Desistória – capítulo 7.

Desistória – capítulo 7.

 

 

            Eis que estou à porta do teu coração e bato. Se alguém ouvir a minha voz e me abrir a porta, entrarei nele, e cearei com ele e ele comigo.

 

            7. eclipse.

 

            meu universo se apagou no dia em que te vi.

            como explicar aqueles dias anteriores? que minha memória força por enevoar! eram dias mortos, em que eu flutuava dentro de uma água de vida tão densa, morna, opaca. eram de um respirar não percebido; de um palpitar de coração com compassar monótono automático, num ritmo que se repetiria até o último alento; de um olhar em torno que não permitia distinguir essências de coisas, espíritos de objetos, faíscas de gestos, estampidos luminosos de sorrisos. eram dias de morte; como se eu não existira até então, apenas desenrolasse a parcela de minha existência. cabisbaixo e feliz por cumprir o destino, imaginando, tendo aprendido, que aquilo que eu vivia não vivendo, fosse de fato um destino. o que é que torna legítimo um destino humano? que tremor de olhar? que descompassada aceleração de coração assustado? e que nome tem o destino sem o tremor, sem o susto, sem as fagulhas? que nome aplicar à vida que não é vida? como separar a vida viva da vida de espelho? falsa imagem de uma realidade que não atingimos em cheio, apenas sabemos refletida num espaço que, com toda a certeza, não existe. que podia eu fazer com todo aquele vazio? não se tapa buracos com mãos cheias de nada!

            aquele destino não me destinado, aquela vida não me soprada, eram o meu destino e a minha vida antes de você. uma criatura eu, à espera de mim mesmo; de um abrir os olhos, de um acordar, de um sopro de um novo deus de carne e osso, a insuflar nos meus pulmões, a luz do significado; talvez ainda obscuro, mas, pelo menos, presente!

            que sabia eu antes de você? que verdades tinha estudado? e que mentiras tinha aprendido, dentro das verdades estudadas?

            que o mundo era bom, que o homem devia ser bom! que existia o mal e o bem e que o homem nasceu para ser tentado. que o bem se esconde atrás do sofrimento. que o homem já nasce culpado. estas eram as mentiras que se escondiam atrás das verdades estudadas.

            que houve um deus que criou o mundo e o céu e o inferno. e criou o homem à sua imagem. e é um deus triplo, o mistério de três pessoas numa só pessoa; o pai, a mãe e o filho. cada qual com sua função: um pai ardente de ação, uma mãe prenhe de amor, um filho carente de justiça. e esse deus habitou a terra para dar-se a conhecer aos mortais, ensinando-se a todos nós, na pessoa de seu filho que, não compreendido e injustiçado por todos, estivera toda a sua curta vida amarrado com tiras de couro numa cama de madeira, em forma de cruz, tratado como louco. mas seu olhar de força e mistério ensinou a um dos auxiliares que dele cuidavam e este saiu depois de sua triste morte, a espalhar a nova de sua celestial mensagem. e todos compreenderam e ensinaram por sua vez quem era o deus verdadeiro, de que era feito, que dores sofrera, que verdades trouxera, que deveres impunha.

            e os homens acabaram por adulterar a noção do divino. cada terra, conforme suas lendas anteriores, seus costumes, suas fantasias, cada cidade, cada região, transmutou a divindade em centenas de divindades menores e mais fracas. só o deus verdadeiro conseguiria unir o homem. não aquelas tantas divindades estranhas e pessoais. aqui, o filho se transformava no deus da guerra, ali, a mãe era já uma deusa de sedução, além, o pai virava um deus de chuvas e trovões e depois o filho era o deus do sol e a mãe a terra com suas searas maduras e o pai um gigante divino que bebia sangue humano

            e aprendi mentiras de verdades, que diziam como a igreja universal invadiu cidades e degolou reis, para que o deus verdadeiro fosse cultuado. e de como os homens amarelos lutaram com os negros, por seus deuses. e de como os homens negros sacrificaram mil crianças brancas, por seus deuses. e de como os homens brancos invadiram terras e violaram mulheres amarelas, por seus deuses. e de como brancos lutaram com brancos e negros com negros e amarelos com amarelos, destruindo-se pelo que chamavam o deus verdadeiro.

             e aprendi também verdades de mentiras. que eu fora agraciado com a benção maior caída dos altos céus, pois nasci numa cidade do deserto, não contaminada pelo pecado da heresia, bendita pelo verdadeiro deus que morreu na cruz, amarrado com couro. e que nossos livros eram os verdadeiros livros e nossas histórias as histórias em que se devia acreditar. e que fora do deserto o homem primeiro, não da montanha nem da floresta nem do mar, como rezavam certos livros apócrifos e proibidos. e que fora do deserto o belo príncipe branco que aceitara sacrificar o próprio filho a seu deus, sendo o filho substituído por um cavalo negro de olhos azuis. eu e meus concidadãos éramos, pois, de uma linhagem especial.

            e aprendi com mães e tias e avós que poderia tornar-me mais sagrado e abençoado ainda, se aceitasse me dedicar ao serviço de deus. que eu estudaria a religião e ensinaria às pessoas como viver de acordo com a moral sagrada. e poderia ensinar a eles como cantar ao senhor, como evitar a tentação, como resistir ao pecado. e falaram as tias e as mães e as avós do imenso palácio do grande pontífice, que estava sendo elevado ao norte de nossa cidade, o maior palácio que jamais existira no mundo, só comparável em tamanho às ruínas das eras antigas. e as avós e as mães e as tias me acenaram também com a possibilidade de vestes de seda pura e cores vivas e belas. e jóias e dinheiro e poder.

