garças e abutres… 17

dor de ouvido

17. Dor de ouvido e cegueira-noturna

    Quantas vezes entrou ali dentro a figura branda de um médico de mãos caridosas? Não me lembro de uma. Uma enfermeira? Nenhuma. Um farmacêutico? Nunca.
Nossa medicina se resumia nos purgantes. Aquilo era tão ruim que devia expulsar com todos os vírus que se tivessem alojado nos corpos raquíticos e esfomeados. O próprio demônio não resistiria.
As condições sanitárias davam excelente material de pesquisa. Cobaias à vontade, frio, fome, avitaminose, todos descalços, sono desagradável, água sem filtrar, quando não fosse da caixa da privada. Todos tínhamos os lábios enormes e rachados. Sei disso porque me lembro que minhas irmãs, durante muito tempo, repetiram que ficaram horrorizadas com o aspecto de nossos lábios, depois de nossa saída. Nossa pele era seca, como pêssego, com manchas brancas. De todos os narizes escorria eternamente o catarro verde e aguado. Limpávamos o nariz na alça do macacão, no fim da semana esta se apresentava engomada e imunda.
Às vezes, um ou outro não conseguia reter a comida no estômago. O órgão se recusava, era uma maré rapidíssima, ia e vinha e ia e vinha e acabava por provocar a onda azeda do feijão com arroz que se espalhava pelo chão, ficando ali até secar.
Afora isto, só a magreza.
Com relação à nossa saúde, lembro de um episódio com Geraldo e dois comigo. Além da tuberculose benéfica de Marquinhos, que lhe valeu invejadas férias na casa do padre.
Certa noite, Geraldo não deixou ninguém dormir. Tinha dor de dente. Muitos tinham dor de dente, lembro disso, bochechas inchadas, amarradas com pano saído não se sabe de onde. A dele, ou doía mais, ou estava servindo de pretexto para uma revolta violenta. Ele gritava, urrava, o inspetor não sabia o que fazer. Vendo que todos estavam atentos, aproveitou a oportunidade e começou a xingar o padre. Xingar o padre era mais que um sacrilégio. Sacrilégios podem atrair ou não o raio fulminante, espera-se o raio fulminante que nunca vem. Mas, ali, xingar o padre representava uma escala crescente em dor física e decrescente em humilhação. Palmatória, safanões, pontapés, culminando por vôos desengonçados e quedas de embrulho.
A dor lhe dava forças. Eu me enchia de horror porque xingar alguém me parecia terrível e eu era um animalzinho cheio de medo. Ao mesmo tempo, me orgulhava por ser meu irmão aquele que afrontava os poderes, ele atirava para o alto aquela chuva invertida de destruição.
Aquele filho da puta, desgraçado, aquele viado, é por causa daquele filho da puta daquele padre.
Houve silêncios, todos olhavam o inspetor.
Geraldo, vem comigo.
Não vou porra nenhuma! Eu tô com dor por causa desses filhos da puta, daquele desgraçado daquele padre!
A noite não terminou mal. Ao contrário do previsto, Geraldo foi levado à casa do diretor-padre que lhe deu remédio e cuidou dele. Ele voltou triunfante.

Certa manhã, acordei indisposto. O mundo tinha perdido o sentido. O mingau me pareceu repugnante e eu não quis comê-lo. Estendi-me no banquinho de cimento e me deixei esquecido. Veio a hora do almoço. Chamaram-me, era domingo. Não era razoável perder o almoço de domingo: o arroz era mais solto e havia um pedaço de carne de carneiro. Não tive ânimo e fiquei. A impressão que eu sentia era a de um universo paralisado. Dormi. O sol estava forte, era confuso porque eu sentia muito frio, o cimento estava gelado, mas o lado da cabeça que estava ao sol, queimava. Um rumor distante começou a perturbar-me, era como uma cachoeira interminável. O sol estava insuportável, o ruído cresceu. Era um zumbido desagradável, áspero, rouco. Aumentou, percebi que o ouvido que estivera colado no cimento doía muito.
Alguém me falou, tentou me levantar, eu olhava e não entendia nada. As figuras brilhavam à minha frente, como anjos no crepúsculo do paraíso. Falaram em Geraldo, ouvi no meio de trovoadas o nome de meu irmão. Ele já chegou preocupado e me levantou. Entre brilhos imensos e estalos eu percebi que ele me advertia por ter perdido o almoço e ter ficado ao sol. Na sombra, o brilho diminuiu, mas os ruídos loucos de usina infernal continuaram por muito tempo.

