Indice: Trilogia Cética

trilogia cética 03. réquiem

   Réquiem para todas as ausências O último homem está caído ao chão. É sua última queda. A custo encostou-se…

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trilogia cética 03. réquiem

   Réquiem para todas as ausências

O último homem está caído ao chão. É sua última queda. A custo encostou-se a uma pedra. Seu corpo dói. O respirar é aflito. Olha as pernas e os pés mas vê apenas ossos e uma pele suja. Há hematomas, arranhões, unhas partidas, sangue preto colado ao seu corpo. Suas mãos são mãos de um esqueleto. As pontas dos dedos feridas e sanguinolentas.

O último homem caiu. Não se lembra do que aconteceu. Guerra? Cataclismo? Doença? Não sabe nada. Por dentro da sua cabeça há apenas um ruído assustador, contínuo e surdo. Olha e não compreende. Perambulou errante, aos tropeções, mas a cada momento o tempo se dilatava mais. Perdeu o rumo, perdeu o norte, perdeu o sentido de existir.

Sente fome mas só tem os dedos para comer. O sangue sabe bem mas há dor.

Sente sede mas não consegue se lembrar do que é água.

Olha à frente e não percebe o que vê. Há uma natureza que não tem significado. Cores não mais existem, apenas tons de cinza e muita escuridão espalhada sobre as coisas.

O coração está dentro da cabeça. Explosões tremendas que fazem balançar seu corpo. Tudo é dor. Fome e sede e dor. Mas já não tem capacidade para perceber o que está acontecendo. Contrai-se por inteiro. É apenas um moribundo animal encolhido.

O último homem está no limiar do fim.

Fecha os olhos e vai deixando cair a cabeça. O sono da morte. O silêncio vai tomando posse de suas veias. O rumor surdo vai se apagando. E as pancadas do coração vão indo para longe… para longe…

O último homem, que não sabe por que morre nem por que é o último, abre os olhos pela última vez.

E seu coração silencia.

Wedo, a deusa do arco-íris dança iluminada à sua frente. Ele não se move. As cores tremulam e faíscam esplendorosas. Todo o ambiente se enche de deslumbramento. Mas o homem nada vê.

Ah Puch se aproxima dele. Tem a cabeça descarnada, uma caveira terrível, e ao seu lado sibilam e estalam apavorantes cascavéis. Executa uma dança macabra ao som dos implacáveis chocalhos. O homem não se move, seus olhos esbugalhados não vêem e seu coração não teme.

Ah Puch se afasta assustado porque quem surge ali, agora, é Nocuma. Nocuma, o que criou o céu e a terra. E fez do barro a Ejoni, o primeiro homem, e Aë, a primeira mulher. Nocuma olha entristecido o último homem. Aproxima-se. Curva-se. Toma-lhe o pulso. Ossos e pele sem palpitação. Não pode fazer nada. Nocuma chora.

E surge Li N’Gwa Se N’Gwe, a mãe de todos! Balança suas mamas colossais e dança ao redor do último homem. Mas está morto o último homem e, se os deuses ainda não o sabiam, a morte não oferece retorno.

Mas que bando peregrino é esse que se aproxima? De todos os lados figuras assombrosas, gigantescas, umas, transparentes, outras, em torno do homem morto, do último homem que acabou de morrer! Vão se reunindo as criaturas, e tudo chameja, reflexos exuberantes de todas as cores, a aurora boreal, o resplendor absoluto.

Huitzilopochtli, o feiticeiro deus colibri e Xochipilli, o príncipe dos lírios, plumas e ouro!

Teshub e sua esposa Hebat!

Lug, o deus soberano mágico e Kumarbi, o pai de todos e Anu, o grande!

Perun, o raio, e Manitô, o supremo mundo natural!

T’ien, Ti-e, Tsu Tsung, jade, sedas de mil cores, rostos da porcelana mais pura!