            esta era a vida pálida que eu vivia antes de te conhecer. fui levado ao noviciado, fui instruído na religião, fui ensinado nas coisas de deus. aprendi a ler, só os servos do deus sabem ler em nossos dias; aprendi a cantar, apenas religiosos têm acesso aos mistérios dos cânticos mais belos dentre os atuais e os antigos; aprendi línguas de países diferentes e aprendi todos os misteres sagrados. e tomei conhecimento da vida dos mártires em deus, das verdades veladas ao comum dos mortais, dos segredos da igreja universal.

            aprendi que tenho uma alma imortal e que meu corpo é do demônio. que só a pureza toda e a castidade tornariam possível a salvação da minha alma.

            e em pouco tempo pude sair pelo mundo, visitando praias e colinas e vales e ilhas, levando a todos a piedade de deus, para aliviar a culpa do homem.

            e aos sofredores que me pediam perdão, eu dizia que deus lhes perdoaria, se fossem justos. e aos sedentos de verdade que me traziam perguntas para me confundir, eu dizia que deus quer que cada qual aceite a sua carga de sabedoria e sua parte de ignorância. que os mistérios são muitos e profundos e são negados ao homem que é pó e virará pó no termo de seus dias. e que o inferno aguarda com seu sofrer eterno de penas infinitas àquele que, por soberba, queira igualar-se a deus em conhecimento.

            esses eram os ensinamentos que me ensinaram a ensinar. esta era a minha vida antes de te conhecer.

            então, aproximou-se o dia de meu renascimento. que foi, por tal motivo, o início de meu fim, o preparar-se de minha morte, o principiar da fria escuridão.

            acontecia naqueles tempos de famílias ricas contratarem um religioso para ensinar a seus filhos. o conhecimento era todo vinculado à igreja. era a igreja que dominava. e os religiosos eram bem recebidos nas casas, portadores que eram das verdades indiscutíveis. assim, os jovens de posse eram instruídos no saber da igreja e a seguir iniciavam eles mesmos a carreira sagrada, o que lhes permitia manter o poder e perpetuar a riqueza da família. e eu andava naqueles dias visitando uma opulenta cidade do norte, a uns dois dias de viagem da cidade onde o grande pontífice edificava o templo máximo e seu palácio. e numa tarde recebi um pergaminho enrolado e lacrado com um selo em que se via uma águia comendo uma cobra. e eu o li e não sabia que meu destino maior estava selado naquela carta. e ali também estava gravado o prenúncio do meu fim. eu era chamado para ensinar a um jovem estudante, a quem deveria preparar para a vida do noviciado. naquela noite apresentei a proposta a meus superiores e eles concordaram e me elogiaram, porque eis que a família que me chamava era uma das mais poderosas e ricas daquele lugar.

            na manhã seguinte visitei a família. fui apresentado a um senhor cheio de austeridade e à sua mulher, que vivia numa cadeira especial, carregada por criados. ela não andava. ambos falaram de minha fama de pessoa de profundo conhecimento dos ensinamentos da igreja e vida virtuosíssima, inteiramente dedicada a deus. e me convidaram a ficar ali com eles no prazo que fosse necessário a ensinar a seu filho adolescente tudo aquilo que eu julgasse conveniente para o seu noviciado. e que eu poderia me mudar no mesmo dia, apesar de estar o jovem acompanhando o tio numa caçada, devendo só voltar três dias depois. levaram-me dali os criados, indicando-me o quarto que me fora reservado, mostrando-me a seguir a grande biblioteca que pertencera a um conhecido sacerdote da família, tio da mulher paralítica. esse sacerdote tinha sido um grande amigo do penúltimo grande pontífice, o que vencera as três últimas guerras religiosas contra o país das praias em rochedos.

            mudei-me na mesma noite, iniciando, na manhã seguinte, os preparativos para uma atividade de magistério, nunca antes exercida daquela forma.

            paro o tempo e me encho de perguntas: morto que era aquele meu destino anterior, seria ele preferido ao grande reluzir que se seguiu, de vida tão breve, porém? foi-me dado nalgum momento escolher? que vida desassombradamente gloriosa foi aquela daqueles curtos meses que preveniram a minha morte, anteciparam-na, atraíram-na? era como se o meu destino me sugasse para a grande cintilação que queima e mata. que vida eu teria escolhido? pudesse escolher: a vida morta de antes? ou a vida viva que me matou tão rapidamente?

            não, não, nunca! meu amigo! nunca eu teria escolhido aqueles descoloridos dias que vivi antes de você bater à porta de minha vida! com toda a dor que senti, com todo o horror que vivi, eu aceito os fatos como foram, eu os teria escolhido exatamente como foram. eu nada teria sido sem você.

            eu estava distraído, lendo um livro sagrado, um livro cheio de fantasias loucas. mas, naquele momento eu o reputava um livro sagrado, que eu deveria decifrar mais um pouquinho. eu esperava que ele irrompesse pelo quarto adentro a qualquer momento, meu aluno adolescente. eu não sabia quem era ele. eu não sabia que ele era você.