Há um aspecto digno de menção, ligado à minha saúde. Eu não enxergava durante a noite. No Colégio Pedro II, muito mais tarde, descobri num livro de ciências, que a falta de vitamina A provoca a cegueira noturna. Dessa forma, ficou esclarecida aquela estranha perturbação. Até então, o fato me enchia de espanto, não sabia se era diferente dos outros, se estava ficando cego, não entendia nada…
Uma lembrança dolorosa é a da hora de subir pro dormitório. Tenho a impressão de que, mal escurecia, éramos colocados em fila para subir. Aquela escuridão me aniquilava. Eu era incapaz de perceber um clarão tênue, uma mancha clara. Ouvia a todos, sabia do que se passava ao meu redor, mas me sentia isolado de todo o resto. Uma vez saí da fila, sem querer. Começaram a me chamar. Eu perdi o rumo das vozes, eram muitas ao mesmo tempo, tentei voltar e comecei a bater nas paredes. Ouvia as vozes aflitas de Valdemar, Hermes, Bojão, Zé da Silva, não conseguia localizá-los e rodava abobalhado, com os braços estendidos para não machucar o rosto. Então, u’a mão me pegou pelo ombro e senti que me levavam, fui guiado até a cama.
A partir daí, quando a fila começava a andar, eu segurava na roupa do que estava à minha frente e ia caminhando…
Numa outra feita, acordei querendo ir ao banheiro. Havia um banheiro do lado dos dormitórios. Comecei a tatear com cuidado as madeiras dos beliches. À custo, consegui descobrir o ladrilho frio, urinei num lugar qualquer e procurei minha cama. Comecei a tatear, sentia os corpos, cabelos encarapinhados e cheios de areia, pés barrentos, batia com a cabeça nas grades, ia e vinha e estava de novo na porta do banheiro, sem ter encontrado minha cama. No desespero, me perdi no meio daquela floresta de beliches absurdamente escura e meu corpo começou a atropelar tudo. Alguém gritou meu nome,
não consigo achar minha cama,
e me levou como mágica diretamente ao leito vazio e frio.
O que teria sido de mim numa noite como aquela, se eu não fosse magrinho e de olhos medrosos e tímido e amado por todos?

