Monteiro Lobato

Fábulas

Fábulas 57, 58, 59, 60, 61, 62 e 63

 

57 – Segredo de mulher

         Como a Fidência se gabasse de ser discreta, seu marido resolveu tirar a prova. E para isso uma noite acordou-a com ar assustado, dizendo:

         – Que estranho fenômeno, Fidência. Pois não é que acabo de botar um ovo?

         – Um ovo? – exclamou a mulher, arregalando os olhos.

         – Pois é para ver. E cá está ele, ainda quentinho. Mas escute: é preciso que isto fique em segredo absoluto entre nós. Você bem sabe como é o mundo. Se a notícia corre, começam todos a troçar de mim e acabam me pondo apelido. Segure, pois, a língua. Nunca diga nada a ninguém.

         A mulher jurou segredo e soube guardá-lo por umas horas, enquanto era noite e não tinha com quem taramelar. Mas logo que amanheceu pulou da cama e foi correndo em procura da comadre Teresa.

         – Você é capaz, Teresa, de guardar um segredo eterno?

         – Toda gente sabe que minha boca é um túmulo…

         – Pois então ouça: meu marido esta noite botou dois ovos!…

         – Não diga!…

         – Pois é isso. Mas, olhe!… Isto é segredo inviolável. Jure que jamais o contará a ninguém.

         A comadre Teresa beijou dois dedos em cruz; mas, logo que a Fidência se foi, sentiu na língua uma tal comichão que contou a história dos três ovos à tia Felizarda. Tia Felizarda também jurou segredo, mas contou a história dos quatro ovos à prima Joaquina. Prima Joaquina também jurou segredo, mas contou a história dos cinco ovos à sua amiga Inês… Inês…

         E o caso foi que ao meio-dia a cidade inteira só comentava uma coisa – o estranho fenômeno do Zé Galinha, misterioso homem que punha a cada noite doze dúzias de ovos…

                                                        *****

            – Isso de contar um conto e aumentar um ponto é ali com a senhora Emília – observou a menina.

            – Um ponto só? Ah, ah! A Emília vai logo aumentando dez… – caçoou Pedrinho.

            O Visconde explicou que há para isso uma razão psi-co-ló-gi-ca.

            – É para melhor acentuar o fato – disse ele. – Contar uma coisa é passar essa coisa de uma cabeça para outra. E como nessas passagens há sempre perda (como na corrente elétrica que vai de um ponto a outro), o contador exagera. Exagera sem querer, por instinto.

            – Eu não exagero – disse Emília. – Apenas enfeito.

            – Pois então exagera, porque enfeitar é exagerar – explicou o Visconde. E voltando-se para Emília:

            – Pode botar a língua…

 

58 – O automóvel e a mosca

         Um automóvel havia encalhado em certo ponto de mau caminho, num atoleiro.

         – E agora?

         – Agora é procurar bois na vizinhança e arrancá-lo à força viva.

         Assim se fez. Arranjam os bois – uma junta. Atrelam-na ao carro e principia a luta.

         – Vamos, Malhado! Puxa, Cuitelo! Os bois estiram os músculos num potente esforço, espicaçados pelo aguilhão. Mas não basta. É preciso que todos, serviçais e passageiros, metam ombros à tarefa e, empurrando de cá, alçapremando de lá, ajudem o arranco dos bovinos.

         A mosca aparece. Assunta o caso e resolve meter o bedelho onde não é chamada. E toda aflita começa – voa daqui, pousa ali, zumbe à orelha de um, pica no focinho de outro, atormenta os bois, atrapalha os homens – a multiplicar-se de tal maneira que dá a impressão de ser não uma só, mas um enxame inteiro de moscas infernais.

         O carro, afinal, saiu do atoleiro.

         – Uf! Que trabalhão me deu!… – disse a mosquinha enxugando o suor da testa.

                                                        *****

            – A Joana Baracho é assim – comentou Narizinho. – Lá na casa dela as irmãs fazem tudo, mas quem finge que sua é ela. Certas fábulas são retratos de pessoas.

