garças e abutres… 02

garças e abutres 02

2. A viagem

    Havia muita luz ao redor. Parecia que estávamos num palácio de vidro. Não sei como chegamos ali porque eu já estou sentado, dentro do trem. Geraldo está perto de mim. Vejo pela janela que, do lado de fora, minha mãe chora. Tia Ananísia enfia a cara pela janela e pergunta:
Quem é que vai tomar conta deles?
O Aluísio.
Quem é?
É aquele ali; alguém apontou um rapagão corpulento, gordo mesmo, claro, cabelos anelados, mais tarde me lembraria, como os das estátuas do deus Apolo. Mais tarde, também me lembraria sempre dele, ao ouvir a palavra balofo.
Moço, é você que vai vigiar eles?
Sim, senhora!
Tome conta deles, Aluísio, pelo amor de Deus! Cuide deles. Não deixa ninguém judiar deles, não! E apontava para mim e pro Geraldo.
Minha mãe chorou mais alto e Geraldo também começou a soluçar. Não entendia como era possível chorar num lugar tão lindo, quanta luz!, eu dentro do trem!, minha primeira viagem!
O fato é que a viagem era mais fascinante que todo o resto. Eu vestia minha capinha preta, daquelas antigas, que envolvia todo o corpo, sem mangas, os braços soltos por dentro. Esperava ansioso o primeiro movimento.
Lembro agora, enquanto escrevo, que ele também estava lá. O inspetor. Antonio. Mulato enorme, pele mais para clara. Tinha chapéu. Só me lembro desse detalhe por que durante uma parada ele haverá de encher o chapéu com goiabas e sairá correndo atrás do trem, já em movimento. Foi ele que acabou de avisar alguma coisa e todos silenciamos e nos sentamos e minha tia repete o pedido ao Aluísio,
o senhor vai ser o responsável, moço, nós confiamos no senhor, moço,
minha mãe se desespera, ouço um baque, tudo começa a tremer, e em vez do trem começar a andar para frente, são eles que deslizam para trás: a tia, a mãe, os outros, cada vez mais depressa, até que se faz negrura completa lá fora.
Geraldo chora. Alguém mais choraria? Não me lembro de ninguém. Eu, Geraldo, o inspetor Antonio, e o moço que recebera as recomendações da tia: Aluísio. Na viagem soubemos mais. Ele era morador do internato para onde íamos, mas ajudava o inspetor nas idas e vindas, trazendo e levando alunos. Não sei se foi na viagem ou depois, que ouvi:
O Aluísio é mulher do Antonio.
Minha compreensão não alcançava as sutilezas da frase. Tenho noção bem precisa de minha compreensão do fato na época: eles dormiam juntos, eles eram casados. E como “dormiam juntos” eu só entendia que se dormisse junto, mesmo. Nada mais interessava. Não sabia que era preciso ser mulher para ser mulher de Fulano. Devia ser assim mesmo e o jeito era aceitar a verdade, guardá-la, poderia precisar dela noutra ocasião. Mas por quê aqueles risinhos, quando eles repetiam a frase?
Algum tempo depois de iniciada a viagem, descobri uma verdade que me encheu de alegria. Se eu olhasse pela janela, o trem andava; tudo corria para trás, mas era ele que andava. Se, ao contrário, olhasse para o chão do trem, ele parava e apenas tremia. Não, ele não parava, essa era a verdade maravilhosa. Ele parecia parado, mas andava. Fiquei assim muito tempo, concentrado em pensar que ele parecia parado, que tudo parecia parado, se eu olhasse para o chão.
E eis que já estou num caminhão. Estamos amontoados numa carroceria, é noite. Anos depois, Geraldo lembraria que fomos do Rio até Cruzeiro, em São Paulo. De lá, noutro trem, para uma estação que tinha algum nome além de João, João-não-me-lembro-do-quê. Depois é que tomamos o caminhão para Campo do Meio. Não sei disso, não existem estes detalhes dentro de mim. Do trem da Central do Brasil, aquela possante máquina, me vejo no caminhão. Há muita gente agora, todos amontoados, está escuro, falam, mexem, eu me cubro com minha capa.
Agora, já estamos caminhando em direção à casa. É noite, eu de mãos dadas com Geraldo. De repente, percebo que estou sem minha capa. Ele me adverte que não adianta mais, o caminhão já foi embora. A capa sumiu. Era negra, era quente, era um pedaço de minha cidade, Manhuaçu, que me acompanhava, era a lembrança constante e viva do olhar triste de minha mãe, que a tinha feito para mim, quando comecei a ir à escola.
Então, nalgum momento entramos naquela casa. Também este momento está completamente apagado em minha memória. Mas, forçosamente, entramos. Entramos, sim, com certeza, porque meu coração não esqueceu jamais o punhado de recordações que se desenharam dentro de mim. Algumas recordações são brancas e apagadas, como garças que voassem na neblina; outras são vivas, nítidas, com cheiro e volume, como um abutre feroz, com suas garras afiadas, ou seu bico implacável, sanguinário…