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 16

the church

16. A Igreja

    Não devia ser muito grande nem muito rica. Mas forçosamente haveria algum dourado, alguma flor, alguma vela acesa ou luminária pendente de um longo fio, algum vidro colorido, ficava bonito. Tenho a impressão de uma fila de quadrinhos, representando a via sacra, que pinturas maravilhosas! pareciam fotografias! hoje seriam uma vulgar repetição acadêmica no estilo de David, talvez nem tanto.
O que mais me impressionava, todavia, era a estátua daquela mulher. Olhos brilhantes, molhados, cabelos de verdade e um punhal enfiado no peito. A carne do seio, do pequeno pedaço de seio que se mostrava, se abria numa chaga como dois lábios virginais, uma mancha de sangue e o punhal imenso. Nossa Senhora das Dores. Ninguém me explicou que aquele punhal era simbólico, entendi como realidade e talvez já tivesse feito a relação com o defloramento.
Aquela imagem me perseguia, a impressão de tê-la diante de mim é nítida demais e dá para avaliar o horror que me inspirava. Isto foi em 1949 e 1950. Em 1961, onze anos depois, sonhei com aquela estátua. Nua da cintura para cima, tendo no colo o Cristo morto, um tanto ou quanto na posição da Pietá de Michelangelo. Não havia punhal, mas os dois seios se apresentavam cortados horizontalmente. Em 1973, o sonho mudou. A mulher tem uma criança no colo, à semelhança das madonas de Rafael. Nua como a anterior, mas aqui é um quadro. Parado próximo à tela, a estátua muito bela de um sacerdote egípcio com um punhal na mão. A estátua avança para o quadro, eu esboço uma tentativa de impedimento, mas prefiro me deixar assistindo para ver o que vai acontecer. Ele perfura o seio da figura e escorre um filete de sangue vermelho.
Aquela igreja, como todas as outras, até durante algum tempo, me inspirava mais terror do que qualquer outra emoção. Os santos, vestidos de vermelho e com cabelos de gente, me semelhavam cadáveres ressurrectos, ainda verdes, ainda sem movimento. Mas o mais terrível eram aqueles olhos de verdade, brilhantes e penetrantes, olhando para um ponto à sua frente, parados, inflexíveis, ao mesmo tempo eternamente vivos e eternamente mortos.
Sentávamo-nos num banco comprido, balançando os pés empoeirados. Eu vigiava o ambiente, imitando o levantar-se, o ajoelhar-se, o sentar-se. Eu vigiava.
Acho que não íamos muito à igreja; felizmente, para meus sonhos. Desses passeios pesados, não tenho senão duas lembranças. Muito amargas, dois abutres lúgubres que vêm e vão eternamente dentro de mim. Param, me olham um tempo, estremecem e continuam o ir e vir. Teriam estes dois fatos acontecido no mesmo domingo? Tanto faz. A esta altura, tanto faz.
Íamos à missa comum, nenhuma era especialmente rezada para os alunos. Sentávamo-nos mais ou menos amontoados sobre alguns bancos e a cidade ocupava o resto.
Era Ele quem oficiava.
Que diferença faz?, se também existem as missas negras.
Descobri que o menininho da frente comia uma cocada. Estava com o pai, um homem que deixara a seu lado, sobre o banco, um chapéu. Existem, pois, encarcerados eternamente dentro de mim, numa célula-cela da memória, um pai que tem chapéu e um menino que come cocada. Ele comia devagar, pedacinho por pedacinho e a demora era angustiante. Desapareceu tudo ao redor e só passou a haver no universo um pedaço de doce que subia, descia, se escondia, voltava. Branco, irregular, esfarelante. Se ele a tivesse comido numa engolida, limpando as mãozinhas meladas nas calças, a cocada talvez já estivesse apagada dentro de mim e ele também e o pai, com mais motivo ainda. Mas não foi o que aconteceu. Ele, involuntariamente, prosseguia na tortura. Não sabia da salivação aflita. Não sabia da respiração suspensa. Não sabia da vigilância tão próxima.
O menino calçava sapatos e sua roupa era limpinha.
Aqui, minha fantasia me ilude, confunde a consumação do episódio. Ora eu vejo o menino sair com o pai, deixando no banco um pedaço de doce, que eu como. Ora eu vejo, na saída, o homem aproximar-se de mim com um doce na mão, presenteando-me.
Qual. Não deve ter sido nada disto. Quando Ele nos liberou, todos se levantaram, eu tive de sair no meio do tumulto e perdi a visão.
Mas minha fantasia insiste e me mostra também uns farelinhos de coco espalhados sobre o banco, esquecidos.

A outra lembrança, é a do dia da confissão. Estávamos maravilhosamente preparados. As professoras tinham contado de pessoas que não confessavam todos os seus pecados e as hóstias sangravam ou eram vomitadas com insuportável fedor. A mais estranha era a da menininha
inocente como ele
que queria comungar e não deixaram porque ela era pequena demais e na hora da comunhão a hóstia se desgarrou dos dedos do padre, voou pelo templo e pousou sobre a cabeça do pequenino anjo. Como um espírito santo.
Estávamos maravilhosamente preparados. Preferia que o chão se abrisse e que eu desaparecesse. Tinha horror em pensar que eu poderia esquecer algum pecado, eram tão complicados aqueles pecados…
os pecados mortais são tantos
os pecados capitais são tantos
os pecados veniais são tantos
e havia aquela eumênide silenciosa e grudada na minha alma, a quem chamavam pecado original.
Eu estava maravilhosamente preparado.
Veio a minha vez e eu tropecei até chegar lá. Gaguejei as primeiras palavras e, num relance, enumerei meus horrores
arrancar a cabeça dos grilos
brigar com os amiguinhos
fazer maldades.
Que maldade?
Batia num menino aleijado.
Só?
Rasgava as figurinhas dele, zangava com ele, xingava ele.
O que mais?
Aquela voz me encarcerava. Da voz eu me lembro. Era macia, meio rouca, mas não tinha dono. Era uma voz demoníaca que saía de trás das grades, eu dialogava com a grade.
Eu silenciei e ele perguntou novamente o que mais. O que mais ele queria? Algum pecado mortal? Que eu desonrasse pai e mãe? Que eu cobiçasse a mulher do Próximo?, aquele sujeito desconhecido e de nome tão engraçado!
Eu bato nele, estrago os brinquedos dele.
A grade se calou, mas não me despediu. Comecei a suar frio. O silêncio estava exigindo que eu continuasse, eu precisava de mais pecados!
Matei passarinhos! (Nunca tinha matado passarinhos!)
Xinguei a professora!
Ele continuou calado.
Depois…
Que coisas feias você pensa?
Eu perguntaria a ele hoje, que coisas feias pensa uma criança de sete-oito anos. Filho da puta! Terrorista! Filho da puta!
Terrorista filho da puta!