Tezcatlipoca, Quetzalcoatl e Tlaloc, imensos, tremeluzir de todos os brilhos! e prata! e turquesa! e obsidiana!

E os guerreiros gigantes Tor, Loki, Odin, Lug, escudos, espadas, lanças e martelos! e Freia!

E em torno do cadáver começam já a ecoar os primeiros lamentos de dor.

Resheph e Anat e Horon e Baal e El!

Lamentos já gemidos.

Sin, Shamash, Assur, Marduc, Enlil, Adad e Ishtar!

Gemidos já desesperados.

Tangaroa, Tane, Tu, Hina, Pele, Rongo!

A dança funeral, o grande círculo macabro, a procissão funérea.

Oxalá, Xangô, Oxóssi, Iemanjá, Olarum, quantos são? metais e máscaras, anéis e cetros, brilhos de miçangas e espelhos! e coroas e cajados!

Uivos e clamores.

E que multidão é essa? cabeças de elefante, seis braços! reluzir de diamantes, safiras e rubis! Vishnu, Prajapati, Purusha, Kali, Ganesha, Varuna, Indra, quantos são? eles se transformam, um é muitos, muitos são um, entoam um lamento interminável, um agonizante murmúrio de desespero.

E num barulhento cortejo avançam agora estes seres multicoloridos, alguns com cabeça de animal: Hator, Osíris, Ísis, Nut, Anúbis, então estávamos enganados? então a morte é para sempre?

E essas etéreas figuras de maravilha? Todos muito róseos e louros e quase todos seminus e seus véus são levíssimos e seus passos não tocam o chão e Zeus e Hera e Atena e Afrodite e Apolo e há outros! E são tantos! E que vieram fazer aqui? Vieram presenciar a morte? Deuses gregos não podem! Vieram assistir à derradeira queda de Prometeu? Contemplem o espetáculo!

Pasmo.

E sofrimento!

E diante da incalculável multidão de cores e formas, eis que se corporificam as três grandes entidades dos monoteísmos: Jeová, Jesus e Alá.

E se misturam e se perdem e já são todos apenas criaturas de todas as cores e todos os brilhos que se organizam num gigantesco funeral.

E, de repente, assustadores, mas eles mesmos espantados, vão surgindo fantásticas criaturas, misturas do delírio total! híbridos da alucinação! gigantes com asas, dragões, cavalos não cavalos, serpentes já divindades, pedaços de deuses e pedaços de pesadelo, o horror da colagem desesperada, esporos saltados dos cérebros doentes e infantilizados, os filhos do susto, os netos do arrepio, os herdeiros do medo, os monstros de todas as lendas e os deuses  não se inquietam porque já se acostumaram a estas ramificações da fantasia tresloucada e porque sabem eles mesmos, os deuses de todos os tempos, que também eles têm a mesma perdida origem, a célula primordial, brotada por geração espontânea no coração ignorante e aterrorizado do primeiro homem.

Ninguém ousou tocar o cadáver.

Todos sabiam que ele pertencia a Tellus Mater, Gaia, Papa, Luminuut, Oduna, Tamaiovit, Asaseya, Okwapin, Mokos.

A Terra.

Os deuses todos, mais do que todos os homens, sabem agora que só se morre uma vez. E que a morte é a única divindade que prevalece.

Alá, Jeová e Jesus se dão as mãos e marcham. Harmonizam-se e entram de acordo. Mas percebem que agora é tarde demais. Que isto de nada mais adianta. E percebem também que acabam por fundir-se numa só criatura desesperada.

Todos vêm e vão em filas, todos os deuses de todos os tempos, e querem chorar esta morte de corpo presente.

E entre olhares desolados e entendimentos silenciosos, todos os deuses de todos os tempos resolvem, para aplacar a dor da perda irremediável, decidem que vão entoar um canto fúnebre, um hino à morte, um réquiem, um peã, um lamento gigantesco e extraordinário que traga a consolação ao inconsolável; algo mais que o canto de Ngofio-Ngofio, o pássaro da morte. E resolvem que junto às vozes soarão os prodigiosos sons dos instrumentos feitos pelo homem. E seja essa liturgia do despedir e da saudade a última manifestação de todos os deuses de todos os tempos.

