Monteiro Lobato

Aventuras de Hans Staden

Capitulos 3 e 4

 

03 – A volta para Lisboa

 

         Saindo do porto de Olinda, que os indígenas chamavam Marim 1, as naus velejaram quarenta milhas ao norte, em demanda da terra dos potiguaras.

         – Que terra era essa, vovó?

         – Essa terra corresponde hoje ao Estado da Paraíba. Havia lá muito pau-brasil, madeira com que os índios comerciavam.

         – Um parêntese, vovó – disse Pedrinho. – Por que motivo naquele tempo lidavam tanto com o pau-brasil e hoje não se fala mais nele? Será que lhe acabaram com a casta?

         – Não, Pedrinho. O que se deu foi que o carvão-de-pedra derrotou o pau-brasil.

         Pedrinho arregalou os olhos.

         – Naquele tempo tirava-se dessa madeira uma substância colorante, empregada na tinturaria, como também se extraía o carmim dum inseto chamado cochonilha. Com os progressos da química, porém, a indústria descobriu meios de tirar do carvão-de-pedra as anilinas, isto é, as mães de todas as cores possíveis e imagináveis. E como isto ficasse mais barato, desapareceu a indústria do pau-brasil, da cochonilha, da garança, do anil e de quanto vegetal era cultivado com fins de tinturaria.

         – Onde a senhora aprendeu tanta coisa, vovó? – quis saber Narizinho.

         – Lendo e vivendo, minha filha. Mas o que sei é nada; parece alguma coisa para vocês, crianças que quase nada sabem; mas diante do que sabe um verdadeiro sábio, como aquele Darwin da Viagem ao Redor do Mundo, que eu quero que vocês leiam, minha ciência é igual a zero.

         Mas voltemos à nossa história. Ao aproximar-se desse porto, o navio do Capitão Penteado encontrou um navio francês. De acordo com as ordens de el-rei atacou-o sem demora, na esperança de o apresar. O tal navio, porém, não era de brincadeiras. Espetou-lhe uma bala de canhão no mastro grande, destruindo-o e matando vários homens. Em seguida afastou-se. O navio português não esperava por aquela resposta. Tonteou e… passe muito bem, sou um seu criado.

         Para cúmulo de má sorte sobreveio a calmaria e não foi possível entrar no porto. Em vista do contratempo o capitão desistiu do pau-brasil e deliberou regressar ao reino.

         Volta péssima. Como não tinham podido tomar provisões na Paraíba, o mantimento veio a escassear, e de tal forma que passaram fome, sendo obrigados a comer um carregamento de couro de cabrito que traziam a bordo. Cada tripulante recebia apenas a ração diária de um copo d’água e um punhado de farinha.

         Esse horror durou cento e oito dias, até que alcançaram as ilhas dos Açores, também pertencentes ao rei de Portugal.

         Certo dia, em que estavam à pesca, apareceu ao longe um barco suspeito. Incontinenti dirigiram-se para ele, a fim de verificar se era amigo ou inimigo. Era inimigo – e os portugueses voaram-lhe em cima.

         Como o navio não se achasse em condições de resistência, os seus tripulantes fugiram todos para terra. Penteado apossou-se do barco sem luta, e fez ótimo negócio, tanta farinha e vinho encontrou nos porões.

         Foi um regalo. Os vencedores tiraram a barriga da miséria, comendo e bebendo pelo resto do ano.

         – Que boa vida! – exclamou o menino. – Bem diz vovó que a história da humanidade é uma pirataria sem fim…

         – Infelizmente é verdade, meu filho. Com este ou aquele disfarce de pretexto, o mais forte tem sempre razão e vai pilhando o mais fraco.

         – É uma fábula do lobo e do cordeiro… – lembrou a menina.

         – Qual, cordeiro! – protestou Pedrinho. – É a fábula do lobo forte e do lobo fraco, uma que me anda na cabeça.

         – Bem pensado! – disse Dona Benta. – Essa fábula não foi escrita por Esopo, nem La Fontaine, mas devia ser a fábula número um, porque é a que tem mais freqüente aplicação na vida.

