garças e abutres… 24

24. Rebelião

    Após a morte de Pirueta, seguiu-se um período de silêncio e terror. Ali, sim, ninguém estava disposto a sorrir. Meus amiguinhos me contavam que ele tinha morrido de tanto apanhar. Falavam baixinho, medrosos de que um outro ouvisse e contasse. Alguém falou do enterro, falou de uma cruz de madeira enfiada sobre uma cova. Os brinquedos cessaram, os sorrisos passarinhos fugiram das gaiolas.
O Anjo da Morte pairava sobre tudo, como uma pipa negra, mas invisível. O Anjo da Morte tinha o aspecto de um cadáver de cera: branco, de pedra, olhar de santo de igreja, morto-vivo. Voava baixo, quase se podia ouvir o ruflar surdo e misterioso de suas asas de nuvem. Ele ia e vinha e, ao sentir sua presença, a gente se entreolhava sério, querendo entender o que ia acontecer depois. Os olhos baixavam, o coração se agitava, como um animalzinho selvagem enclausurado, que se atira contra as grades até morrer.
Nossos coraçõezinhos cheios de espanto.
À noite, ele também chegava para vigiar. Agora, suas asas são de água gelada. A gente tentava sonhar com a mãe e as irmãs e as madrinhas e de repente percebia a cara dele diante da nossa, toda negra, com dois buracos no lugar dos olhos e seu respirar era quente e com cheiro de podre em terra molhada. Num pulo, a gente acordava. Ele tinha escapado. Estaria bafejando a cara de algum outro. Puxava-se mais o colchão, tentando cobrir também a cabeça, mas as pernas, muito encolhidas, começavam a doer e o colchão descia. A cabeça voltava a se oferecer ao bafo maldito.
Aos poucos nosso terror se aquietou, afundou como areia numa água que principiava a cantarolar novamente. A taça da vida voltava à quietude, às sereias, aos carrinhos de barro, joaninhas, quem sabe?
De repente, tudo se turva e meu coração dispara.

Trepados no muro, eu vejo os grandes, gritando, xingando, não entendo nada. Me agarro com Valdemar, temerosos chegamos junto ao tumulto. Estão trepados no muro, quase todos, sem exceção. Atiram pedras e palavrões em direção à casa do padre. Mas o que berram, é sempre a mesma coisa:
Estou com fome!
Estou com fome. Não era isto que eles sentiam, deviam estar com medo de morrer de porrada.
Parecia uma guerra, uma catástrofe, era barulho e horror demais para minha alma apavorada.
Padre filho da puta! Estou com fome!
Não era uma voz solitária e órfã. Não, não! Era um bando enlouquecido de chacais, estou com fome, que escancaravam a goela para o sol quente, estou com fome, um enxame de abelhas, padre filho da puta, que alguém tivesse assanhado com um bastão de fogo, estou com fome, um formigueiro debaixo de água fervente, filho da puta filho da puta, marimbondos dispostos a matar Aquiles com ferozes ferroadas no calcanhar mortal.
Estou com fome!
Nós, pequeninos, encolhidos num canto, ouvíamos com atenção covarde, pensávamos no que viria depois.
Sinuca chegou no pátio, berrou, esbravejou, apitou, os maiores avançaram com pedaços de pau nas mãos, uivando como matilha de lobos que achassem a presa.
Um bando enfurecido de gorilas selvagens. O inspetor entrou, trancou-se.
As pedradas e os gritos foram esmorecendo. Nessa altura, criamos coragem e, uns ajudando os outros, subimos no muro para ver, lá fora, toda a cidade em círculo, observando atenta.