Mas nada é ouvido, além de um gemido estrangulado nas gargantas divinas. Nenhum som se transforma em melodia. É que os deuses, sem a participação humana, não são capazes de criar música.

Choram os olhos de todos os deuses. E a procissão forma um grande círculo que começa a flutuar em torno do planeta azul. Plumas vão caindo! Diamantes se vão perdendo! Vestes suntuosas flutuam, anéis gravitam e mudam de órbita, coroas descoroam e tombam. Véus de uns passam a cobrir outros. Lanças que flutuam lentas mudam de mãos e são abandonadas e viram cor e luz e se integram ao grande círculo.

Entretanto, os rostos já não são tão belos.

Porém, por fidelidade ao homem, eles continuam a flutuar, misturando-se entre si. Matizes mil, a policromia e o brilho, sóis espalhados entre sedas e jóias, todas as cores e todas as estrelas e todos os luzeiros cambiantes, a poeira iluminada, a Via láctea, não láctea, mas iridescente, já não há rostos, já não há formas, mas ainda há fulguração e resplendor.

O grande círculo paira em torno do planeta azul.

Visto de longe, o planeta ganhou um anel. como os de Saturno.

Já não sabem chorar os deuses todos de todos os tempos. Já não sabem quem são. São nuvens sem cor, sopro e luz. São poeira em um colossal anel, agora monocromático, que gravita em torno de um perdido planeta azul.

Quanto tempo durou aquele anel silencioso? formado por uma estupenda fosforescência espectral! Dez anos? Cem anos? Mil anos?

O tempo está parado.

Não existe tempo, quando não há mais esperança.

Campo Largo, 24 de setembro de 2003.

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trilogia cética 02. via profana

Trilogia Cética: segunda parte.

VIA PROFANA

I

OS PASSOS DA PAIXÃO

Quantos,
quantos são os Passos da Paixão?

Entre tropeços e quedas
e encontros e chicotadas,
vai o homem percorrendo a via da desesperança.

E quantas vezes seja essa via percorrida,
há de ser sempre percorrida por cada um a seu tempo,
porque não é outra a história do homem
senão a história de sua peregrinação.

Ulisses ou Cristo?

Tanto faz,
porque sempre haverá dores e solidão.

Principalmente muita solidão.

Tomo a peregrinação de Cristo
porque é através de seu símbolo
que me quero desmitificado.

A CEIA   

Primeiro quero dizer
que não haverá essa ceia mística
preparada por mãos zelosas.

Sem pão e sem vinho.

Seja sacralizada
cada parcela do parco alimento diário
e nada mais.

Não quero ceias místicas
dessas que foram feitas
para revelar amores e traições.

Não quero amores,
agora,
nesse início de minha via profana
e, como não quero amores,
não haverá traições.

Não estou à venda,
se não que estou para ser tirado de mim mesmo
e de novo doado a mim mesmo,
envolto no mais real que for possível
dentro do real.

AS MAIS DE DOZE LEGIÕES

Agora direi
que preciso matar esses anjos de fantasia.

Não os quero ao meu lado.

Fora e fora, já!,
legiões e legiões de querubins
com suas asas diáfanas
de mil cores
e mais luzes que mil.

Quero-os degolados aos montes,
decepados esses dedos
que apontam em direção a abismos negros,
cegados esses olhos de veludo macio
que seduzem com promessas,
cortadas essas imensas asas
que provocam vôos ao vazio sufocante.

Não preciso mais acreditar em vocês.

Fora e fora, já!,
criaturas do nada,
enviados dos deuses de mentira
através dos quais se engana
e se impede vôos maiores
em direção a aquilo que se é
e só a aquilo que se é.