            então você apareceu à porta. senti que alguém tinha chegado à porta e ficara me olhando. as palavras do livro todavia seguravam minha atenção, eu apenas percebi que havia alguém a me espreitar. calculei que seria ele, o aluno noviço a quem eu deveria ensinar as coisas que acreditava ter aprendido. ainda era ele, quem lá estava. foi quando libertei os olhos do livro e olhei à porta, foi nesse momento surpreendente, que ele se transformou em você.

            não quero sentir saudade.

            não quero chorar.

            não quero perguntas a perturbar minha lembrança.

            foi o te conhecer que terminou comigo. mas, antes de meu fim, aprendi que nada tinha aprendido. que a vida humana não cabe em nenhum livro, em nenhuma religião, em nenhum ideal. a vida humana não cabe ainda em todos os livros, nem em todas as religiões nem em todos os ideais. a vida humana mal cabe num coração impregnado de choro.

            e foi num coração impregnado de choro que minha vida se transformou naquele momento.

            você se chegou e me olhou. eu estendi as mãos. fui tragado por dois olhos imensos. eu te amei porque seus olhos eram como eram seus olhos? ou ficaram sendo como são porque te amei?

            não quero perguntas. anseio por respostas. respostas a perguntas que não existem; constatações sobre dúvidas não formuladas; afirmações sobre mal nascidas questões. não quero perguntas. quero me lembrar de suas mãos estendidas. que abraço estranho! como se deus me apertasse e me fundisse nele, eu misturado com todos os pais e mães e filhos que existem no mundo. beijei sua testa, meu amigo. trêmulo como se estivesse acabando de me descobrir vivo. chorei. choramos.

            eu sabia o que era amar um deus. fui ensinado a repetir as fórmulas mágicas desse amor. e não sabia o que era aquilo que eu sentia: perceber que dois olhos e um sorriso tinham acabado de destruir um império construído com tantas verdades acumuladas. tudo se arruinava dentro de mim.

            você se foi correndo e à noite, no meio da febre, eu descobri por que meu mundo anterior desmoronara com tanto fragor. não era meu aquele mundo. eu não o tinha construído com meu sofrimento. não o sofrer uma culpa inexistente; mas o sofrer uma disputa com a vida, o sofrer uma descoberta difícil, o sofrer uma frustração inadiável. eu não sofrera minha vida anterior.

            não queria confundir esse sofrer com o sofrer religioso. o sofrer religioso lava um passado que não escolhi, um pecado imposto; o meu sofrer constrói um presente; se quisermos, um pecado escolhido. a palavra pecado não mais me fere. nada mais me fere.

            eu te amei tanto porque te sofri.

            que força é essa que mistura todos os extremos dentro da gente? não queria perguntas mas elas me querem. que poder é esse que arrebata todo o meu ser e o entrega a um desespero inesperadamente feliz? sei que repito questões anteriores, sempre foram as mesmas as questões sobre o amor. mas sei que meu amor não era repetição. cada amor é um universo completo, fechado, autônomo, suficiente. assim como se fosse uma vida concentrada num momento. se outros momentos houver, não será esse meu momento de que falo. sobre que escrevo. em que penso. de que lembro. por que choro.

            menino, menino nossos dias se misturaram tanto uns nos outros! como se o período em que convivemos fosse uma esfera que crescesse; em todos os sentidos. conversávamos todo o tempo. aprendíamos juntos tanta coisa, quanta vida, quanta alegria! e quanta dor quando você apartava de mim sua figura abençoada.

            e ao rever você, algo crescia por dentro de mim, crescia e terminava por ocupar toda a minha pele, como se eu me embebesse de um fogo vivo, um óleo sagrado, um suor integral. mil e um olhos vigilantes a escorrer sobre o meu corpo, espalhando tremores.

            nalgum momento eu me perguntava se estava sendo feliz e percebia que aquela vida era maior que felicidade, felicidade não cabia ali; não fazia diferença; não interessava: a felicidade só cabe em corações vazios; e meu coração transbordava.

            vivemos esse convívio que me alevantava num sonho louco, vivemos esse convívio quatro meses. a noite que antecedeu minha prisão me pareceu um aviso do que ia acontecer. eu acordei no meio do escuro, assustado. cheio de um tremor convulso que me fazia debater por inteiro. chorei muito tempo, não chorara jamais aquele choro tão forte, vindo não sabia de que paragens desconhecidas. depois que me aquietei, já quase afogado por um sono cheio de perseguições fantásticas, foi que você chegou. tocou meu rosto. você nunca me visitara antes, à noite.

            o que houve?

            tenho medo. tenho medo.

            medo de quê?

            não sei. tenho muito medo.

            eu te abracei. tomei você no colo, acolhi-o como a um filhinho indefeso, beijei-o na testa e fiz você dormir. encostado como estava na parede, tentei adormecer também. mas visões estranhas impediram meu sono. eu tive medo de que você crescesse, tive medo, eu também. apertei-o mais forte e não me entreguei ao sono, intuindo estranhos e confusos avisos. não queria perturbar a sua paz. vigiei durante toda a noite. e olhando seu sono adolescente, muito me incomodava o forte desejo de que você crescesse. sem entender por quê, orei até o romper do dia, e não percebi quando adormeci.

            então acordei com o meu superior de pé, à minha frente. estava sozinho na cama. eu deveria me apresentar a superiores superiores, no antigo palácio do grande pontífice. ao sair da casa, porém, fui aprisionado num carro-jaula e levado em meio à multidão curiosa.