            – E isso é instintivo – tornou Dona Benta. – Lembra-se, Pedrinho, daquele jogo de futebol lá na vila? Os assistentes “torciam”, e quando a bola entrava no gol não havia um que não atribuísse o ponto à sua torcida pessoal.

 

59 – A onça doente

         A onça caiu da árvore e por muitos dias esteve de cama seriamente enferma. E como não pudesse caçar, padecia fome das negras. Em tais apuros imaginou um plano.

         – Comadre irara – disse ela –, corra o mundo e diga à bicharada que estou à morte e exijo que venham visitar-me.

         A irara partiu, deu o recado e os animais, um a um, principiaram a visitar a onça. Vem o veado, vem a capivara, vem a cutia, vem o porco-do-mato. Veio também o jabuti.

         Mas o finório jabuti, antes de penetrar na toca, teve a lembrança de olhar para o chão. Viu na poeira só rastos entrantes, não viu nenhum rasto sainte. E desconfiou:        – Hum!… Parece que nesta casa quem entra não sai. O melhor, em vez de visitar a nossa querida onça doente, é ir rezar por ela…

         E foi o único que se salvou.

                                                        *****

            – Todas as histórias fazem do jabuti uma ideia muito boa – comentou Emília. – Espertos, inteligentes, mil coisas. Mas o nosso lá do pomar mostrou-se bem bobinho.

            – Ao contrário, Emília. Tanto não era bobo que já sumiu.

            – Por isso mesmo. Se tivesse ficado aqui, estava no seguro. Nada nunca lhe aconteceria. Mas fugiu e se foi para os lados do Elias Turco, aposto que dele só resta a casca. O Elias tem cara de gostar muito de jabuti ensopado…

 

60 – O jabuti e a peúva

         Brigaram certa vez o jabuti e a peúva.

         – Deixa estar! – disse esta furiosa. – Deixa estar que te curo, seu malandro! Prego-te uma peça das boas, verás…

         E ficou de sobreaviso, com os olhos no astucioso bichinho que lá se ria dela sacudindo os ombros.

         O tempo foi correndo; o jabuti esqueceu-se do caso; e um belo dia, distraidamente, passou ao alcance da peúva. A árvore incontinênti torceu-se, estalou e caiu em cima dele.

         – Toma! Quero ver agora como te arrumas. Estás entalado e, como sabes, sou pau que dura 100 anos…

         O jabuti não se deu por vencido. Encorujou-se dentro da casca, cerrou os olhos como para dormir e disse filosoficamente:

         – Pois como eu duro mais de cem, esperarei que apodreças…

         A paciência dá conta dos maiores obstáculos.

                                                        *****

            – Esta fábula está com cara de ser sua, vovó – disse Pedrinho. – Eu conheço o seu estilo.

            – E é, meu filho. Inventei-a neste momento, e sabe por quê? Porque me lembrei daquela peúva caída lá no pasto e de um jabuti que estava escondido debaixo dela. Sei quanto dura a madeira da peúva e sei quanto vive um jabuti – e a fábula formou-se em minha cabeça. E todas as fábulas foram vindo assim. Uma associação de ideias sugere as historinhas.

            – Associação de ideias é isso?

            – Sim. A gente pensa numa coisa. Esse pensamento puxa outro. Esse outro puxa terceiro. É o que os sábios chamam associação de ideias.

 

61 – A raposa e as uvas

         Certa raposa esfaimada encontrou uma parreira carregadinha de lindos cachos maduros, coisa de fazer vir água à boca. Mas tão altos que nem pulando. O matreiro bicho torceu o focinho.

         – Estão verdes – murmurou. – Uvas verdes, só para cachorro.

         E foi-se. Nisso deu o vento e uma folha caiu. A raposa, ouvindo o barulhinho, voltou depressa e pôs-se a farejar…

         Quem desdenha quer comprar.

                                                        *****

            – Que coisa certa, vovó! – exclamou a menina. – Outro dia eu vi esta fábula em carne e osso. A filha do Elias Turco estava sentada à porta da venda. Eu passei no meu vestidinho novo de pintas cor-derosa e ela fez um muxoxo. “Não gosto de chita cor-de-rosa.” Uma semana depois lá a encontrei toda importante num vestido cor-de-rosa igualzinho ao meu, namorando o filho do Quindó…

 

62 – O gato vaidoso

         Moravam na mesma casa dois gatos iguaizinhos no pelo mas desiguais na sorte. Um, amimado pela dona, dormia em almofadões. Outro, no borralho. Um passava a leite e comia em colo. O outro por feliz se dava com as espinhas de peixe do lixo.