Porque sei que
na hora do grande choro
vocês se mostrarão o que são:
fantasias de criança
cuja ausência aumente o terror
do real.

OS DOZE


É preciso também
acabar com esse bando
enfadonho e asfixiante
de apóstolos
que me embrulham,
querendo verdades de minha boca.

Não quero mais saber de verdades.

Todas as palavras valem o mesmo
a partir de agora;
porque eis que quero desnudá-las por completo
para descobrir o seu significado outro,
escondido na sombra da cultura e da civilização.

Palavras,
agora,
serão como cuspes impunes
na minha boca de despossuído
e escapulirão aos montes e aos tropeços,
sem ordem,
sem lei e sem moral,
e, principalmente,
principalmente,
sem nenhuma estética.

Que querem vocês de mim?, discípulos não meus,
sempre se chegando por trás
como uma sombra que ataca!

Por que,
como perdidas crianças desamparadas
estão sempre à espreita daquele
que pode vir a ser o mestre?

As luzes que me iluminam estão, por opção, apagadas,
porque quero escuro esse meu pedaço de caminho.

Acendam, vocês, então, suas luzes pessoais
e se a sorte os deserdou de luzes próprias
sejam antes errantes meteoros vertiginosos
do que satélites obedientes e passivos!

Porque,
se meteoros,
a vertigem os inflamará
e os impulsionará para fora de todos os sistemas!

Não me procurem, não me rodeiem, não me contaminem o ar
porque preciso de espaço,
ainda que seja para me encolher como um feto.

A MULTIDÃO

Quero, agora, também,
acabar com essa multidão de curiosos.

Que pensam que querem de mim?, vocês todos
com esses olhos esbugalhados pela sanha de novidades
e essas mãos prontas para apedrejar!

Vocês,
inúteis pais ou mães ou ferreiros ou pescadores ou bancários ou professores ou ladrões políticos ou só políticos
ou todo o resto,
ou nada de nada,
porque eis que aqui vocês são apenas
um monstro de uma só cara
ou, pior do que isso,
um monstro apenas sem cara,
sequioso de sangue para alimentar um sadismo barato
cuja dor se apagará ao primeiro gole de cerveja,
ou desejoso de uma queda para provocar nova anedota
que lhes iluminará o riso idiota
durante outra dessas incontáveis noites de merda,
ou apenas à espera do milagre
aureolado pela crença de gerações centenárias,
que forçará o parto de um novo deus
e a ereção de uma novíssima e portentosa
religião absoluta!

Aí, sim,
vocês se darão aos mãos
e falarão de paz
e erguerão as mais ousadas catedrais
e construirão novas leis e novas morais
e, principalmente,
principalmente,
novas estéticas.

Os olhos continuarão,
todavia,
esbugalhados
em busca das revisadas curiosidades de rua
e as mãos estarão,
como sempre estiveram,
apedrejando
nas outras formas descompromissadas de se apedrejar,
quais sejam,
sepultar os livres no ostracismo,
ignorar o canto livre dos livres,
fechar os olhos aos famintos que infestam ruas,
avalisar as atitudes políticas de comprovada desonestidade
e dormir o sono de crianças
que desconhecem
as bombas do último e único desastre.

Não serei modelo para seus choros estéreis e doentes,
nem para anedotas de fim de noite
e, muito menos ainda,
muito menos ainda,
para religiões caiadas pelos dogmas.

E não caminhem atrás de mim,
tentando presenciar minha via profana,
porque sou capaz de cuspir fogo
e incinerar essa dura casca de paquiderme
que protege suas consciências.

E, se insistirem, vou cuspir água,
e afogá-los num mar terrível
que não se abre fácil a varinhas fálicas.

E, se perturbarem pela última vez, vou cuspir-lhes merda
para lhes dar a única realidade que lhes pertence.

O SINÉDRIO

E por que é que me trazem à frente desses juízes?

Pensam que me vou calar diante dessas faces bestiais?,
esses minotauros,
que só têm de si um falso nome!

