Alma desdobrada, cap. 86, 87, 88, 89 e 90.

Alma desdobrada, capítulos 86, 87, 88, 89 e 90.

  

086.

 

         escrevi na minha mão: amar é achar um pai; desamar é ficar novamente órfão.

  

087.

          não sei o que espera meu choro. não sei por que ele não se desencadeia de vez, em vez de ficar se amarrando por dentro. me amarrando, como eu tenho sentido nestes últimos dias.

         me amarrando sem cordas. num purgatório.

 

 088.

          isto também é um sonho: caminho pela rua senador nabuco, tenho ao lado um jovem mais velho, do grupo de amigos do meu irmão. nossos corpos estão muito próximos e se tocam e eu me encho de emoções. então, eu enfio a mão no seu bolso e seguro o seu sexo. acordo cheio de uma desgraçada dor. tinha 13 anos.

  

089.

          devia ter doze, treze anos, você, criatura, pensava coisas mais ou menos assim: o que farei quando crescer? pintar? serei filósofo? escritor? músico? sei que farei aquilo que resolver fazer.

         sou tímido, covarde, medroso. mas isto não passa de uma fórmula maligna para proteger aquilo que sou.

sou.

  

090.

          Y… tem a boca mais gostosa do mundo, como um fruto, oferecida a pequenas e malvadas dentadas. ou lambidas, que tiram o doce sem machucar. meu casto fauno.

         caminhamos para casa, eu vou para o apartamento e ele continuará o trajeto sozinho. caminhamos pela rua quinze. quando passam grupos de jovens, conversando alto, eu tenho medo de agressões. tenho medo da insanidade imoral dos moralistas. é estranho que venhamos a chamar de moralistas os que não construíram sua própria moral. pessoas que se apropriaram da moral pronta, indiscutida e caduca, deveriam ser chamadas imoralistas.

         como este tema me perturba.

         eu passo com ele pelos caminhos da cidade e imagino pessoas imaginando: o que é que esse cara mais velho tem, pra conquistar um anjo tão lindo com esse tão louco e brilhante olhar? assim é Y…

         nas últimas quadras ele me toma pelo braço. seguimos assim. agora, a vaidade é contaminada pelo medo. continuo com medo de agressões, apesar de sentir gostoso caminhar com Y… grudadinho no meu passo.

         vou seguir com você até a outra esquina, eu digo. e ele:

         não. eu é que vou te levar até o seu prédio. estou cansado de ter pai. quero ser pai um pouquinho.

         e como eu estou precisando de um pai. eu digo.

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