Alma desdobrada, cap. 239, 240, 241, 242, 243, 244, 245 e 246.

Alma desdobrada, capítulos 239, 240, 241, 242, 243, 244, 245 e 246.

 

239.

          nunca mais direi, de mim, sou homossexual; ou bissexual; ou voyeur; ou onanista; ou fetichista.

          sou o que sou: sexuado. e faço uso do sexo para dar e receber prazer.

          quem classifica pessoas por preferências sexuais está apenas dividindo para enfraquecer e governar; ou para se enfraquecer e se deixar governar.

 

240.

          figuinho, com todo o encanto misterioso de seus dois olhos, está lá embaixo, perto da cascata, morrendo. aplico-lhe injeções, dou-lhe comida na boca, figuinho está morrendo.

          estou só, ando no sótão, de um lado pro outro, desolado e cheio de angústia, porque rejeitado por quem me rejeita. eu choro, desespero e grito, em prantos: meu cavalo morre lá embaixo no escuro e eu nada posso fazer.

          figuinho, você nasceu em minha casa, levantou-se com suas pernas bambas, olhou-me e cheirou-me a mão. um dia tua mãe te coiceou, só porque você veio a mim. você a olhou com seus olhinhos de quem não entende a injustiça.

          e agora, lá embaixo, junto à água fria que corre, você está morrendo, com seus grandes olhos abertos.

          tenho dores fortes nos testículos, nas costas, nas pernas, mal posso caminhar. figuinho está morrendo. gilmar diz que é preciso matá-lo, ele não vai mesmo viver, é melhor pra ele. você é capaz de cuidar disso? sim.

          sinto que figuinho morre em meu lugar.

 

241.

          minhas mãos estão se enrugando. a meio caminho da velhice. não mais o que fui; ainda não o que virei a ser, se vier a ser. fala-se do passado, não do futuro.

          minhas mãos caminham em direção ao que não posso assegurar.

 

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Alma desdobrada, cap. 232, 233, 234, 235, 236, 237 e 238.

Alma desdobrada, capítulos 232, 233, 234, 235, 236, 237 e 238.

 

232.

          mãe, uma vez que você se me negou, a quem teria eu elegido para cobrir-me do frio?, cantar-me no sem sono?, limpar-me o suor diante da injustiça?, consolar-me nas pequenas fraquezas do meu cotidiano?

          não sei! não sei!

          quando escolho no meio das gentes um adolescente a quem proteger e a me satisfazer uma distante ânsia, cujo eco não atinjo, nessa hora estarei em busca de u’a mâe? ou de um pai? ou de ser eu mãe? ou eu pai? ou tudo isto junto?

          mãe, onde no mundo se aninhou a ave daquilo que você me significa? na música? na literatura? na amizade? na minha casa? naquilo que penso ser amor? hoje, em Z…? ou em minha proposta de rejeitar-me?

          terra, terra! conjunto de sons e cheiros e cores do universo! terra, água, fogo e ar! envolvam-me, protejam-me! apertem-me e me asfixiem com a presença viva do universo! tenho frio, quero ter frio! tenho fome, não tenho pejo de ter fome! tenho sede, não me assusta a sede do mundo! mas não quero ter medo!

          tenho medo de ter medo!

          terra, água, fogo e ar! envolvam-me, deem-me essa força escondida e tão necessária: a da autossuficiência!

          quero ser um filhote de gente, de bicho, de coisa, qualquer filhote que, já parido, disponha de agilidade para evitar predadores e suficiência para cuidar-se em sobreviver. quero-me filho sem mãe.

          quero-me filho sem mãe!

          nessa minha nova parição, com tantas parteiras ao meu redor, pai, mãe, angela, neuza, V…, W…, X…, Y…, Z…, leonardo e bruno, estas presenças que invoco, tão cheias de ausência…

          quero-me filho sem mãe, com gestação tamanha e suficiente a um monstro de mil pernas.

          quarenta anos, dos quais não me lembro de vinte!, quero-me filho sem mãe!

          quarenta anos e um novo parto. eu, zeus e hefaistos e atena, os três ao mesmo tempo.

           eu, zeus, de terrível dor de cabeça, pressentindo dentro de mim uma nova e ameaçadora presença,

          eu, hefaistos, munido do machado da determinação de não ter medo e de ir até o fim desta partenogênese,  

          eu, atena, saindo de minhas entranhas inteiro e armado para a guerra da vida e para as tentativas sedutoras das artes.

          eu-pai-parteiro-filho.

          eu, jorge, jorge teles. filho sem mãe.

          pra não correr novo risco de rejeição, serei eu o meu filho bem amado, como era atena para zeus.

          só não farei voto de castidade. eu me quero todo e inteiro. não tive medo de minha dor, como ártemis teve medo da dor de sua mãe.

          mãe, não ligue pra essas coisas que falo de rejeição. o problema não é seu. o problema é meu.

          o problema é sempre meu.

 

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Alma desdobrada, cap. 227, 228, 229, 230 e 231.

Alma desdobrada, capítulos 227, 228, 229, 230 e 231.

 

227.

incesto

 

menino, seja agora meu filho,

que eu quero ser seu pai.

ou seja então meu pai

que me faço teu filho…

 

não tenha vergonha de tua fraqueza!

estou aqui, agora, ao teu lado.

pra te alimentar,

fazer cafuné nos teus cabelos.

colocar baixinho a voz de bob dylan,

a chorar nosso mundo insano e cruel,

e te cobrir depois, só depois,

que você adormecer.

 

então, serei um pacotinho de filho

a procurar abrigo na gruta do teu abraço

e também um pedaço de pai

a vestir tuas pernas com as minhas.

e, na intenção feiticeira de te dar forças,

segurarei tua mão e mexerei em teus dedos

com cócegas lentas

e doces unhadas,

fingindo estar brincando com você.

mas o que vou querer mesmo

é acordar o teu desejo.

então, você se mexerá um pouco,

e agora,

nem pai nem filho,

nem eu nem você,

somos nós,

unhas e dentes e o tamanho descomunal

da aflição

que só termina com o orgasmo incontido.

 

e, se depois de outros sonos,

seja eu o inseguro e medroso e fraco,

serei então o filho

a procurar o ninho do teu abraço;

sem vergonha nenhuma.

você será meu pai

até a hora imprecisa em que desaparecem

pai e filho.

 

haverá um momento, quem sabe?,

em que não mais trocaremos de papel.

pai e filho, eu;

você, pai e filho.

tentando, nós dois, resolver carências

por tudo o que nos foi negado.

com nossos beijos,

com nossos gozos,

nossos olhares de sono

e nosso adormecer sem culpa.

 

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