Desistória – capítulo 7.

Desistória – capítulo 7.

 

 

            Eis que estou à porta do teu coração e bato. Se alguém ouvir a minha voz e me abrir a porta, entrarei nele, e cearei com ele e ele comigo.

 

            7. eclipse.

 

            meu universo se apagou no dia em que te vi.

            como explicar aqueles dias anteriores? que minha memória força por enevoar! eram dias mortos, em que eu flutuava dentro de uma água de vida tão densa, morna, opaca. eram de um respirar não percebido; de um palpitar de coração com compassar monótono automático, num ritmo que se repetiria até o último alento; de um olhar em torno que não permitia distinguir essências de coisas, espíritos de objetos, faíscas de gestos, estampidos luminosos de sorrisos. eram dias de morte; como se eu não existira até então, apenas desenrolasse a parcela de minha existência. cabisbaixo e feliz por cumprir o destino, imaginando, tendo aprendido, que aquilo que eu vivia não vivendo, fosse de fato um destino. o que é que torna legítimo um destino humano? que tremor de olhar? que descompassada aceleração de coração assustado? e que nome tem o destino sem o tremor, sem o susto, sem as fagulhas? que nome aplicar à vida que não é vida? como separar a vida viva da vida de espelho? falsa imagem de uma realidade que não atingimos em cheio, apenas sabemos refletida num espaço que, com toda a certeza, não existe. que podia eu fazer com todo aquele vazio? não se tapa buracos com mãos cheias de nada!

            aquele destino não me destinado, aquela vida não me soprada, eram o meu destino e a minha vida antes de você. uma criatura eu, à espera de mim mesmo; de um abrir os olhos, de um acordar, de um sopro de um novo deus de carne e osso, a insuflar nos meus pulmões, a luz do significado; talvez ainda obscuro, mas, pelo menos, presente!

            que sabia eu antes de você? que verdades tinha estudado? e que mentiras tinha aprendido, dentro das verdades estudadas?

            que o mundo era bom, que o homem devia ser bom! que existia o mal e o bem e que o homem nasceu para ser tentado. que o bem se esconde atrás do sofrimento. que o homem já nasce culpado. estas eram as mentiras que se escondiam atrás das verdades estudadas.

            que houve um deus que criou o mundo e o céu e o inferno. e criou o homem à sua imagem. e é um deus triplo, o mistério de três pessoas numa só pessoa; o pai, a mãe e o filho. cada qual com sua função: um pai ardente de ação, uma mãe prenhe de amor, um filho carente de justiça. e esse deus habitou a terra para dar-se a conhecer aos mortais, ensinando-se a todos nós, na pessoa de seu filho que, não compreendido e injustiçado por todos, estivera toda a sua curta vida amarrado com tiras de couro numa cama de madeira, em forma de cruz, tratado como louco. mas seu olhar de força e mistério ensinou a um dos auxiliares que dele cuidavam e este saiu depois de sua triste morte, a espalhar a nova de sua celestial mensagem. e todos compreenderam e ensinaram por sua vez quem era o deus verdadeiro, de que era feito, que dores sofrera, que verdades trouxera, que deveres impunha.

            e os homens acabaram por adulterar a noção do divino. cada terra, conforme suas lendas anteriores, seus costumes, suas fantasias, cada cidade, cada região, transmutou a divindade em centenas de divindades menores e mais fracas. só o deus verdadeiro conseguiria unir o homem. não aquelas tantas divindades estranhas e pessoais. aqui, o filho se transformava no deus da guerra, ali, a mãe era já uma deusa de sedução, além, o pai virava um deus de chuvas e trovões e depois o filho era o deus do sol e a mãe a terra com suas searas maduras e o pai um gigante divino que bebia sangue humano

            e aprendi mentiras de verdades, que diziam como a igreja universal invadiu cidades e degolou reis, para que o deus verdadeiro fosse cultuado. e de como os homens amarelos lutaram com os negros, por seus deuses. e de como os homens negros sacrificaram mil crianças brancas, por seus deuses. e de como os homens brancos invadiram terras e violaram mulheres amarelas, por seus deuses. e de como brancos lutaram com brancos e negros com negros e amarelos com amarelos, destruindo-se pelo que chamavam o deus verdadeiro.

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Desistória – capítulo 6.

Desistória – capítulo 6.

 

 

 

            E não sabes que és um miserável e infeliz e pobre e cego e nu.

 

 

            6. o alvorecer da loucura.