Quando serenou a rebelião, o Anjo da Morte voltou. Com o olhar em chamas, não mais era o Anjo da Morte, era a deusa da Vingança. O medo soprou do norte e do sul e do leste e do oeste e o sudário do silêncio cobriu o bando de chacais, abafou o zumbido das abelhas, principiou a sufocar as formigas aflitas e asfixiou os marimbondos rebeldes. O sudário do terror.
Há uma falha em minha memória. Como se, o próximo pedaço que vivi, tivesse sido tirado de dentro de mim. Não há encaixe entre a cena anterior e a que se segue.
Por que já estou na fila fatal.
A fila percorre todo um corredor, sobe a escada e desemboca na saleta que dava para os dormitórios. Há um rumor lá em cima, algo como uma catarata de voz fina, não, não, algo como cantos de lavadeiras loucas bem ao longe. Aos poucos, à medida que avançamos, o rumor se transforma. São agora as almas penadas que, alucinadas, uivam. São condenados que lamentam com gemidos longos. Já dá para ouvir o barulho da palmatória, entremeado com os gritos de horror. Tanto choro, e a palmatória pode ser ouvida. É um estalo atrás do outro.
Seria isto, o bíblico choro e o ranger de dentes?
    “Sairão os anjos e separarão os maus dos justos. E os lançarão na fornalha acesa; ali haverá choro e ranger de dentes”,
brada o enorme homem que parece um gigante de pedra, vitorioso, no centro do altar da Capela Sistina.
Vamos subindo a escada do matadouro, para o sangramento. Alguém me descobre. É um dos maiores, já chorou e rangeu os dentes, agora forma um grupo de grandes, que presencia.
Jorge, não tenha medo. Estenda a mão, a outra, repete sem medo. Não tenha medo. Se você tirar a mão, ele dá com mais força em cima dos dedos. Se você estender a mão com coragem, ele bate devagar. Não chore, não tenha medo.
E já ele e outros repetem para os pequenos: Não tenham medo, apresentem a mão rapidamente, uma atrás da outra, não tenham medo, ele bate poucas vezes e passa adiante. Não tenham medo!
O juízo final se aproxima, a terra estremece, o trovão do Senhor estala implacável, um, dois, três, quatro, quantas seriam?, só não dava para ouvir as trombetas dos anjos, porque o choro aumentava.
O único consolador, o único alívio, o único bálsamo era aquela mão firme que segurava meu ombro e me carregava, me guiava os passos, me puxava com delicada segurança, enquanto a voz que eu já não conseguia ouvir
não tenha medo.
Seus olhos me iluminaram intensamente, não senti medo. Diante do deus, ele me empurrou, eu estendi a mão, o madeiro baixou, minha alma pegou fogo, estendi a outra, meu corpo carbonizou-se, continuei estendendo a mão e senti que fora contemplado com a graça divina porque a fúria do juízo diminuíra sensivelmente. Com as mãos ardentes, comecei a chorar e Zeus gritou, tonitruante,
o próximo!,
que estendeu as mãozinhas aflitas, não vi, ouvi os raios despencarem pelo espaço e ele principiou a berrar desesperadamente com sua vozinha de criança de seis ou sete ou oito anos, magros e desnutridos.
O dormitório era a morada da dor e sempre me lembrava daquela cena negra, quando era obrigado a rezar um salve-rainha:
    gemendo e chorando neste vale de lágrimas.
Meus amiguinhos me mostravam as mãos, chorando. Tínhamos vergonha uns dos outros. Todos tinham, no lugar das mãos, duas bolas infladas, com os dedos tortos, vermelho-azulados.
Encolhemo-nos nas camas, fetos desengonçados, soluçantes, cheios de horror, há momentos em que a alma não consegue pensar em nada.
Todos os soluços foram afogados pelo sono, como filhotinhos de cães não desejados.

No dia seguinte, ao cair da tarde, fomos colocados em forma. O Padre! Ele escorregou de mansinho, o vulto negro, caminhou à nossa frente, para cá, para lá, para cá, para lá. Por fim, parou diante de todos e vomitou uma canção melíflua, suave, delicada, harmoniosa. A voz parecia a pele de um animalzinho, felpuda, macia, quentinha. O abutre negro ia e vinha e falava e ia e vinha e falava. Eu não entendia nada. Entendia que era mentira. Era tudo muito lindo, mas era mentira. Aquele silêncio de medo, a lembrança do desespero da véspera, aquilo existia. Era verdade. Não aquela voz que escorregava para cá, para lá, aqueles olhinhos faiscantes, aquela serpente que passeava espichando a língua bifurcada como a calda da quimera.

    Vós sois o sal da terra.

De fato, todas as lágrimas da véspera tinham sido salgadas.

continua no próximo domingo.

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