Os antigos gostavam muito de alegorias. Pintaram a Inocência, a Cólera… Botticelli tem uma Calúnia. Dürer tem uma muito expressiva Melancolia. Alguém teria pintado ou esculpido a Sancta Mater Igreja? Seria essa alegoria como aquela mulher das dores, com o seio-hímem, da forma mais sadomasoquista possível, trespassado por um punhal fálico?
Tento imaginar a alegoria que existiria na cabeça de um menino de 7-8 anos, em função de sua experiência num internato dirigido por um padre. Lembro do filme Roma, de Fellini. No meio da neblina surge uma puta. É uma enorme mulher, se veste de preto. Exibe as mamas imensas, que poderiam ser a redenção para todos os bebês famintos do mundo. Antes de desaparecer de cena, limpa as gengivas com a língua, numa careta… Não! Uma puta pobre? Basta pensar nos tesouros do Vaticano.
Há uma outra, mais ao final do filme. Esta, num bordel de luxo… Não, é melhor abandonar estas imagens, esta, de rosto belíssimo, e a outra, tão humana…
Prefiro imaginar uma bruxa com o seio perfurado, eis que aqui ela encarna a Grande Meretriz do Apocalipse. A que se acha sentada por sobre as águas. Com quem se prostituíram os reis da terra. A Igreja.

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 15

jorge de souza felix

15. Jorge de Souza Félix

    É muito estranho lembrar.
Surgiram, no começo dessa minha tentativa de penetrar nos labirintos de minha memória, as imagens de garças e de abutres. Garças seriam pálidas lembranças de fatos agradáveis; abutres, qualquer cena mais assustadora. Nalguns momentos parece que eles se misturam.
Lembrar também pode ser como a imagem de uma paisagem cheia de ruínas. Aqui, um muro totalmente isolado, mas há nele afrescos muito coloridos de uma cena inteira, nítida e cheia de significado. Além, uma estátua decapitada, seria esta criatura uma boa divindade ou uma fúria terrível? Uma coluna solitária me fala de algum aprendizado. Uma coluna despedaçada no chão sugere algum motivo de vergonha.
Sei bem que houve um momento de minha vida em que todos estes detalhes arquitetônicos faziam parte de um todo coerente. Eram o meu tempo presente. Ali dentro, eu respirava meus medos e minhas esperanças. Ali dentro, meu coração ia aprendendo aos pouquinhos, muito aos pouquinhos, sobre o grande espanto que significa viver.
Anos e anos mais tarde, a gente só consegue lembrar que alguma coisa existiu, muito mais à semelhança de uma grande mentira. E, ao tentar refazer o passeio ao passado, descobrimos que aquela cidade está morta.
Meus passos se dirigem a um pequeno templo. Sei que vou encontrar algo terrível. Vejo murais destruídos, mostrando garras. Há cacos espalhados de uma escultura, mostrando olhos cheios de dor. Está quebrada a bacia onde deveria haver uma água abençoada; não posso ver, pois, o reflexo de meu rosto melancólico. É um templo pagão. Prefiro que seja um templo pagão.