            não quero falar daquele processo. eles me acusavam de coisas que eu não entendia. eles me prenderam e encheram de dor meu corpo. mas meu corpo não sentia dores. todo eu era apenas uma dor, a dor de não estar com meu amiguinho, a dor da saudade, a dor da distância, a dor de uma dúvida insistente, quando vai acabar tudo isto? eles me faziam perguntas terríveis, sobre atos em que eu nunca ousaria pensar. eles me tratavam como se eu fosse um demônio. eu tinha já ouvido falar desses processos e dessas condenações mas me pareciam então fatos tão distantes que eu não me dignara prestar-lhes atenção. eis-me ali, agora, no entanto, à mercê de um fato semelhante, protagonista da grande agonia que eu sabia que viria.

            sabia também que de nada adiantaria qualquer palavra. não havia lógica contra eles, não existe lógica contra o poder ilógico.

            eu apenas chorava meu amigo.

            cuidaram eles de meu corpo, machucando-me, transportando-me, devolvendo-me, transferindo-me, envolvendo-me numa prisão de palavras escritas em autos-de-fé. eu cuidava de minha alma, toda ela imersa num doloroso sofrer inacabado.

            então me deram uma cruz a beijar e me levaram à praça da fogueira.

            deus, história do homem, verdade, ideal, que insignificâncias eram estas que pretendiam me morder? voejando como moscas varejeiras ao meu redor, para depositar suas larvas de morte na minha carne! eu só tinha diante de mim a imagem de um deus vivo, parado à porta de minha morada, a me olhar com seus olhos de cobertor macio. essa era a minha história, minha verdade, meu ideal. eu caminhava em direção à fogueira, como se caminhasse àquela porta onde você me esperaria, no meu depois.

            sucedeu então que toda a minha cabeça se esvaziou. vida eterna? quem me garante? que direito tem o mundo de me julgar? por que se apoderaram de meu corpo e o maltrataram tanto e agora o fazem caminhar até o local onde ele será destruído? com que direito? baseados em que lei? que fiz eu por essa lei? não merecia todo homem um mundo isento de leis? que fosse codificado dia a dia?

            então eu tive medo. não medo! horror! eu me apavorei com todas aquelas coisas que me cercavam. eles me preparavam e eu me enchi de fúria. meu terror, diante da grande provação que me esperava, me tornou insuspeitavelmente forte e eu os derrubei com toda a violência, como se eles fossem bonecos de papel. desamarrei-me aos berros, levantei, apanhei uma acha de lenha e vibrei-a no ar, cheio de um poder defensivo. abri caminho no meio de uma multidão apavorada, chicoteado todo o tempo por gritos de demônio! demônio! o cerco porém foi se fechando, algo forte bateu-me no ombro, uma lança furou minha coxa, derrubando-me, senti furados os meus olhos e todo eu transformado numa só dor distribuída e presente em todo o corpo, sucumbi entregue, mole, quase morto. fui amarrado com correntes. havia um rosto a me lembrar de vida, eu já não sabia quem era. senti-me carregado, como se estivesse no pior dos pesadelos. tinha vontade de um grande grito. era um grito órfão, desamparado, não rebentaria sozinho, jamais.

            houve rezas, houve cânticos, houve conselhos da moral pronta, que já nasce abortada. havia um rosto a me lembrar de vida, eu já não sabia quem era. um calor cresceu, como se nascido de dentro de mim, envolveu-me, primeiro com sua deliciosa sensação de aconchego, depois provocando apreensão, finalmente despertando a consciência para a crua verdade de eu estar sendo queimado vivo. brotou-me no coração que eu estava sendo castigado porque confundira a imagem de deus. veio um rosto me lembrar de vida, sabia o rosto de meu amigo, a morte já avançava queimando minhas carnes. eu me debati no pior de todos os tormentos e minha desaparecida energia fez rebentar dentro de mim o urro mais horrendo, adotando-o e deixando-o escapulir explosivo. as chamas se elevaram e era uma só fumaça envolvendo o corpo do meu amigo. eu tive a impressão de vê-lo mexer-se uma última vez, eu não conseguia vê-lo direito, escondido que estava no alto da torre. então o povo avançou, rodeou a fogueira, levantou paus e varas e lanças e espadas e derrubou sobre a fogueira toda a sua cólera de muitos filhos. gritavam histéricos e dançavam provocantes. a seguir abriram novamente a roda e atiraram no braseiro enfumaçado um galo amarrado a um gato preto. o galo, tinham dito a mim antes, tinha posto um ovo. o gato era pelo costume, para obrigar o demônio, ao sair da bexiga do condenado, a se apossar do animal que morreria em seguida. aquilo que vi já não era o meu amigo. aqueles pedaços esfarelados de carvão, não foi aquele o corpo que me aqueceu tantas noites seguidas, quando nos perdíamos em furiosas tempestades de beijos trocados até o amanhecer.

            desci da torre e fui para casa. baixei o capuz negro, não devia ser reconhecido. quando o criado me levou a janta, comunicou que meus pais queriam falar comigo. apenas a mãe falou. meu pai me fitava com um olhar cheio de ódio, de sua cadeira com rodas. ela passou a mão no meu rosto, me abraçou, meio chorosa:

            não se perturbe com tudo o que aconteceu. você não teve culpa nenhuma. sua inexperiência foi apanhada numa armadilha terrível. não fique triste. amanhã seu tio o leva ao norte. daqui a duas semanas um culto suntuoso vai inaugurar o grande palácio e o templo máximo da igreja universal. nós nos encontraremos lá mais tarde, no palácio do avô.