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 01

garças e abutres 00

    Um homem inteiramente só, não teria memória; nem precisaria dela. (Pierre Janet)

O Senhor Freud estava errado.
O inconsciente não tem poder sobre nós, mas, sim, a memória.
É a memória como uma Imperatriz das Almas. É ela quem decide aquilo de que lembraremos por todo o tempo e aquilo que se apagará de dentro de nós, para todo o resto da nossa vida. Podemos aprender a tornar a memória mais ampla. Podemos, numa terapia, resgatar lembranças que pareciam perdidas. Mas NÃO PODEMOS ESQUECER, por opção, aquilo que a Imperatriz das Almas não permite que seja esquecido.
É o terrível jogo entre as lembranças que temos, e aquilo que não conseguimos esquecer, é esse o jogo que define cada ser humano. Somos essa soma. Aqui não há subtrações. O apagado apenas significa o que não nos pertence; o que não somos mais, nem voltaremos a ser.

1. Antecedentes

garças e abutres 01

Num resumo, os fatos que antecederam a minha chegada à estação de trem foram os seguintes.
Tínhamos viajado para o Rio, mamãe, Geraldo, Amélia, eu e Angela. Três dias de viagem na cabine do caminhão, Geraldo na carroceria com o ajudante. No segundo dia, em Muriaé, Ângela fez cinco anos. Vinte e quatro de março de 1949. Eu tinha, portanto, seis anos e quase nove meses.
A viagem, hoje, mais parece uma seqüência breve de fotografias. Pedaços de memória. Ou cenas curtas de um filme mudo, arranhado, muito claro, montagem complexa em que imagens se misturam umas dentro das outras.
As cenas do caminhão; o almoço na pensão, no dia do aniversário; todos nós sentados numa calçada e em volta da mãe, numa noite escura e morta, dormindo encostados uns nos outros, enquanto ela conversava com uma moradora da cidade (Leopoldina?).
Na avenida Presidente Vargas, um homem parou a moto e nós, aflitos, atravessamos a rua larguíssima. Pensei que nunca mais tornaria a vê-lo. É a primeira vez, que me lembre, de ter tido esta idéia: vendo ou sentindo alguma coisa, concluir que aquilo não se repetirá.
Do homem da moto, já estamos no apartamento da tia. Telefone, os carrinhos lá embaixo, rua Washington Luis, número 1, apartamento 801, telefone 32-8366. Seria mesmo isto? Geraldo jogou um tostão lá do alto, nós descemos e o procuramos, inutilmente. Não sei quantos dias ficamos ali.
Porque, na cena seguinte, já estou olhando o grande portão de ferro do SAM (Serviço de Assistência ao Menor), algum menino me dizendo que não daria para fugir por ali. Mas por que alguém quereria fugir dali?, eu penso. Eu visto um macacão azul, como todos, o padre nos ensina um canto, cujas palavras eu já esqueci:

    Queremos Deus, homens ingratos ….. Zombam da fé os insensatos…..Da nossa fé, oh, Virgem, o brado abençoai…

Que seria brado?, eu penso. A música me entra e engasga minha alma, a comoção dói e o padre se dilui, desaparecendo.
Geraldo devia estar por ali, decerto, porque volta e meia ele aparece, como se fosse mágica. Sua presença me dá muita segurança, sei que logo ele vai fazer doze anos!
Estou no meio de alguns meninos, um deles coloca o dedo rígido junto ao rosto de um outro e chama:
Ô garoto!
E o outro, ao virar-se, bate o rosto em seu dedo. Todos riem. Acho que eu também ri. Faço o mesmo com algum vizinho:
Menino!
Mas a palavra me soa estrangeira e desarmada. Eu me encolhi todo, envergonhado. Menino ali não era menino, era garoto. Ou então guri. Garoto, guri, as palavras dançavam dentro de mim.
Ignoro quantos dias ficamos naquele prédio. Teríamos dormido ali? Com certeza, porque me lembro de visitas, lembro de maçãs e lembro do olhar triste de minha mãe. E se alguém me perguntasse o que era viúva…
…naquele tempo, eu conhecia uma tristíssima canção infantil:

    Eu tenho um rochedo tão alto
Que ninguém pode alcançar.
Sentou-se a pobre viúva
E triste pôs-se a chorar,
A chorar,
A chorar…

…e se alguém me perguntasse o que era viúva…
…eu diria que viúva era o que era minha mãe.
Todavia minha mãe não era viúva. Apenas abandonara o marido alcoólatra, carregando a prole para a cidade grande…
De repente o portão, o padre, o canto comovedor, os garotos, as visitas, tudo corre para trás. Estou no trem.
Estou no trem!
Cheguei, enfim, à estação. Anos depois, saberei que era sexta-feira santa.

continua no próximo domingo.

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