 

 

            minha vida se compõe de duas histórias: antes de mim e depois de mim.

            antes de mim é aquele trágico período de minha infância e adolescência, quando as coisas que eu vivia eram tidas por não vividas. o pai e a mãe e o corcunda não acreditavam em nada do que eu contava. uma ou outra vez eu notei que eles se entreolhavam com maliciosa cumplicidade, deixando-me num confuso estado de perturbação: eu vivia ou não? estava morto ou não? as cartas de minha mãe, todavia, descobertas após sua morte, me deram a certeza de que eles me tomavam por louco.

            depois de mim é o resto de meus dias, após a noite da grande revelação, quando descobri que eles é que estão loucos. e que eu, como único ser vivo a ter exata noção dos fatos, tenho que me resignar com esta grandiosa missão de suportar pelos homens o seu insustentável fardo; tão pesado e indesejado, que, aos poucos, após provação e provação, tive que me transformar no deus que tenho sido. e digo que só esta metamorfose sublime, apaixonada e dramática, foi que tornou suportável ao meu coração a dor causada pelo magno pecado de existir. e também sentir que paguei parte de minhas culpas acendendo aos homens um caminho de luzes e verdades eternas, dando-lhes um sentido para a vida vã de banidos dos três paraísos.

            começo de um pouco antes do começo. meu pai era senhor de uma vasta região. morava com sua filha num enorme palácio, cheio de criados e parentes. a vida no palácio, era uma festa inacabável, a vida no palácio. músicos e dançarinos e artistas animavam os banquetes e os pratos se sucediam com fartura. eu não existia então. o corcunda me contava estas histórias. e contava que, terminado o banquete, todos se punham a ouvir os peregrinos viageiros com suas fantásticas narrativas inacreditáveis. meu pai passava por excelente anfitrião, vinha gente de todos os lugares visitar suas terras. de tão longe vinha gente, contava o corcunda, que algumas pessoas diziam ter atravessado mais de sete mares, de tão longe vinham; tão longe e tão longe que não se podia acreditar que vivesse gente àquela distância de nossas terras. e todos aqueles estrangeiros dormiam e comiam no palácio de meu pai e depois do banquete falavam de seus estranhos e inusitados costumes. meu pai os despedia com presentes graciosos e lhes desejava tranqüila viagem.

            naqueles tempos os donos das terras tinham um poder de reis. recebiam palácios e fazendas como herança e dominavam suas regiões com severidade e violência. eram os senhores da justiça. suas terras eram habitadas por camponeses muito pobres que não tinham outro serviço se não cultivar os campos e pastorear. como as terras não lhes pertencessem, eram obrigados a pagar aos senhores o aluguel do chão. os pagamentos eram feitos em mercadorias e controladores senhoriais fiscalizavam cruelmente as entregas dos impostos. as vidas dos camponeses não tinham valor algum, qualquer pequeno delito era punido com a máxima pena: a morte, executada num local especial, geralmente dentro dos muros dos palácios: primeiro, castrava-se os culpados; as mulheres tinham os seios perfurados com estiletes; depois eram decepados os pés, as mãos e finalmente a cabeça. quando as vítimas perdiam os sentidos, após a decepamento de seus membros, os carrascos esperavam que tornassem à consciência. e as pessoas passeavam em torno, admirando a construção portentosa do palácio, conversando e comendo suas salsichas e seus chouriços, aguardando a continuidade das torturas.

            não havia lei escrita naquele tempo, a não ser um tipo de constituição que o senhor recebia dos pais, onde vinham relacionados os seus direitos. de cinco a cinco anos, membros mais velhos da família reunida podiam alterar a lista de direitos, ampliando assim o alcance da arbitrariedade dos senhores. vez por outra, constituições vizinhas entravam em conflito sobre fronteiras e os senhores faziam pequenas guerras entre si: os camponeses eram armados e estabeleciam-se novas demarcações. algumas raras vezes uma região era dividida entre herdeiros. no geral, um senhor acabava por dominar o vizinho, destruía-lhe o palácio ou mudava-se para ele, se assim fosse mais conveniente. fazia um recenseamento de todos os habitantes subjugados e criava o seu novo código de direitos.

            e foi assim que se passaram anos e anos. meu pai e sua filha envelheciam e para todos os pretendentes que apareciam para se casar com a jovem, o meu pai, contava o corcunda, meu pai apresentava uma série de exigências impossíveis de cumprir, enumerando a seguir os defeitos que via no pretendente. estes rareavam dia a dia, primeiro por saber das dificuldades que encontrariam, depois porque a virgem avançava em idade. a partir de um certo tempo, não mais se cogitou, então, de casamento. ambos estavam velhos, meu pai com setenta anos e sua filha com cinqüenta e cinco anos. a vida no palácio não perdera a vitalidade, mas tivera diminuído bastante o seu ritmo.

então, chegou um dia um estranho viajante. e o corcunda contou que o vira; ele era alto e magro, de rosto cadavérico, branco, olhar de florestas misteriosas e montanhas escondidas por neblinas. vestia um manto preto e era de se estranhar que suas barras não estivessem empoeiradas como as barras dos mantos dos comuns dos viajantes. ele nada comeu, além de um pedaço de pão e nada bebeu se não uma taça de vinho. e instado a falar de viagens e de sua terra, ele disse que apenas queria dar uma notícia: a de que a peste rondava o reino do meridião e o do setentrião e o do nascente e o do poente. e que a morte se espalhara por todo o mundo, sangrando com a mesma impiedade indiferente os velhos e os novos e os bons e os maus. então ele tomou uma taça, encheu-a de água, fez uma reverência à filha de meu pai, depois a meu pai mesmo, e saiu silencioso, levando a taça. ninguém o viu mais. é claro que não foi bem assim que contou o corcunda; quando eu percebi um pedaço de verdade escondido atrás de suas mentiras e outro pedaço de verdade guardado atrás de seus silêncios, conduzi a história de acordo com a minha verdade, que é a única verdadeira.

            meu pai anunciou que na manhã seguinte fecharia as muralhas que envolviam o palácio; que nos celeiros havia trigo e milho e aveia para muitos anos; que aquele que desejasse permanecer ali poderia fazê-lo; e que se fosse quem assim o entendesse.

            e na manhã seguinte o palácio amanheceu vazio. tinham ficado apenas ele, sua filha e o corcunda. assim contou o corcunda e assim decidi que fora.