            voltei para o quarto. o tio me esperava. deitei-me na cama e chorei cheio de angústia. ele sentou-se próximo e me fez carinhos. não queria me confundir mais. retirei sua mão do meu ombro.

            quero ficar sozinho.

            ele saiu silencioso. me deixou entregue à minha desesperada aflição. por que fizeram aquilo? me perguntava seguido. duas palavras se repetiam, martelando meu olhar parado: meu amigo, meu amigo, meu amigo elas cresciam, torciam minha boca e enchiam de lágrimas meus olhos. eu me escondia dentro de minhas mãos e nova crise me sacudia, abalando todo o corpo a tremer. meu amigo, meu amigo, meu amigo.

            o que sabia minha mãe sobre minha inexperiência? que entendia minha mãe sobre armadilhas? armadilha armou-me o irmão dela, meu tio, quando me convidou para dormir em seu quarto, dizendo que levaria para lá a criada de seios mais belos. que eu deitasse e esperasse. e no meio da noite, no escuro, ouvi passos, eu já excitadíssimo e sem poder dormir. mãos me tocaram, me desnudaram, brincaram com o despertar de minhas carnes desejosas, uma boca úmida beijou-me o bico das mamas, a barriga, o umbigo, tocou-me suave os pelos já crescidos, a parte interna das coxas, terminando por envolver meu membro, sugando-o de tal modo incrível que eu me arrebentei de prazer. a sombra desapareceu rápido.

no dia seguinte ele me perguntou se eu gostara e eu disse que sim mas ela não se deixara tocar. eu que tivesse paciência, ele falou. e combinou comigo de chamá-la quando eu o desejasse. disse que queria na mesma noite mas tinha medo do pai perceber. ele disse que já falara com a mãe que quando ele lesse para mim até tarde, eu poderia dormir no quarto dele. à noite, vi que havia realmente mais uma cama no quarto. ele disse que não me preocupasse com ele, quando ela entrasse ele sairia a dar um passeio no jardim. então ele me leu passagens do grande livro, que juntava todos os livros da religião, desde o que contava da criação do mundo até o que narrava o filho do deus sendo tentado pelo demônio corcunda que vinha todas as noites com o fim de tirá-lo do colo de sua mãe sagrada. e era um livro tão grande e especial que não tinha nome, chamava-se simplesmente o livro. e no meio daquelas histórias de santos e profetas, eu adormeci. e novamente acordei com as macias mãos que me tocavam e aconteceu exatamente como na noite anterior. e assim, noites seguidas. ela vinha e me sugava de um modo que me enchia de prazer mas não se deixava tocar. deu-se então que numa noite comecei a acordar dentro de um grande abraço. havia um corpo misturado com o meu, não sabia onde terminava meu desejo, onde começava quem estava comigo. não é minha pele o limite do meu corpo, mas as extremidades de meu desejo. eu percebia que navegava entre um dormir e um acordar, entre meu corpo que crescia e alguém que fazia parte de mim. e senti uma boca junto à minha, como se eu mesmo me estivesse beijando, os lábios inchados e ávidos. entreguei-me àquela nova forma de amar, tão mais completa e houve um momento em que percebi que não era ela, era ele, meu tio. mas eu já me sentia embrulhado numa satisfação tão descomunal e quente que achei bom que fosse daquela maneira e me entreguei mais ainda, deixei-me levar como se estivesse num barquinho leve sobre águas vertiginosas. gozei muitas vezes e dormi.

            não se falou nada sobre o que aconteceu. nem depois, quando, todas as noites, repetia-se o mesmo ritual. então, desejosa de que eu aprendesse a ler e a executar música, minha mãe me encomendou um professor religioso. só os religiosos lêem e executam determinadas músicas hoje em dia. eu caçava com meu tio. ao chegar, soube que você me esperava, parei na soleira da porta e vi que você lia ante uma luz frágil.

            meu universo se apagou no dia em que te vi. você estava ocupado com a leitura. percebi que você sentiu a minha presença mas não moveu o olhar. depois se levantou e se chegou junto a mim. que espantoso! foi como se eu já o tivesse visto antes, sempre, tal foi a verdade que descobri em seu olhar. abraçamo-nos, apertei seu corpo contra o meu e rompeu-se dentro de mim o prazer inesperado. muito forte, muito denso, com uma violência que se poderia chamar de terna, rompeu-se dentro de mim o prazer imenso. comecei a chorar. você também.

            à noite, você não comeu nada, apesar de estar sentado com a família. não dormi em meio a sonos obscuros e vozes que me cutucavam. no dia seguinte começamos os estudos, mas não eram estudos o que vivíamos. que loucura imensa apoderou-se de mim! tocar seu braço era como tocar uma estrela, olhar seu olhar me enchia de uma coragem mitológica. perceber que você sorria era como voar dentro de um destino mais amplo.

            a gente gozava de se olhar, era como o orgasmo de peixes, bastava estar juntos, próximos, nos olharmos nos olhos, todo o mundo crescia por dentro e jorrava violenta a fonte do gozo.

            as portas do sexo, não sabemos onde estão. não sabemos onde estão as portas do sexo. trocávamos carinho e de repente percebíamos já estar dentro de um outro cômodo, já habitando novas moradas. e nessa terra tudo é possível e fica difícil controlar mãos e braços e pernas e corpos e bocas e sexos e gemidos e gozos. tudo o que acontece, apenas acontece. sem limite.