Pois não hei de me calar diante dessas pestilências todas
e hei de proclamar que conheço suas ações noturnas!

Cheias de visitas interessantes
que tecem a rede armadilha
das grandes aranhas!

E direi mais
que conheço o tédio de suas mulheres
abandonadas em casas de seda
e sei das delinquências de seus filhos
e da desesperada solidão de seus netos.

E sei também de suas carreiras,
juízes togados e mumificados,
e sei que essa carreira lhes exige
o sacrifício diário
de estrangular aos pouquinhos
a justiça atônita!

Não estou para ceias,
nem para pasto de anjos,
nem para ser mestre de discípulos desnorteados,
nem para ser adubado pelo veneno dos curiosos.

Mas do que tenho mais certeza,
com certeza,
é de que não estou para ser julgado
por sua concupiscência
de olhinhos de macaco
nem para ser interpretado
por sua ignorância
de olhinhos de hiena.

Vocês só julgam com seu medo e seu oportunismo
e só interpretam com sua gula e sua covardia.

Esmagados por oportunismos e gulas maiores,
dançam,
debaixo de gordíssimos senhores,
a dança de poucos passos
e poucos movimentos,
a dança da justiça injustiçada.

E no escuro escuro de seus sonhos
vocês se alimentam de medo e covardia,
lembrando-se dos olhos abaixados
de vergonha e humilhação
daqueles vitimados pelas chibatadas
de sua justiça injusta.

Homens tortos de cabeça e coração,
minotauros,
de terno e gravata e pasta
e descomunais cabeças de bestas,
saiam do caminho!,
porque minha trilha não foi traçada
para topar com mitológicas misturas
de homens e de feras.

Minha trilha é de solidão
onde não cabem estas justiças
de pesos imantados.

CAIFAZ

E que teimosia é esta
que agora me faz à presença
do Sumo-Sacerdote?

Quero fechar os olhos
e fazer desaparecer da minha frente
essa amargura papal.

Apague-se, bruxo triste!

Como é fácil me livrar de você!,
roupa enfeitada de dois mil anos!

Por onde vai passar agora o meu caminho?

PILATOS

Pilatos!

Quem te chamou aqui?

Pensa que vai representar esse papel
inútil
a cada momento?,
lavando as mãos
que fingem desconhecer
quem assina o decreto!

Não haverá mãos lavadas
nessa minha via
e teus dedos sentirão para sempre
as manchas da culpa
pela subordinação não contestada.

Sei dos fios
que te fazem marionete
dos que têm as terras e os títulos e os bancos e as indústrias.

Sei dos compromissos
que te fazem fantoche
dos que cavoucam minérios e se trocam leis.

Sei das terriveis e pertinazes vontades alheias,
alheias a todas as vontades,
que não se dobram fácil
a dores de povos e a sangues derramados,
e que recheiam teu corpo inchado,
pinochetco,
salazariano,
e tantos outros nomes de triste memória,
que não vale a pena levantar…

Seco tua água
e apodreço teu sabão
e derreto tua bacia
e queimo tua toalha
e faço voar sobre tua cabeça a bilha de metal!

Em velhas histórias
de esquecidos deuses
você lavou impunemente as mãos.

Mas não o fará em histórias de humanos.

Tuas mãos manterão
para sempre
a sujeira de que você é partícipe.

Aprenda com Lady Macbeth!

Pois é apenas para isto
que o homem tem alguma liberdade:
para não ser prejuízo de outrem!

Afaste-se.

AS FILHAS DE SIÃO

Agora, vocês,
mulheres de Jerusalém,
das quais se diz piedosas.

Piedosas mulheres de negro…

Saiam do caminho.

Não me venham com isso
de óleos e unguentos
e lágrimas tristes
e panos para limpar o sangue de minha cara
e o suor de minha cabeça.

Mulheres piedosas,
que sabem vocês?