         Liquidado o negócio da fábula, Dona Benta prosseguiu:

         – Depois de refeitos dos padecimentos da viagem, os portugueses velejaram para a ilha Terceira, em cujo porto se reuniram a numerosos navios que vinham chegando do Novo Mundo, uns com destino à Espanha, outros, a Portugal. E foi fazendo parte de um comboio de cem naus que o barco de Penteado alcançou Lisboa, depois de dezesseis meses de mar.

         Em Lisboa, Staden descansou uns tempos, o necessário para esquecer os horrores da primeira viagem e sentir desejos de empreender segunda.

         Já conhecedor da terra descoberta pelos portugueses, quis conhecer também os domínios dos espanhóis na América. O Rio da Prata e o Peru deslumbravam todas as imaginações com a fama das suas riquezas. O sonho dos aventureiros consistia em virem juntar ouro do chão, enchendo grandes sacos que os enriquecessem para o resto da vida.

         – Mas era assim mesmo, vovó?

         – Era. Nas jazidas à flor da terra e no cascalho de certos rios o ouro realmente abundava de maneira maravilhosa, e o que os portugueses e espanhóis tiraram da América não tem conta. Foram milhares e milhares de arrobas!

         – Por que, então, não se tornaram esses países os mais ricos do mundo? – perguntou Pedrinho.

         – Porque não souberam guardá-lo – respondeu Dona Benta. – Não basta ganhar, é preciso conservar, coisa muito mais difícil. Todo o ouro que Portugal tirou do Brasil foi se passando aos poucos para os países industriosos, sobretudo para a Inglaterra, em troca dos produtos das suas fábricas. Quando os portugueses abriram os olhos, era tarde – o ouro do Brasil estava todo em mãos de gente mais esperta.

1- Povoado.

 

04 – A segunda viagem

         O nosso Hans Staden foi para Sevilha e lá encontrou uma frota de três navios comandados por Dom Diogo de Senabria, que fora nomeado pelo rei da Espanha governador do Rio da Prata. Hans engajou-se a bordo de um dos navios e partiu em 1549, no quarto dia depois da Páscoa.

         Logo no começo tiveram ventos contrários, sendo os navios obrigados a procurar abrigo no porto de Lisboa. Quando o vento virou de feição partiram de novo e velejaram para as Canárias, deitando âncora na ilha da Palma. Ali tomaram provisões e combinaram reunir-se no grau 28 a sul do equinócio, caso durante a travessia alguma tempestade os dispersasse. A nau que lá chegasse primeiro interromperia a sua derrota e esperaria as demais.

         – Derrota? – exclamou Pedrinho.

         – Sim, derrota – afirmou Dona Benta. – Derrota não é só o que você sabe; é também o rumo, a direção que um navio leva quando singra os mares.

         Feita a combinação, partiram e velejaram até Cabo Verde, já na África, onde quase foram ao fundo. Depois, sempre com maus ventos, tocaram algumas vezes nas costas africanas e alcançaram a ilha de São Tomé, pertencente ao rei de Portugal. Em seguida velejaram de novo, não tardando que uma furiosa tempestade dispersasse a pequena esquadra.

         – Que azar! – exclamou Pedrinho. – Era preciso muita coragem para ser navegante naqueles tempos.

         – Pura verdade, meu filho. A navegação a vela foi uma epopéia.

         – Que é epopéia, vovó? – perguntou a menina.

         – Eu sei! – exclamou o menino. – Epopéia é, por exemplo, Os Lusíadas, de Camões, não é, vovó?

         – Não é, meu filho. Dar exemplo não é definir. Epopéia quer dizer poema em que o poeta canta uma grande empresa heróica, uma alta façanha. Os lusíadas são uma epopéia, mas “a epopéia não é, por exemplo, Os lusíadas…”

         – Mas então, vovó, navegação é epopéia? é algum poema?

         – Sim. É um poema não escrito, porque está acima das forças de um só poeta cantar a série infinita de dramas, heroísmos, abnegações e sacrifícios que enchem os anais da navegação.

         Pedrinho achou que bastava.

         – Entendi, vovó, pode continuar.

         Dona Benta prosseguiu:

         – A tempestade dispersou as três naus, sendo a em que ia o nosso Hans arrojada para a zona das calmarias.

         Três meses ficou parada em pleno oceano! O vento só reapareceu em setembro, e só então pôde ela prosseguir na sua… na sua quê, Pedrinho?