            então, numa manhã, sou sacudido por minha mãe. me levanto assustado; estão no quarto, ela, o pai em sua cadeira, o tio. vestem-me e me levam encapuzado e saio da cidade. soube depois que meu amigo, você, fora preso e acusado de me ter tentado seduzir. que nada acontecera ainda entre nós mas eu correra um grande perigo. que fora encontrado nos seus pertences escritos abomináveis, cínicos, debochados, terrivelmente impregnados de pecado. e falaram de um conto que você escrevera, no qual você mesmo era um demônio que se transforma num duende que faz amor com meninos. eu ficaria fora da cidade até que terminasse o processo.

            estive meio que preso dentro da casa de uns parentes. uma velha prima me presenteou com um magnífico cavalo, inteiramente preto e de olhos azulados. queriam que eu esquecesse o que não dependia de mim esquecer. eu, cá fora, livre, tentando todo o tempo descobrir um modo de rever você, de saber o que acontecera. queria te falar que você estava sendo vítima de alguma trama ignóbil, eu sabia há muito que eles não se incomodavam com virtude mas com poder. e eu suspeitava de que você estivesse sendo usado como exemplo para que as gentes temessem; eles mesmos, porém, os religiosos, de acordo com conversas ouvidas em família, se entregavam continuamente a toda a sorte de orgias e lutas.

            o tio esmiuçou detalhes mórbidos do processo, falando em torturas e sofrimentos crescentes até o momento da consumação da pena. não saberia explicar como nem por quê, mas senti que ele estava envolvido na denúncia. e desolado, vestido com as roupas da maior melancolia, eu sentia forte em torno de mim o descomunal tamanho de minha impotência. fosse execrar a vida, fosse negar o destino, fosse marcar um duelo contra deus! qualquer desatino, eu aceitaria. mas, como lutar contra um inimigo que não se vê? não se conhece? espalhado que estava ele nos olhos cabisbaixos dos que passavam! nos passos corridos dos que compravam! nos encontros furtivos dos que tramavam! o inimigo era todo o mundo que vivia a vida que se vivia, com seu código que se adota sem fazer perguntas. eu sentia que toda a gente participava dos mesmos crimes. eu me enchia de dor e de ódio.

            cresceu dentro de mim, como uma constelação que se expande numa voragem, cresceu dentro de mim um desejo de vingança. eu o alimentei com minha saudade e minha desolação. cuidei de meu desejo como se cuida de uma hidra, fortalecendo-a, para que ela se tornasse indestrutível.

            montei o cavalo negro, encapuzei-me e fui até minha casa. não me esperavam. minha mãe se mostrou temerosa. disse-lhe que queria ficar morando no templo. ela compreendeu que eu desejava estar lá no dia do sacrifício. foi comigo e instou com o superior a me dar uma cela de noviço para que eu pudesse meditar e descansar. fiquei ali dias, quantos dias? como saber? depois que dias não são mais dias mas um tempo igual que escorre para um nada imenso. dia é o espaço que eu esperaria por rever meu amigo. um dia, mil dias, todos os dias de minha vida, se fosse preciso. um dia que não me leva a nada, não é dia. apenas um tempo sem nome, porque sem significado. naquele tempo indefinido, sem escuros nem claros, eu apenas lembrava. como chorei, como chorei, como chorei. como se cada lágrima tivesse apenas a função de acordar as que deviam segui-la, abrindo mais a nascente da dor que aumentava. quando eles me traziam comida, eu escondia o rosto entre as mãos, fingindo que rezava.

            então, do alto da torre, vi que preparavam a fogueira. eu perdi minha esperança. petrificado lá nas alturas, escondido no meio de multiformes demônios de pedra, eu era apenas uma gárgula a mais, mas enquanto os outros monstros sorriam maliciosos e terríveis, eu era tão só assombro e pasmo. percebi o movimento das gentes, dava para imaginar você no meio dos soldados com suas lanças alevantadas. então houve um gemido no meio da multidão, vi que os soldados lutavam, você os derrubava, meu coração se renovou por mil novos anos, eles o atacaram e vi a seguir seu corpo carregado até a fogueira, completamente ensangüentado e entregue.

            deixei morrer com aquelas chamas imensas e mães de fumaça tão densa e tão negra, deixei morrer ali toda a minha dor. minha emoção se transformou: era antes uma figura alada e fluida, de cores transparentes e suaves, o meu amor por meu amigo; um amor que não se esgotava jamais com beijos e sucções e mordidas e arranhões e penetrações, como se nossos corpos fossem duas fogueiras que nunca se consumiriam. minha emoção se transformou: era agora um monstro horrendo, torto, olhos esbugalhados, unhas ameaçadoras, dentes fatais, uma baba venenosa escorrendo de todos os seus orifícios.

            assim eu queria minha vingança.

            assim seria.

            segui, pois, com o tio até a grande cidade.