Vocês que sempre se escondem atrás de seus homens
legitimados pela lei,
enquanto escondem de si mesmas
gozos proibidos
e conhecimentos excitantes
e palavras esclarecedoras.

Vocês que,
vestidas de mulheres,
escondem de si mesmas e do mundo
as pessoas que são.

Vocês que aceitam cabisbaixas
o trono da maternidade
e as bacias do bordel,
sem opção,
porque são sempre eles quem resolve
o que hão de ser vocês,
mas nunca vocês mesmas.

Mulheres piedosas,
o que vocês entendem por piedosas?

Que incêndios vaginais são consumidos
nessa piedade?

E que entendem vocês por mulheres?

Quantos filhos varões vocês estão castrando
diariamente?,
com essa terrível e eficiente arma
que vocês manejam com tanta imperícia
e que se chama amor materno!

Não quero de vocês essa maternidade nociva
e, diante de sua piedade,
quero apenas ser um espelho
para que vocês se vejam
e sintam piedade de si mesmas.

Sem isso de óleos e unguentos
e choros tristes,
pois.

E não posso permitir que venha Verônica
com seu pano feiticeiro
a tirar a minha cara
da minha face.

Minha face é a única que tenho
e é nela que precisa estar presa
minha cara,
e não transformada numa bandeira
para provar mentiras
aos acreditadores de mentiras.

Não sabe você?, Veronica,
que tirar a cara a um homem
é tirar-lhe
sua metade mais cara!,
deixando-lhe apenas a outra metade
nome!

E, publicada minha cara,
como uma bandeira sagrada
ou uma manchete de jornal
ou uma nota em fim de página,
não tem ela o mesmo sem-valor?

E tanto faz que esteja escrito embaixo
rei dos reis!,
eis o último presidente!,
procurado pela polícia!

Sempre será,
o que ficar,
um resto a servir de carniça,
aos olhos esbugalhados dos curiosos sem rumo
que se escondem atrás de todas as esquinas.

E que estão sempre dispostos,
uns, a erigir o trono papal
e proibir pílulas anti-explosão demográfica,
e outros, a dar o tiro certeiro
transformando presidentes em semi-deuses,
e, outros ainda, ao telefonema anônimo
que entrega os cristos urbanos
à violência da polícia
sacralizada pela ordem burguesa!

Não te ensinaram estas coisas?,
mulher!

Envolva uma criança qualquer
de um país qualquer
com este teu pano encantado,
sepultando assim o nascimento
de outra perniciosa religião.

E junte-se às outras mulheres,
e desapiadem-se todas
ou tenham piedade de si mesmas.

E saiam da frente,
por favor,
para não aumentar a minha mágoa.

A CENTÚRIA

E saiam da frente,
também vocês,
para não aumentar a minha fúria,
soldados lacaios do poder barato.

Vocês que nada sabem
se não pregar pregos em mãos condenadas
e jogar bombas em cidades
e virar números.

Ou apertar botões
e fazer evaporar em pragas estéreis
o sopro obstinado da vida.

Não preciso desses seus gracejos infantis
a brincar
com minha condição humana!

Tenho eu coroa mais terrível que a de vocês
trançada com dúvidas de difícil solução
a espetar o crânio dolorido;
e não quero essa cana cetro
e essa púrpura
a transformar-me em rei dos reis:
não estou para mitificar-me
porque
o mito
morre centenas de vezes
e ao homem basta
apenas
a sua única morte.

E não me tragam amarras
nem pelourinho
porque tenho eu, já,
minhas culpas particulares.

E não me acompanhem também
porque sei eu ser o meu próprio verdugo
a exigir
atenção!
e cuidado!
e não esqueça!

Quero limpa a minha via;
me basta,
e baste a cada homem,
a sua própria consciência!

Que eu saberei fustigar meus passos
em direção ao que tem que vir
e saberei executar
minha própria condenação.

Quantas vezes terei então
que ser crucificado
ou imolado
ou autopsiado vivo?

Quantas vezes precisarei
devorar meu próprio coração?