         Certa vez cruzaram-se no telhado e o bichano de luxo arrepiou-se todo, dizendo:

          – Passa de largo, vagabundo! Não vês que és pobre e eu sou rico? Que és gato de cozinha e eu sou gato de salão? Respeita-me, pois, e passa de largo…

         – Alto lá, senhor orgulhoso! Lembra-te que somos irmãos, criados no mesmo ninho.

         – Sou nobre! Sou mais que tu!

         – Em quê? Não mias como eu?

         – Mio.

         – Não tens rabo como eu?

         – Tenho.

         – Não caças ratos como eu?

         – Caço.

         – Não comes rato como eu?

         – Como.

         – Logo, não passas de um simples gato igual a mim. Abaixa, pois, a crista desse orgulho idiota e lembra-te que mais nobreza do que eu não tens – o que tens é apenas um bocado mais de sorte…

         Quantos homens não transformam em nobreza o que não passa de um bocado mais de sorte na vida!

                                                        *****

            – Acho que todos os homens importantes são assim – disse Pedrinho. – O que eles têm é sorte. Os tais nobres! “Passo.” Os tais duques, os tais reis, os tais príncipes.

            – Mas há uma nobreza – disse Dona Benta – que não depende da sorte e sim do esforço. Essa é respeitável. Madame Curie ficou importante por ter descoberto o rádio. Foi sorte? Não. Levou anos estudando, fazendo experiências, e tanto lidou que descobriu a maravilhosa substância. Criaturas assim podem orgulhar-se de ser mais que os outros.

            – Mas não se orgulham, vovó! – disse Narizinho. – Já notei que as pessoas verdadeiramente importantes são modestas – como o Conselheiro ou o Visconde. Mas há umas tais pulguinhas humanas que só por terem caído em graça se julgam engraçadíssimas…

            Emília botou-lhe a língua. “Ahn!”

 

63 – Pau de dois bicos

         Um morcego estonteado pousou certa vez no ninho da coruja, e ali ficaria se a coruja ao regressar não investisse contra ele.

         – Miserável bicho! Pois te atreves a entrar em minha casa, sabendo que odeio a família dos ratos?

         – Achas então que sou rato? – respondeu o intruso. – Não tenho asas e não voo como tu? Rato, eu? É boa!…

         A coruja não sabia discutir e, vencida por tais razões, poupou-lhe a pele.

         Dias depois o finório morcego planta-se no casebre do gato-do-mato. O gato entra, dá com ele e chia de cólera.

         – Miserável bicho! Pois tens o topete de invadir minha toca, sabendo que detesto as aves?

         – E quem te disse que sou ave? – retruca o cínico. – Sou muito bom bicho de pelo, como tu, não vês?

         – Mas voas!..

         – Voo de mentira, por fingimento…

         – Mas tem asas!

         – Asas? Que tolice! O que faz a asa são as penas e quem já viu penas em morcego? Sou animal de pelo, dos legítimos, e inimigo das aves como tu. Ave, eu? É boa…

         O gato embasbacou, e o morcego conseguiu retirar-se dali são e salvo.

         O segredo de certos homens está nesta política do morcego. É vermelho? Tome vermelho. É branco? Viva o branco!

                                                        *****

            – Sim, senhor! – exclamou Emília. – Nunca imaginei que os morcegos fossem tão espertos. Esse vence até as raposas. Enganou a coruja e enganou o gato.

            – Mas não enganou o fabulista – disse Dona Benta. – La Fontaine ouviu a conversa e fez a fábula, para pôr em relevo a duplicidade dos que não são uma coisa certa e sim o que convém no momento.

            – Emília, que é tão amiga da esperteza, devia casar-se com esse morcego – lembrou Narizinho, mas Emília murmurou:

            – “Passo”.

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