a filosofia…
abri os olhos. por que estou tão assustado? olhei para meu pai e percebi que ele estava me fitando. parecia muito calmo. levantei-me, fui até o fogão, coloquei algumas lenhas finas, fiz reviver o fogo.
trouxe um chá novo, pai… o meu amigo filósofo disse que talvez o problema da ecologia ajude a humanidade a sair desse tipo de impasse.
eu já fico esperando um cataclismo. um grandioso desastre telúrico. ou, quem sabe?, um microbiozinho mais obstinado. os transgênicos estão aí. defendem os transgênicos mas ninguém fala nas possibilidades de uma mutação.
que horror!
leia o livro A Raça Menina, de William Auld. somos crianças, engatinhamos.
somos Kamalas?
Kamalas, filhos e netos de Kamalas. não aprendemos o mínimo e procriamos.
pecata mundi…
recolhi as xícaras e levei-as à mesa.
meu pai novamente fecha os olhos. parece que delira baixinho:
o socialismo… o mito do super-homem de Nietzsche, não para o ariano infantilizado, mas para toda a humanidade… uma escola igual para todos os filhos do homem, despertando em cada criança o semideus que aí jaz à espera. todos se transcendem e se transformam em super-homens… e quando um estiver frente ao outro, haverá lampejos mas não de espadas… lampejos de respeito e admiração em seus mansos olhares de cordeiro… e, se não falarem a mesma língua, falarão, naturalmente, a única língua que pertence a todos…
recoloco a cabeça de meu filho sobre o travesseiro em meu colo, encosto-me e fecho os olhos. queria que essa música nunca acabasse. queria que essa noite nunca acabasse.
quantus tremor est futurus.
meu pai continua delirando… e canta às vezes…
na minha opinião, já passou da hora da ONU dar uma bronca nas grandes gravadoras de discos. eles pegam o vômito, o escarro, a pústula e a excreção, vestem-nos de ouro e seda, alojam-nos em andares inteiros de luxuosíssimos hotéis, transformando-os em semideuses intocáveis, diante de cujo peido pasmam as franguinhas todas e suspiram todos os cordeiros, prontos para ser sacrificados nas primícias da droga, espalham sobre o planeta a diarréia dos sons do horror e as melodias do cretinismo e criam para o filho do homem o ideal de se transformar num imbecil que aplaude a pestilência e sonha ser, ele mesmo, um dia, uma dessas imagens de pesadelo. quem vai chamar as gravadoras à responsabilidade pela incitação ao uso da droga, pela apologia da manhã do apocalipse?
ah, look at all the lonely people…
não perceberam os donos das gravadoras que os vapores do miasma destruidor sufocarão também seus próprios filhos?
no one was saved…
e pensar que houve um dia um grupo que mostrou, através de canções belíssimas, a possibilidade de um caminho a ser trilhado. qual! também os besourinhos se perderam nel mezzo del cammin…
don’t carry the world upon your shoulders…
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