Algum tempo depois que cheguei, apresentou-se nova turma. Foram colocados diante de todos nós e seus nomes foram lidos, para conhecimento geral. Num momento, eu estremeci. Meu nome fora gritado, meu nome tinha sido gritado na confusão. Era esquisito tudo aquilo, acerquei-me depois do Geraldo, cheio de espanto, e comuniquei meu medo. Ele falou com o Antonio. Não era Teles. Era Félis. Jorge de Souza Félis. Deveria ser Félix, teriam lido errado.
Curiosamente, ele também chegara acompanhado de um irmão mais velho. Geraldo procurou os dois. Não me lembro do outro nome. Ambos pardos, quase mulatos. Meu xará aproximou-se. Tinha os olhos fundos, a pele seca, manchada de branco, as orelhas enormes. Parecia a caveirinha de um macaco. Esquelético, subnutrido. Uma das mãos, viradas para trás, a paralisia o deformara. Também um pé virado para trás, o aleijadinho se torcia todo para andar, desequilibrado e bambo.
Que lástima! Que sofrimentos ele não deve ter padecido! Eu não consigo conciliar o ato da criação com aquele resultado. Qualquer deus haveria de se envergonhar com tanta crueldade. Pensar num acaso indiferente, numa natureza desapaixonada, num destino imprevisível… continuo achando uma crueldade.
O menino aos poucos foi se aproximando de meu grupo. Foi aceito, misturou-se, mas já os meus amigos se afastaram discretamente. Mas eu quase tenho certeza de que ninguém zombou dele.
Não sei por que motivo, nalgum dia, percebi que brincávamos juntos. Isolado de todos, segregado, não sei se exilado por pressão dos outros, por medo ou por decisão própria, o aleijadinho se agarrou à única tábua de salvação que encontrara: alguém com o nome quase igual ao dele. Era como se eu estivesse condenado a aceitá-lo, pelo fato de me chamar como me chamava.
Desconheço nossas primitivas brincadeiras. O que se marcou profundamente em mim, foi o susto ao perceber que as nossas relações não estavam iguais às dos outros. Eu mandava, ele obedecia. Ele perguntava o que fazer, humilde. Eu ordenava, zangado. Ele me olhava com os olhos cheios de horror e tenho a impressão de que eu batia nele. Não tenho certeza. Era um pequeno escravo, submisso, morbidamente dócil, desesperadamente obediente. Me afligia muito o fato dele não reagir, dele aceitar minhas injúrias, dele continuar farejando a minha companhia. Redobrei as maldades, rasgava suas figurinhas, destruía seus brinquedos.
Ele voltava como um cãozinho desagradável, olhando-me com aqueles olhos que só vi de novo nos documentos dos campos de concentração nazistas. Com certeza, eu exagero. Meu arrependimento cheio de terror deve estar, agora, acrescentando pinceladas expressionistas a esse farrapo de memória.
Não sei o que mais me afligia: se o fato dele ser aleijado, não me deixando a oportunidade de abandoná-lo; se o crescente remorso que minhas atitudes passaram a criar em mim.
Voltava a ele disposto a acabar com tudo, batia nele, ele ficava um pouco longe, de cabeça baixa e eu mesmo resolvia conversar com ele, cheio de pena. Não admitia, porém, nenhum deslize, ralhava, xingava, me sentia o dono dele.
Não me lembro de como tudo terminou. Acho que os outros voltaram e ele se foi de mansinho, não me lembro. Não o vejo mais brincando comigo, depois daquela fase escura. Talvez tenha se juntado a um grupo mais infeliz, o dos mijões, quem sabe?, sendo recebido como um igual. Que, ali, a felicidade tinha chegado ao limite mínimo. Naquele zero, não faria diferença um aleijão a mais ou a menos.
A última lembrança dessa infeliz criatura surge em mim como se eu estivesse a ver um pássaro ensangüentado sobre um mosaico cheio de fuligem.
Na véspera de minha partida, um dia, até então, como outro qualquer, fomos todos reunidos para a leitura dos nomes daqueles que seriam “desligados” do colégio. Geraldo foi chamado. Ao soar o seguinte, não entendi direito, tinha certeza de que leram Félix. Começaram a me empurrar para fora da fila, não sou eu, é ele, ele saiu desajeitado, puxaram-no, empurraram-no, voltei ao meu lugar, Geraldo me tirou da forma e ele parou sozinho, bambo, me olhando com seus olhos enormes no fundo dos buracos.
Não me lembro do resto.
Não… não me lembro do resto…
Acho que o sentimento intenso e complexo que se seguiu, apagou em mim aquele menino, dentro daquela cena. Muito tempo depois, lembrando do fato, é que sofri por ele.
Pobre menino, pobre aleijadinho, que, infelizmente, naquele momento, pelo menos, pobre daquele que não era eu.

continua no próximo domingo.

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