Alma desdobrada, cap. 91, 92, 93, 94, 95 e 96.

Alma desdobrada, capítulos 91, 92, 93, 94, 95 e 96.

 

091.

          estou fazendo hora numa livraria, descubro homero, a odisséia. abro distraído e levo um susto ao ler os nomes dos deuses do olimpo. então é verdade que há livros que falam dessas criaturas? namoro o livro por diversos dias. chegado o pagamento, compro o homero e mergulho num mar de desvairadas aventuras. todo eu estremeço de felicidade. minha cabeça se povoa de fantasias.

  

092.

          o brunetti me sugeriu que eu fizesse uma árvore genealógica da família e falasse de cada pessoa. patente ficou para mim que os padrões que recebi de minha família, no que se refere a diferenciação de sexos, é mais ou menos assim definida:

         ser homem é ser marginal, bêbado, violento, diabólico. ser homem não presta. presta ser caseiro, obediente, bonzinho.

  

093.

           houve um tempo dentro de mim em que o ato sexual transparecia como o mais violento dentre os pecados. dormir com uma mulher era um fato que deixaria marcas de um espantoso arrependimento. penso agora, aqui, enquanto escrevo, que eu poderia ter atribuído pecado a um ato que, por outros motivos, me apavoraria.

         por que motivos eu me apavoraria?

  

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Alma desdobrada, cap. 86, 87, 88, 89 e 90.

Alma desdobrada, capítulos 86, 87, 88, 89 e 90.

  

086.

 

         escrevi na minha mão: amar é achar um pai; desamar é ficar novamente órfão.

  

087.

          não sei o que espera meu choro. não sei por que ele não se desencadeia de vez, em vez de ficar se amarrando por dentro. me amarrando, como eu tenho sentido nestes últimos dias.

         me amarrando sem cordas. num purgatório.

 

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Alma desdobrada, cap. 82, 83, 84 e 85.

Alma desdobrada, capítulos 82, 83, 84 e 85.

  

082.

          saio da terapia e entro na estação terminal do ônibus expresso. não quero contatos, quero apenas ir para casa, para dormir por um bom tempo um sono de recém-nascido. mas vejo que há um jovem se dirigindo ao sanitário. vou atrás. ele pára no bebedouro, eu entro. enquanto limpo o rosto com o lenço, ele se chega. é forte, tem o rosto bonito, olhos de anjo semimorto, estranhos olhos aguados de um verde esquecido no antes. é um olhar de vampiro, meio cadáver. ele percebe que eu começo a desabotoar a calça, fixa os olhos em minhas mãos. eu urino e exibo meu princípio de ereção. ele urina, olhando-me com olhos de obsessão, mas protege a visão do seu sexo.

         está indo pra casa? sim! mora onde? atrás do boa vista.

         silêncio. olhares cúmplices. eu sorrio.

         quer dar umas voltas comigo? não tenho dinheiro. eu tenho. posso pagar o ônibus.

         ele não entende. está meio tonto e suas palavras saem com dificuldade, lentas.

         não quer mesmo sair comigo? eu tenho de ir pra casa. vai depois. não, eu não tenho dinheiro. eu tenho.

         tiro do bolso o dinheiro e mostro, uma nota de duzentos, uma de cinquenta.

         me empresta estes duzentos? não posso; vem comigo. não, tenho de ir pra casa, não posso sair. por que? sou doente. o quê você tem? problemas psíquicos.

         e aponta pra cabeça.

         então, a gente se vê noutra hora, tá?, tá. ciao.

  

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