As aventuras de Hans Staden
Capítulos 5 e 6
05 – Reconhecimento da terra
Quando a menina voltou, Dona Benta prosseguiu pausadamente:
– Depois de alguma espera, começou a soprar bom vento. O navio deixou a angra, a fim de procurar o porto de Santa Catarina. Velejou para lá, mas o dia estava tão encoberto que não foi possível encontrar esse porto.
Na manhã seguinte, enquanto os marinheiros rezavam a primeira oração do dia, formou-se uma tempestade. A escuridão ficou de breu. O piloto não sabia o que fazer, atrapalhado como se achava com as muitas ilhas ali existentes. Afinal enveredou ao acaso por detrás duma delas a fim de abrigar o navio. Foi feliz. Deu num porto excelente do qual pôde lançar âncora.
Em seguida os marinheiros tomaram um bote e saíram a fazer um reconhecimento.
Subiram por um canal, inspecionando as margens, a ver se descobriam alguma fumaça, indício certo de humanidade.
Como a noite estivesse chegando, o capitão resolveu desembarcar numa ilhota próxima. Os marinheiros fizeram fogo para o jantar, que se compôs de palmitos cortados ali mesmo. Depois dormiram sossegados.
No outro dia pela manhã meteram-se pela terra adentro. Estavam convencidos de que o lugar era habitado e tinham esperanças de encontrar algum morador. Logo adiante lhes apareceu uma grande cruz de madeira, fincada num monte de pedras. Ao pé dessa cruz havia um fundo de barril com a seguinte inscrição: “Se viniesse por ventura aqui La armada de Su Majestad, tiren um tiro que harán recado”, o que quer dizer: Se por acaso aqui vierem os navios de Sua Majestade, que dêem um tiro que terão resposta.
A decifração muito alegrou aos marinheiros, e o comandante mandou disparar um tiro de peça.
– Então, vovó, os simples botes traziam canhões?
– Peças pequenas, meu filho, chamadas falconetes, feitas de bronze e de pequeno alcance. A artilharia naquele tempo não dava ideia dos canhões modernos, verdadeiros monstros de aço. Dispararam a peça e daí a algum tempo viram aparecer cinco canoas de selvagens. Os do bote ficaram na dúvida se esses índios vinham como amigos ou inimigos. Mas à medida que as canoas se aproximavam puderam divisar entre os remadores um homem barbado, vestido à europeia, com certeza um cristão. Os do bote gritaram-lhe que fizesse parar as canoas e viesse sozinho.
O barbaças obedeceu; fez parar as canoas e veio sozinho. Chamava-se esse homem João Ferdinando, era natural de Bilbao e fora mandado de Assunção a Santa Catarina justamente pelo Capitão Salazar, que agora voltara da Espanha comandando um dos navios desgarrados.
– Viera a Santa Catarina para quê?
– Para aconselhar os índios carijós dessa região a plantarem muita mandioca. Os navios espanhóis, destinados ao Rio da Prata, costumavam aportar ali para receber água – e se também pudessem receber farinha seria ouro sobre azul.
Disse mais o barbaças que o sítio onde estavam era pelos índios chamado Jurumirim (1) e pelos portugueses, Santa Catarina. Esta notícia grandemente alegrou os espanhóis, por ser aquele o porto que demandavam. Por curiosa coincidência, nele haviam penetrado justamente no dia de Santa Catarina.
Os do bote acompanharam o barbaças até à aldeia de selvagens em que ele morava e onde foram muito bem recebidos.
Sentindo-se em terra hospitaleira, o capitão pediu ao barbaças que lhe arranjasse uma canoa de bons remadores, capaz de levar ao navio um mensageiro.
O mensageiro escolhido foi Hans Staden. Logo depois, quando aquela canoa misteriosa se avistou com o navio, houve a bordo grande alvoroço. Os tripulantes puseram-se em defesa, perguntando a Staden por que motivo vinha ele só no meio de tantos índios.
Hans calou-se e fingiu tristeza.
Aquela atitude embaraçou inda mais os do navio, que se puseram a murmurar que com certeza os tripulantes do bote haviam sido mortos e vinham os selvagens com o único restante para lhes armar alguma cilada. Firmaram-se nisso e fizeram menção de atirar contra a canoa.
Vendo mal parada a situação, Hans Staden principiou a rir-se e gritou-lhes de longe todas as boas notícias. Só então permitiram que a canoa abordasse o navio.
Hans subiu, mandou que os índios regressassem e deu as ordens do capitão. O navio levantou ferro e desceu pelo canal até ao sítio das cabanas, onde fundeou, com a ideia de permanecer ali até que chegassem as duas outras naus desgarradas.
Três semanas depois apareceu o segundo navio da frota. Do terceiro nunca houve notícia; naufragou em alto mar, com certeza.
Depois de embarcarem víveres para seis meses, visto terem de velejar ainda umas trezentas léguas, os dois navios aparelharam para seguir.
O azar que atrozmente perseguia esses navegadores manifestou-se mais uma vez. Ali mesmo, no porto, ocorreu um desastre, do qual resultou perder-se justamente o navio melhor.
Isso impediu o prosseguimento da viagem e forçou-os a ficarem naquele ponto durante dois anos, padecendo toda sorte de privações. Enquanto possuíam anzóis, facas e machados para trocar com os índios, a vida não lhes foi de todo má. Acabada que foi a provisão desses objetos, tiveram de contentar-se com o que podiam apanhar com as suas próprias mãos, e foram obrigados a comer quanto bicho havia – lagartos, ratazanas, mariscos das pedras.
