Alma desdobrada, cap. 91, 92, 93, 94, 95 e 96.

Alma desdobrada, capítulos 91, 92, 93, 94, 95 e 96.

 

091.

          estou fazendo hora numa livraria, descubro homero, a odisséia. abro distraído e levo um susto ao ler os nomes dos deuses do olimpo. então é verdade que há livros que falam dessas criaturas? namoro o livro por diversos dias. chegado o pagamento, compro o homero e mergulho num mar de desvairadas aventuras. todo eu estremeço de felicidade. minha cabeça se povoa de fantasias.

  

092.

          o brunetti me sugeriu que eu fizesse uma árvore genealógica da família e falasse de cada pessoa. patente ficou para mim que os padrões que recebi de minha família, no que se refere a diferenciação de sexos, é mais ou menos assim definida:

         ser homem é ser marginal, bêbado, violento, diabólico. ser homem não presta. presta ser caseiro, obediente, bonzinho.

  

093.

           houve um tempo dentro de mim em que o ato sexual transparecia como o mais violento dentre os pecados. dormir com uma mulher era um fato que deixaria marcas de um espantoso arrependimento. penso agora, aqui, enquanto escrevo, que eu poderia ter atribuído pecado a um ato que, por outros motivos, me apavoraria.

         por que motivos eu me apavoraria?

  

  094.

          como foi que deus se manifestou em meu espírito? primeiro, foi aquele bloco compacto de uma criatura onipotente e cheia de fúria, prontinha, que me obrigaram a engolir. esta coisa indigesta se foi transformando lentamente dentro do meu mundo, modificada por minhas dores, burilada por minhas esperanças, erodida por um crescente ceticismo. cristo virou tão só um grande homem e deus era algo como uma fonte de energia.

         a violência do meu coração, que insistia em cobrar da divindade a remissão de dores não merecidas, a violência do meu coração continuou exigindo coerência de uma ideia que tinha cada vez mais dificuldade por se manter viva. isto a que chamam deus acabou por se esfarelar de todo. honestamente, não preciso deste deus. mais honestamente ainda, esse deus não me incomoda. não dói nem brilha.

         esse deus de todas as gentes é uma ferida cicatrizada.

         antiga, antiga…

         marcas bobas a que já me acostumei.

  

095.

          tenho quatorze anos. yo tenia catorce años y era orgullosamente oscuro, cantou neruda. estou na varanda em vila isabel e limpo um armário de banheiro, que deitara no chão. enquanto limpo, clara, uma menina de quinze anos que morava na nossa casa, vai pegar alguma coisa. ela pára justamente sobre o armário e eu vejo no reflexo do espelho sua calcinha toda suja de sangue. eu já sabia por alto o que era menstruação. então, isto é que é ser mulher?, me perguntei. a visão me perturbou e me perseguiu durante muito tempo. se pensava em mulher, o que me vinha à cabeça era uma vagina ensanguentada.

  

096.

        V…, V…. tento às vezes entender o que se passava na tua cabeça, naqueles dias loucos da nossa juventude, em que conversávamos todo o tempo. em mim, as coisas estavam claras. eu sabia que estava apaixonado por você. sabia que queria vê-lo todo o tempo. sabia que acordava e me lembrava de que você existia. sabia que era impossível um toque de mãos, um abraço, um beijo. certa noite, na despedida, você passou o braço pelo meu ombro e me apertou num mal disfarçado abraço. meu sexo acordou violento, todo eu estremeci e revivi aquilo dias e dias seguidos, mistura de felicidade e um medo ameaçador . lembro também que uma vez eu me masturbei pensando em você. fiquei perturbado porque não era o amor misturado ao sexo que eu desejava. desejava o amor idéia, nós dois em função da música, da literatura, da pintura, do cinema.

assim era eu. e você?, como seria você?

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