garças e abutres… 18

18. Impressões de um mundo distante

    Sempre me tenho perguntado sobre meu aprendizado e minhas reações, na época, com relação aos problemas sexuais. Sei bem que a situação que presenciei era caótica, anormal e densa. Mas isto eu sei por outros caminhos, leitura, filmes, documentos, deduções. Me pergunto, pois, sobre o que eu já sabia, o que vi, o que aprendi ali dentro.
Tinha seis anos e nove meses, quando entrei. Saí com oito anos e seis meses. Nada sabia, a não ser que existiam homens e mulheres. Sabia que os homens e as mulheres faziam alguma coisa lá entre eles, mas, o que faziam, não tinha sido objeto de ruminações, até então.
Já de cara, no trem, ouvi aquela frase cortante e fria, que me obrigou a refazer minhas noções:
O Aluísio é mulher do Antonio.
Era um elemento novo, muito complexo.
Devo frisar, antes de tudo, que o assunto sexo nunca me preocupou, não devendo também incomodar os outros pequenos, porque nunca conversamos sobre isto. Assistíamos, ouvíamos, era como se falassem de aviões complicados que nada tinham a ver com nossos preciosos carrinhos de barro.
Eles cantavam uma música bem barra-pesada, que me introduziu novo conceito:
    Eu vi sua mãe no Mangue,
com a b. escorrendo sangue,
com a mão cheia de dinheiro,
às custas de um marinheiro.

Deve ter sido lá que aprendi o que vinha a ser prostituta; evidentemente nunca usaram este eufemismo inexpressivo. Soltavam o outro nome, sonoro. Contavam também aventuras fictícias, numa delas o herói brincava com uma lanterna debaixo da mesa e iluminou entre as pernas da tia, dizendo abertamente, com a boca pura e sem preconceito, o que tinha visto.
Uma outra canção não me dizia muito, porque não entendia o significado da palavra-chave, só no Pedro II é que fui aprender. A melodia é um conhecido hino católico:
    Os anjos tocam punheta,
Os anjos tocam punheta.
Galinha preta é o cu da mãe.
Galinha preta é o cu da mãe.

Aos poucos, o novo mundo ia saindo da neblina. Com movimentos obscenos, eles contavam o que se fazia com as mulheres, diante de todos, eu não entendia. Mas arquivava. Os mesmos movimentos serviam para atacar um companheiro distraído que estivesse de costas. Era fácil demais, era só entender a lição, repetida quantas vezes fosse preciso.
Tinham uma brincadeira chocante e muito usada. Estivesse algum colega sentado no chão, jogando ou conversando, vinha um outro por trás e desenhava no chão, partindo das nádegas do que estava sentado, um falo imenso, sem que a vítima se apercebesse. Na outra ponta, fazia os testículos para os lados, sentava-se ali e lá vinham os mesmos gestos, com gemidos de gato machucado. Todos começavam a rir e quando o distraído dava conta de si, se levantava rápido e saía apagando o desenho na areia, para acabar com os vestígios do vexame tão público.
Lembro que todos tomavam banho no mesmo banheiro, eles, lá, nós, aqui. Nunca prestei atenção a eles, a não ser na oportunidade em que percebi que eles tinham cabelos sobre os genitais e nós não. Também esta descoberta foi arquivada, agora, porém, absolutamente desligada de qualquer emoção.
É fato que não dávamos atenção a esses detalhes. Raramente ouvíamos as conversas até o fim, porque não entendíamos muita coisa.

Há, porém, dentro de mim, a lembrança de um episódio muito complexo. É uma cena confusa, apagada, mas, ao mesmo tempo, com detalhes de uma nitidez penetrante. Já falei antes que, com igual intensidade, só a noite na casa da professora e meu mergulho no rio, abraçado às costas do inspetor. A este episódio chamei O Acontecimento.
É confuso querer saber por que guardei o fato com alguns detalhes tão bem delineados, sem saber, porém, encadear suas partes. Aparentemente não apresenta nada de grave ou muito desagradável, a não ser a faca meio escondida e a ameaça de uma hipotética violência. Isto me faz concluir que o acontecido deve ter tido alguma relação com sexo, por causa de um dos detalhes e por ter marcado minha memória num halo de tremor e espanto.
Há uma escada encostada na parede. Um dos maiores estava sentado lá no alto, de calção. Antonio chegou-se e começaram a conversar. Eu brincava com barro exatamente debaixo da escada. Antonio tem uma faca na mão, mostrando-a e escondendo-a. A primeira frase, não, não, a única frase que ouvi, daquilo tudo, foi:
Se você contar pra alguém, eu te mato.
Eles discutem longo tempo. O rapaz, um louro forte e bonito, vai se deixando convencer, de má vontade. Suas vozes são abafadas. Ele tenta algum novo argumento, Antonio corta ríspido, falando firme, mas muito tranqüilo.
Olhei para o alto e vi que a glande do aluno estava para fora, acho que ninguém ali era circuncidado. O curioso é o fato de ser a única vez, que me lembro, de ter prestado atenção no órgão genital de algum deles, coisa que ninguém jamais escondeu.
O resto é confusão, escuridão, dúvida.
Me pergunto: por que a impressão de ter sido um problema sexual? Pela frase dita? Pela visão que me incomodou? Minha censura deve ter apagado as frases do antes e do depois, não conseguindo destruir a emoção arquivada.
É claro que agora, enquanto escrevo, as coisas se tornam evidentes, pelo conhecimento intelectual que tenho de situações como aquela, jovens de diversas idades, inspetores, confinamento… Fica dito que foi algo de muito perturbador. A faca… Se você contar pra alguém, eu te mato… O sexo do jovem lá no alto, arregaçado…

continua no próximo domingo.

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