Quantos,
quantos sejam os sacrifícios,
quero estar sempre só!

Não quero precisar de crianças doentes
a chicotear meu chão!

Saiam da frente,
soldados de nenhuma sabedoria.

Tanques de carne abúlica,
fora!

Para que não aumente a minha fúria!

SIMÃO, O CIRENEU

Simão,
o cireneu,
de que lenda sai você?,
a aparecer no meio do meu caminho!

Que astros benévolos atrairam sua órbita
ao traçado de minha órbita?

Ou dar-se-ia que sou eu
que estou passando pelo teu caminho?

E que fados antigos prepararam este momento?,
em que sofro tanta dor
e você tem um abraço tão grande!

E que estrela pousou nos teus olhos?,
para iluminá-los com essa malícia sorridente
a encher de confiança
o meu desespero!

E que terremoto piedoso é este
que arrebenta o dique do meu choro
e me entrega convulso?

E por que é que
diante de você
eu tenho apenas perguntas?

Criatura saída do nada,
que veio me ajudar a carregar o peso
de minhas aflições
e consolar meu desespero maior!,
esteja, eu, um dia, presente
em algum passo do teu calvário
com um abraço como o teu
e o coração a transbordar.

Não para pagar dívidas de amor
mas para gozar da alegria
de te trazer alívios.

De todas as figuras da evangélica necessidade,
você é a única a permanecer,
transparente como um vitral iluminado.

Vitral iluminado,
não há caminhos para agradecer a essa taça
de apaziguante alívio.

Porque muito grande é a pena
e muito pequeno sou nesse momento.

Nada tenho para te dar agora
se não um choro profundo
que limpa
e faz adormecer
como um bebê
desamparado…

II 

O GÓLGOTA

Eis-me enfim, neste lugar
onde nem águias nem serpentes
chegam.

Um pouco cansado,
um pouco triste
e muito só.

O tumulto ficou para trás.

Esse não é o monte de muitas cruzes
e esqueletos espalhados pelo chão
de pedras sujas de sangue;
o monte onde se crucifica ladrões
e subversivos.

Não.

Este é apenas o monte dos que planejam
estar sós.

Mas há ainda duas presenças
a perturbar
a minha solitude.

Duas presenças
a martelar o escudo do meu silêncio.

E não me atingirei
enquanto não conseguir
desgarrar-me.

O ESPÍRITO

Primeiro você,
presença a que chamam
espírito santo!

Se você pretende ser a chama imortal
que me separa da besta,
chamo-te
apenas
de espírito humano!,
que apenas o humano
determina o humano.

Se você pretende ser a chama perene
que ultrapassa o homem,
chamo-te
ainda
de espírito humano!,
porque até onde for o homem
apenas homem será.

Se você pretende ser a chama eterna
que me eleva à condição divina,
chamo-te
pela terceira vez
de espírito humano!,
que o homem só vai até o seu próprio limite.

Não há,
dentro de mim,
pouso para o teu voo,
espírito,
porque assumo de mim
tão somente
aquilo que de mim compreendo.

Paire você como um ideal
flutuando no ar,
e te chamarei
fantasia.

Por ora
não quero me alimentar de fantasia.

ELI ELI LAMÁ SABACTANI

E você,
pai,
agarrado a mim
como uma eumênide de doce lembrança!

Por que você não me abandona?,
para que eu possa crescer!

Por que você não me desampara
de sua imagem protetora?,
para que eu encontre
de mim
só o que é meu!

Não me quero mais ligado a essas doces lembranças!

Estaria eu, então, condenado a matar
minha fome do real
com essas fantasias de pai,
de sabor doce
e de tão terrível digestão?

Você vai e vem na minha memória,
carregando uma velhice cheia de fragilidades!

Querendo manter acesa em mim a fogueira da culpa?,
porventura!

Não são minhas,
essas culpas
de tristes gentes
que nasceram antes de mim!

Vim limpo de pecado original!