         – Derrota! – respondeu de pronto o menino.

         – Isso mesmo, está certo. Vejo que minha lição não foi perdida. E prosseguiu sem incidentes na sua derrota até que um dia, a 18 de novembro, o piloto verificou a altura do sol e viu que estavam a 29 graus de latitude.

         – Como é que se verifica a altura do sol? – perguntou Pedrinho.

         – Com um instrumento chamado sextante, que nos permite calcular a longitude e a latitude, de modo a sabermos em que ponto do globo nos achamos.

         – Fiquei na mesma – disse Narizinho; – mas continue, vovó.

         – Pois é isso, minha filha, eles verificaram que o navio estava no ponto marcado para a reunião e trataram de procurar, na terra mais próxima, abrigo seguro onde pudessem aguardar a chegada dos companheiros. Velejaram então para oeste, sem sair do grau 28, até que avistaram terra. Como, porém, não houvesse a bordo nenhum piloto conhecedor da zona, e como não é de bom conselho entrar em porto desconhecido, o navio ficou a cruzar em frente da costa.

         – Cruzar?!… – repetiu Pedrinho.

         – Sim, meu filho. Quer dizer, em náutica, bordejar, ir e vir, não se afastar muito de um certo ponto.

         Mas estava o navio a bordejar em frente da terra desconhecida, quando rompe fortíssima tempestade. O perigo torna-se enorme. Perto como se achava da costa, podia o vento arrojar o navio de encontro às pedras e fazê-lo em pedaços.

O capitão cuidou logo de precaver-se contra esse possível desastre. Mandou encher vários barris com pólvora, armas e mais objetos, calafetá-los cuidadosamente e amarrá-los uns nos outros.

         – Para quê, vovó?

         – Muito simples. Em caso de desastre o mar levaria à praia, com os destroços do barco, aquela penca de barris, onde os náufragos encontrariam o que há de mais precioso para quem se vê arrojado pelo destino ao seio de uma terra selvagem: armas de fogo e pólvora.

         A tempestade cresceu de vulto; o barco não pôde resistir e foi arrastado a um ponto da costa cheio de recifes submersos. Não vendo salvação, o comandante mandou aproar para terra. Essa manobra viria favorecer o impulso dos ventos e permitir que a nau encalhasse. Iam-se os anéis mas ficavam os dedos.

         Assim foi feito. O barco voou para a costa como um corpo que caísse em direção horizontal. Mas quando se aproximava dos arrecifes, apareceu ao lado um porto, a tempo ainda de permitir a manobra do leme. Em virtude disso, em vez de ir para cima das pedras, o barco foi ancorar numa angra bem abrigada e segura.

         – Que sorte! – exclamou Narizinho.

         – Foi sorte, não há dúvida, e é fácil imaginar a alegria daqueles homens, salvos no momento em que o desastre parecia inevitável. Lançada a âncora, agradeceram a Deus o precioso socorro que lhes enviara. Em seguida trataram de descansar e enxugar as roupas encharcadas.

         Isso foi lá pelas duas da tarde.

         Não demorou muito surgiu uma canoa de índios com mostras de lhes quererem falar.

         Os espanhóis responderam que se aproximassem.

         A canoa encostou ao barco, havendo falatório de baixo para cima e de cima para baixo, sem que, entretanto, ninguém se entendesse. Para não desconsolar os índios, os espanhóis os presentearam com machados e facas, coisa que muito os alegrou.

         À noite apareceu outra canoa de índios, desta vez com dois portugueses dentro. Estes homens mostraram-se muito admirados de ver o navio naquele porto. Era uma angra de dificílima entrada, sobretudo em dia de temporal.

         Os espanhóis narraram as suas tribulações e a maneira milagrosa pela qual vieram ter à angra no instante preciso em que esperavam a morte.

         Chamava-se aquele lugar Superagui 1 e ficava distante dezoito léguas de São Vicente e oito de Santa Catarina, para onde os espanhóis pretendiam seguir.

         Nesse ponto Narizinho interrompeu a narrativa, exclamando:

         – Pare, vovó. Preciso ir ver o que o Rabicó anda fazendo lá no pomar.

         E saiu a correr.

1- Nome de uma língua de terra ao norte de Paranaguá.

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