            visitamos o palácio e o templo da igreja universal. foi-nos fácil o acesso a todas as acomodações por que éramos reconhecidos como quem éramos. todos se desdobravam em atenções exageradas ao ouvir o nome de meu avô. eu fingia estar bem. minha hidra, meu dragão, meu demônio, minha vingança cultivavam meu comportamento: eu voltara, aparentemente, ao que era antes. apenas não permiti que o meu tio me tocasse. ele deve ter compreendido. dois dias depois passou a cortejar uma rica menina, sobrinha de algum daqueles importantes potentados. estavam sempre juntos. fiquei meio que só para o meu plano cego. continuei visitando a extraordinária construção, fingindo interesse. os artistas me mostravam seus painéis, suas colunas, seus portais, seus tesouros. eu os acompanhava atento, escolhendo para diferentes ocasiões roupagens vistosas e ricas. todos me admiravam e me atendiam.

            foi quando visitei os porões do palácio, para presenciar a estrutura descomunal de todo o conjunto, que minha idéia afigurou-se-me clara. eram corredores imensos, ladeados por pilastras larguíssimas, colunas maiores que uma grande casa. uma imensa fogueira queimava toda uma cidade dentro do meu desejo. todo o porão se comunicava entre si, palácio e templo. dir-se-ia que toda a terra conjugara a sua energia total para a elevação daquele monumento.

            num dos corredores, havia um conjunto enorme de barris. sempre fingindo curiosidade, perguntei pelo conteúdo. parafina, para alimentar as fogueiras dos condenados. eu me calei. mas meu demônio-hidra-dragão-vingança se puseram a dançar aos pulos dentro do meu coração. quis saber de saídas, de comunicações, de portas secretas; recebia todos os detalhes com admiração elogiosa. o arquiteto desdobrou num mapa, diante de mim, sem o pressentir, todo o meu diabólico plano. estudei entradas e saídas, calculei o tempo que levaria para espalhar aquela parafina pelos corredores todos, escolhi o estreito corredor que me serviria para estender cordas e trapos, fazendo um rastilho. este corredor dava acesso a um vão que saía na margem do grande rio. me indaguei se daria tempo de correr até o outro lado da praça, indo pela margem do rio. disso, eu não tinha certeza.

            na véspera do grande culto, eu principiei meus preparativos. não podia ser mais fácil. todos os empregados estavam empenhados em limpezas, metais e vidros e mármores e madeiras e alojamentos. eu trabalhava cheio de vigor e ódio nos porões, sem ser molestado. ninguém desceu ali durante todo o dia e durante toda a noite. espalhei a parafina aos pedaços, preparei um cuidadoso fio feito de cordas velhas e panos, encontrados num canto escuro. jogava nalguns trechos dessa imensa tripa uns pedaços menores de parafina. um suor denso jorrava de meu corpo, eu tinha febre, tremia, seguia avante. estava alucinado.

            o dia deles chegou. subi ao palácio, mandei por um criado um recado para a mãe: já estava me preparando para ir ao templo, um amigo me conseguira um excelente lugar com sua família, que faltara ao encontro um parente doente. antes que ele se fosse, pedi-lhe que trouxesse meu cavalo negro, que sempre me acompanhava então.

            a cidade parecia morta, todos concentrados nos arredores do grande templo. amarrei o cavalo num bosque próximo à grande praça. continuei a pé e cheguei junto à multidão.

            se me pergunto o que sentia naquele momento, diria que não sei. eu não era eu. eu era um só desejo. não pensara no que aconteceria depois. era como se eu fosse você, queimado vivo, voltado ao mundo para executar a grande desforra. não havia amor em mim. não havia nada em mim. a não ser ação. uma ação impensada, apenas planejada. uma ação feita de comos, sem por quês. um ímpeto sem cabeça.           

            fui até o vão, apanhei uma tocha já preparada, segui até a praça, acendi-a, as pessoas olhavam e não se perguntavam por que se havia de querer fogo naquele momento. minhas roupas finas e alegres desencorajavam perguntas. refiz meu caminho, o coração ardendo de estranha alegria. um rosto flutuava dentro de mim. eu me percebi repetindo, a chorar, meu amigo, meu amigo, meu amigo. acendi minha tripa de panos, o fogo começou a caminhar lento, pulei, corri, desesperei-me, imaginando a cada momento uma grande explosão; cheguei até o cavalo, nada se ouvia, disparei em direção à colina, pensei em voltar e verificar como estava indo minha lenta tripa de fogo, corri mais angustiado, talvez eu tivesse falhado e era preciso desaparecer para sempre porque, com certeza, eles iam descobrir. cavalguei, cavalguei, cavalguei, eu suava, eu chorava, eu não entendia o que se passava. cheguei ao topo do pequeno monte, voltei-me, enxuguei o rosto, meu olhar se firmou, o que havia lá longe?

            uma grande mancha negra de fumaça, poeira, que era aquilo? um rumor surdo, acontecia algo e não sabia o que era.

            meu olhar parou. eu não estava vivo. sentia que dentro daquela imensa fogueira um homem estava sendo queimado por amor a mim.

            eu não estava vivo. eu morria ali junto com ele, em meio a imensas labaredas, aquele que me amou como me amou e a quem eu amei como nunca tinha amado jamais.

            você.

            não descem mais lágrimas de meus olhos parados. não sinto nada por nada, por ninguém, o mundo não existe para mim. sou uma saudade morta que caminha pelos lugares. as pessoas dizem que sou triste. não sou triste. sou um morto. fui queimado vivo, sem chamas. não sou triste nem alegre. não vivo na terra nem no céu. é um inferno total, este local por onde perambulo.