Essa situação não podia prolongar-se por mais tempo e, como a tripulação dos dois navios não coubesse num só, o capitão deliberou que metade dos homens seguisse por terra para Assunção. Tinham que caminhar trezentas milhas através de florestas e desertos desconhecidos. Felizmente conseguiram levar como guias alguns índios e alcançaram Assunção. Muitos pereceram depois de grandes padecimentos no caminho.
O capitão lembrou-se de ir com o navio restante até São Vicente, onde talvez pudesse fretar um em melhor estado. Havia a bordo certo marinheiro de nome Romão, que já estivera em São Vicente e se obrigou a guiá-los até lá.
Partiram, e após dois dias de viagem alcançaram a ilha dos Alcatrazes, assim chamada por causa das aves marinhas que ali se reuniam em grandes quantidades.
Nesse ponto o vento mudou, impondo a necessidade de fundear. O navio lançou âncora e a tripulação desembarcou na ilha.
Andavam os alcatrazes em época de postura, de modo que foi possível fazer-se abundante colheita de aves e ovos, petisqueira muito bem recebida por estômagos saudosos de gulodices.
Nessa ilha encontraram sinais de moradores – cabanas em ruínas e cacos de panela. Mas não viram ninguém. Tudo deserto.
– Vovó – interrompeu Pedrinho -, é hora de botar a moringa no sereno.
– E é hora também de recolher-nos – acrescentou Dona Benta; – vamos deixar o resto para amanhã.
1- Barra pequena.
06 – O naufrágio
No outro dia, à tarde, sob a copa da jabuticabeira cheia de jabuticabas “pintando”, Dona Benta retomou o fio da narrativa.
– Os marinheiros jantaram fidalgamente aves e ovos, preparados de todos os jeitos. Mas a vida do mar não dá repouso. O céu enegreceu ao sul e o vento ganhou corpo. Como o ponto onde a nau fundeara não oferecia abrigo, qualquer vento teria força para arremessá-la de encontro às pedras.
Para prevenir essa hipótese, o capitão tratou de alcançar naquele dia mesmo o porto de Cananéia (1).
Era tarde. A escuridão que envolvia a terra impediu-o de atinar com a entrada do porto – e como ficar bordejando rente à costa fosse perigoso, o navio fez-se ao largo.
– Então, vovó, em mar alto não há perigo? – perguntou o menino.
– Em mar alto não existem recifes à flor d’água, de modo que o navio se deixa livremente arrastar pelos ventos e pelas correntes marinhas. O grande inimigo dos barcos é a pedra, sobretudo a pedra invisível, que não emerge à flor d’água.
– Emerge ou imerge, vovó?
– São coisas diferentes. Imergir é afundar, mergulhar; emergir é o contrário – é desmergulhar.
Mas, como ia dizendo, o navio fez-se ao largo e durante a noite foi arrastado para tão longe que ao romper da manhã já não se avistava terra.
Foi preciso que velejassem um bom espaço de tempo para terem de novo costa à vista.
Romão, o homem que conhecia São Vicente, indicou certo ponto como sendo o porto procurado.
O navio rumou para lá; mas inutilmente, porque sobreveio forte cerração e a costa desapareceu dentro da neblina.
Tiveram que esperar. Quando a bruma se desfez, Romão declarou que o porto ficava bem defronte, bastando para atingi-lo dobrar o rochedo. Assim foi feito, mas não encontraram porto nenhum, de modo que a situação se tornou desastrosa. A tempestade desencadeou-se, e não houve remédio senão lançar o navio sobre a terra, para encalhá-lo antes que as ondas o desfizessem nas pedras.
Momento trágico! Vagalhões furiosos despedaçavam-se de encontro às rochas, rugindo e estrondeando, como se fossem monstruosos gigantes a escabujar em horrendos ataques epilépticos.
Por cima dele os ventos, tomados de verdadeiro acesso de loucura, uivavam, aos corcovos e rodopios.
Imaginem agora vocês a situação do pobre navio metido entre esses dois furores. Casca de noz, cheia de formiguinhas transidas de medo e agarradas às cordas por instinto de conservação, ora as vagas a erguiam em seu dorso, como o vento ergue a pluma, ora a despenhavam em abismos mais negros que a noite.
Súbito, um baque – e o navio do capitão espanhol desfez-se como bolha de sabão ao dar na ponta dum alfinete…
– Bravos, vovó! A senhora está épica! – exclamou Pedrinho. – Fez uma descrição linda!…
Dona Benta riu-se e continuou.
– Os náufragos lançaram-se ao mar, uns a nado, outros unidos como ostras aos destroços da embarcação – e ganharam a terra. Estavam salvos!…
Nesses transes horríveis salvar a vida é tudo, de modo que caíram de joelhos para render graças à misericórdia divina.
E ali ficaram, naquela praia deserta de um país desconhecido, em penúria extrema, enregelados pelo vento e empapados d’água como esponjas na chuva.
Havia entre eles um francês que, ao sentir-se entanguir, deu de correr ao longo da praia, a fim de esquentar o corpo. Correu, correu por longo tempo. Súbito, avistou ao longe umas casas. Dirigindo-se para lá teve a sorte de ver que por acaso dera num estabelecimento português, chamado Itanhaém, a várias milhas de São Vicente.
Contou aos moradores a desgraça que os acolhera e o frio e a fome que na praia deserta estavam padecendo os seus companheiros.
Os de Itanhaém imediatamente foram ter com os náufragos e os trouxeram para suas casas, onde lhes forneceram roupas e alimentos.
Nessa aldeia permaneceram uns dias, ganhando alento e refazendo as forças; depois seguiram para São Vicente, onde foi possível ao capitão espanhol fretar o novo barco que os levou ao Rio da Prata.
1- Nome derivado de canindé, arara.