Não professei fé nenhuma
a não ser a fugidia e ameaçada esperança
no que é humano.

Não bebi aquela água imposta,
com o sal de todas as lágrimas
dos que choram
o delito de viver.

Que exigências você quer fazer a mim?

Crucificar-me vivo
para diminuir o teu desespero?

Apresentar a taça de fel
com que se redimiria todos os sofrimentos?

É mentira essa taça
porque ninguém se livra, através do outro,
dos próprios sofrimentos.

Quer que se cumpra a tua vontade?

Sombra,
mito,
início esquecido,
nada disto tem vontade!

Aquiete-se, coração!

Não entregarei meu espírito
en tuas mãos,
pai.
Isto seria como morrer
e não estou à beira deste mar,
agora.

Estou apenas à beira de mim mesmo,
esse mar muito mais terrível
que me traga
tantas vezes eu tente a aventura
dessa viagem alucinada
e me devolve aos pedaços;
mas,
vomitada a água negra
desse escuro afogamento,
eis que estarei cada vez mais fortalecido.

E não preciso de você,
pai.

Desista de existir através de mim!

Nosso elo já se quebrou
há muito,
quando eu saí por inteiro
de um útero
– primeiro mar –
e alguém bradou está vivo!

Pois é:

Estou vivo
e não careço de você.

Que seja uma doce lembrança
mas desgarre-se.

Pois eis que eu é que estou
em vias
de te desamparar!

Abandono-te
e te entrego a taça vazia
que você mesmo esvaziou.

E
livre de sua presença,
a última presença,
eu me vejo
enfim
apenas eu.

III

FECHADO PELA PEDRA

Não queria ter chegado tão de repente.

Tenho medo
e frio
e sinto que vou chorar.

Por que foi que eu me tentei com essa única
e tremenda
tentação?

Quieto, coração!

Tão difícil tudo,
tão assustador,
e estou apenas querendo me livrar,
para ser menos criança,
de tantas fantasias de criança.

Tenho medo
e frio
e acho que vou chorar.

Queria dormir sem sonhos,
tão cansado estou.

E qual é o tempo em que devo permanecer
enterrado nesse silêncio agudo?

Três dias
ou trinta e três anos?

Enrolado em meus próprios braços nus,
nessa pobreza sem sudário,
terei eu a revelação
de que chegou a hora do convívio?

Ou serei vomitado
dessa minha dormência entristecida?,
como um cadáver ressurrecto
obrigado a sair de um túmulo
e estender diante de si
o seu próprio juízo!

Pois eis que só há ressurreição
dentro da única vida!

Sei que serão os mesmos,
os homens,
quando eu voltar a encontrá-los.

E sei
mais
que eles têm
o mesmo direito
que me dei para com eles
de me cobrar posturas e correção.

E sei
ainda
que há entre eles apóstolos
mestres de si mesmos
e passantes não curiosos
mas preocupados tão só
com suas desesperançadas tarefas cotidianas
e juizes
vítimas de suas tentativas de honestidade
e mulheres pessoas
que sabem como olhar
nos olhos de seus filhos
e soldados
atirados aos quartéis
pela necessidade de garantir o soldo diário da sobrevivência.

E sei
por fim
que todos os mortais repetem
com variações de dor e desespero
essas sagradas vias de aprendizado,
crucificando-se
ou sendo crucificados
em todos os tipos diferentes de cruzes.

E nem todos ressurgem da dor.

E sei
após tudo
que por isso é
tão forte
o símbolo da via evangélica.

Só não sei por que
algumas vezes
é tão feroz este meu coração
e tão angustiante a necessidade
de estar só.

E só,
como eu queria,
enrolo-me nu
em meus braços nus
e espero.

Pretendo estar tranquilo.

Pacifique-se, coração!

Tenho um pouco de medo,
não sinto mais frio algum;
e não tenho tanta certeza
de que precise chorar.

Nova Iorque, 16 de junho de 1986.

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