            sinto um vazio dentro e fora de mim. como se a luz de minha vida estivesse escondida, atrás de fatos que não ouso lembrar duas vezes. é uma agonia sem agonia, uma angústia sem angústia, um tormento sem tormento. é como me sentir sem ar no meio do ar, afogado sem água. é como viver uma eternidade. o tempo vai com sua marcha inflexível mas estou impune ante o tempo, isento de sofrer os seus castigos. nada me é depressa nem lento. as coisas não escorrem, tudo parou. eu observo o eu que faz coisas, que come comidas, que responde a perguntas, como se meu eu estivesse por fora de mim, olhando este imenso buraco que ocupa meu corpo enquanto simula viver a minha vida. não tenho pai nem mãe nem parente. morreram todos num incêndio acontecido nalgum lugar maldito. vivo num mundo turbulento, cheio de guerras e tramas e perfídias. alguém que se diz meu tio cuida das coisas que dizem minhas e daquilo que pensam ser eu. todos fazem e desfazem de mim e quando os olho com total desinteresse por seus planos, eles me chamam de santo, porque alheio a mundanismos e vaidades.

            queria que fosse dor o que sinto. queria que fosse árduo e insuportável o meu pesar. queria que fosse de um pesadelo inacabado cada novo dia. isto seria vivo. isto seria digno de meu coração.

            mas não sou nada. nada há dentro de mim. vagabundo solitário, isto em que permaneço é que é o verdadeiro inferno. ouço um aviso distante, algumas vezes, a me falar de salvação, de purgatório, de paraíso, de ressurreição; é uma voz pálida e frágil que repete palavras que não compreendo: meu amigo!, meu amigo!, meu amigo!

            mas meu coração sem choro me diz que não tenho salvação.

            saio pelo campo, montado no meu negro cavalo de olhos azulados. ele me leva pelo seu caminho, já que eu mesmo não tenho para onde ir. e acho no meio do bosque uma enorme cabana de pedra. entro, está vazia, faço entrar o cavalo e o amarro num anel de ferro, fixado no chão. saio por ali, pretendo caminhar só e voltar depois a buscar o animal. eu me perco, não sei mais onde estou. procuro caminhos, procuro veredas, procuro pistas. sinto que cheguei ao meu lugar, já que não há indicação alguma, existo sem qualquer referência. escurece. eu me sinto entrando num grande ventre de noite infinita, o espaço total, absoluto, onde não conta o tempo, não há duração. tenho a impressão de que tenho frio. tenho a impressão de que estou vivo, não tenho certeza; que vida será essa que me afaga por fora e abandona o meu miolo? é como se eu fosse apenas tudo que está por fora de mim! este grande vazio que está ao meu redor, este chão cheio de umidade, este negro descomunal, cheio de nuvens e estrelas! isto sou eu! por que já não morri inteiramente?

            um sono aterrador toma conta de mim e me faz penetrar num imenso e inacabado corredor de pesadelos. quero me mover e não consigo. sou presa de uma dor enorme em todo o corpo, como se facas e agulhas caminhassem por minhas veias. tudo vai se desfazendo aos pouquinhos e minha vida se transforma num sono silencioso e demorado.

            então vejo que é dia. quanto tempo estive aqui? deitado nesse chão molhado? há algo extraordinário dentro de mim. eu ouço uma música estranha. é muito estranha essa música, um coro masculino que acorda terríveis lembranças. sigo o som, escondido atrás de arbustos. há por ali um bando de viajantes peregrinos. eles pararam a caravana, eles cantam um canto tristíssimo e comovente. sinto movimentar-se com violência algo que revive dentro do meu eu profundo. olho para o chão e vejo uma pedra achatada, com vestígios petrificados de um antigo peixe. já tinha visto um desses peixes virados pedra. peguei-o, a música começou por cortar as minhas resistências, mexendo com todo o meu passado recente, meu amigo, eu senti o peixe se mover, imaginei-o, meu amigo, imaginei-o nadando numa água antiga, antiga, meu amigo, tão antiga e antiga que se perdia na origem dos tempos. ele flutuava lindo e manso à minha frente, nadando dentro daquela música tão cheia de uma vida triste e carregada e, amigo meu, eu me lembrei que você existiu e que eu o amava e que eu o amei e que eu vivi e estive morto até há pouco tempo, quando este peixe de outras eras perdidas veio a mim, para o meu acordar e a minha ressurreição.

            manou em todo o meu corpo o mais resgatado dos choros. caminhei em prantos, aos tropeções, eu me achara inteiramente, sabia onde estava! sabia quem eu era!. sabia a quem amava!

            corri até a cabana e abri sua porta larga.

            meu cavalo estava imenso, inchado, deitado no chão, os olhos, agora vermelhos, a me olhar. sua barriga estufara despropositadamente. teria ele morrido de fome e de sede? quanto tempo mesmo estivera eu fora dali? fechei a porta e sentei-me no chão. súbito algo se mexeu dentro dele, fez-se um orifício na pele de sua barriga e escapuliu rápido uma serpente escura. caiu no chão e se arrastou até onde eu estava.

            não retirei a perna. não choro mais. ela mordeu violentamente o tornozelo. está doendo muito, está doendo muito! encolhi-me, meu olhar se turva.

            sinto que estou morrendo porque você se chegou, mais belo do que nunca, sinto que morro porque você me colocou no colo como naquela nossa noite inesquecível, a única noite em que eu visitei você. sinto que morro porque você me abraça com cuidado, tenho medo, tenho medo, você me abraça, me toma no colo, me acolhe como a um filhinho indefeso, me beija na testa e me faz dormir.

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