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Desistória – capítulo 5.

Desistória – capítulo 5.

 

  

            E enquanto aqueles animais davam glória e honra e ação de graças ao que estava sentado sobre o trono…

 

 

            5. entardecendo.

 

 

            tantas e tais histórias e crônicas e contos e relatos e narrativas que eu já tenha escrito e eis que penso agora em escrever a minha própria vida. fico me perguntando até onde posso ir, para trás, tentando descobrir antecedentes à minha pessoa. sei que poderia consultar os documentos de meus pais e meus avós e meus bisavós. caminharia assim às avessas, até esbarrar nos ancestrais sem registros, anônimas criaturas do antes, que existiram para seu próprio existir e que deram impulso a fagulhas de vida que se multiplicaram e se juntaram e se reuniram naquilo que sou. eles não vieram para que eu viesse. nisso não creio. como não creio também que eu tenha vindo para que, através de mim, num futuro, uma vida futura venha a me reclamar como seu intermediário de existência. cada um vem por si só. e todos por tudo. é uma interminável cadeia de relações estreitíssimas, essa da vida, mas é a única cadeia em que se possa considerar cada elo como suficiente por si mesmo, apesar e apesar das dependências de cada um com todo o resto. apenas isto separa o homem do animal. talvez seja uma questão de ponto de vista. difícil isto de ponto de vista.

            volto a minha história. não vou procurar registros em arquivos cheios de mofo e esquecimento. tentarei começar do passado que conheço, pelo que me lembro de histórias ouvidas de avós e bisavós. não é que a soma dessas histórias vá se concentrar na minha história; vai essa soma passar por mim. passar por mim. passar por mim e continuar à sua maneira.

            tomo fôlego e tento me lembrar do que sei sobre os elos que vieram antes.

            o pai do meu avô paterno foi um soldado desconhecido que, numa invasão de aldeia, violentou uma menina de treze anos, já formada. ninguém sabia o nome dele nem a sua idade e ela não chegou a perceber a cor de seu olhar. eles entraram na escola silenciosa, embriagados e imundos, um bando enorme, e dividiram as presas entre si e se saciaram cantando o hino de seu país, a terra das altas montanhas. ao ritmo daquele canto selvagem, eles depositaram nos corações das menininhas o desespero do terror e nos úteros noviços as sementes de róseos e vivos bonecos de carne. as meninas foram escondidas e protegidas por mães aflitas e envergonhadas, esquecidas estas mães de que todos, jovens e velhos, tinham sofrido as mesmas humilhações; como se humilhações mascaradas se tornassem menos humilhantes. e os nove meses se passaram e num curto tempo a aldeia foi brindada com um grupo chorão de filhinhos do susto e do primeiro prazer inesperado.

            o parto de meu avô, consta que foi demorado e doído. sua mãe, ainda não com quatorze anos, lavou-o com cuidado, embrulhou-o na toalha branca recebida de uma parenta e disse que ia dormir. amanheceu pendendo na forca da praça, a mesma forca onde eram enforcados os ladrões mais perversos e os assassinos. ninguém soube como conseguira preparar a corda ou como chegara à praça, tão abatida estava. meu avô foi criado por sua avó até dois anos e depois entregue a uma instituição para órfãos. e os meninos sempre o chamavam de filho da forca. o filho da forca foi o pai do meu pai.

            o casal que foi pai e mãe de minha avó paterna, vivia numa grande cidade, num país do sul. ele, meu bisavô paterno, era um jovem rico que se dizia descendente de antigos reis. era inconstante e orgulhoso e tinha apenas quinze anos quando se casou. sua mulher tinha vinte anos a mais. ela se casara por pressão da família, de uma nobreza decadente e nenhum dinheiro. para o jovem rico, o casamento era uma forma de obter um título de família. eles tiveram apenas uma filha, que foi a mãe de meu pai. aos dezessete anos o meu bisavô tomou um pequeno barco de aventureiros e se lançou ao mundo. e minha bisavó passou o resto de seus dias numa varanda do enorme casarão, a olhar para o mar. perdido o brilho dos olhos e a cor dos lábios, ali ficou ela, deixando-se esquecida num tempo que não acabava nunca. o bisavô nunca mais voltou e nunca mais se soube dele. num crepúsculo de inverno, incendiado e louco, foram chamá-la para jantar e ela dormia. os criados não quiseram incomodá-la. só mais tarde, quando sua velha mãe a procurou para dar boa-noite, foi que descobriram que ela estava morta.

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