As aventuras de Hans Staden
Capítulos 15 e 16
15 – Cenas de canibalismo
Algum tempo depois os índios de Ubatuba foram convidados para uma festa na taba de Ticoaripe na qual iam comer um prisioneiro maracajá.
Os convidados partiram em canoas, levando Hans consigo.
Em todas as cabanas as mulheres estavam ultimando o preparo do cauim, bebida indispensável em tais festas.
Hans aproximou-se do prisioneiro maracajá e perguntou-lhe:
– Estás pronto para morrer?
O índio olhou-o com indiferença e respondeu, muito calmo, a sorrir:
– Sim, estou pronto para tudo. Mas nós maracajás possuímos melhores muçuranas…
– Que é isso, vovó? – perguntou Narizinho.
– Eram umas cordas que os índios preparavam especialmente para amarrar os prisioneiros no dia do sacrifício. Aquele maracajá sorria diante da morte e caçoava dos seus inimigos… Hans Staden sentiu uma grande dó do infeliz. Afastou-se e pôs-se a ler um livro de capa de couro, que os índios haviam trazido de um barco apanhado com auxílio dos franceses.
– Que livro seria esse, vovó? – indagou o menino.
– Não sei, meu filho. Hans esqueceu-se de transmitir à posteridade o nome dessa obra, talvez a primeira que veio circular no Brasil…
Logo depois voltou Hans a falar com o maracajá, dizendo-lhe:
– Eu também sou prisioneiro e moro em Ubatuba. Vim de lá trazido à força, mas não para ajudá-los a comerem da tua carne.
– Eu sei – disse o maracajá – que a gente da tua raça não come carne humana.
Hans procurou consolar a vítima e fez-lhe uma preleção. Disse que apenas lhe comeriam a carne, pois que sua alma voaria da terra com destino a um lugar muito alegre, para onde iam também as almas dos homens brancos.
– Será verdade isso? – exclamou o índio.
– Sim, é verdade. Lá para onde vão as almas é que reside Deus.
– Mas eu nunca vi esse Deus.
– Na outra vida hás de vê-lo – concluiu Hans.
Nessa noite um vento horrível açoitou a taba, chegando a arrancar pedaços do teto das cabanas. Os selvagens encolerizaram-se, dizendo que fora Hans quem trouxera o furacão.
– Ele é um diabo — explicou um – e esteve hoje a olhar para o “couro da trovoada”.
– Couro da trovoada, vovó?…
– Sim, o livro que ele estivera lendo…
Narizinho soltou uma gargalhada.
– Que idiotas!
– Os índios eram supersticiosos – explicou Dona Benta – e um livro seria para eles a coisa mais misteriosa e incompreensível do mundo, arte do demônio, como ainda hoje nossos caboclos classificam o gramofone, o telégrafo e as mais coisas que não podem compreender.
Afinal mataram o prisioneiro, assaram-lhe a carne e comeram-na, regando abundantemente o banquete a potes de cauim.
Finda a festa cuidou-se da volta para Ubatuba, e os donos de Hans trouxeram consigo um pouco de carne do maracajá.
No primeiro pouso, no momento em que os índios erguiam na praia um rancho onde passarem a noite, começou a chover.
– Faze cessar a chuva – disseram-lhe os índios – já que a chamaste sobre nós.
– Deus está zangado convosco – respondeu Hans – por terdes comido carne humana.
Os selvagens aborreceram-se e disseram que a carne humana era a sua verdadeira comida.
Perto de Hans ia um menino, a roer uma canela do maracajá. Esse espetáculo horrorizava ao alemão, que mandou o pequeno deitar fora aquilo. O menino não fez caso e continuou a roer o osso. Enquanto isso a chuva ia apertando. Afinal o pequeno lançou fora o osso e como logo em seguida a chuva cessasse, Hans aproveitou-se da coincidência para dizer:
– Vedes? Meu Deus estava zangado porque o menino roía aquele osso.
Os índios, porém, não eram de todo broncos e um deles disse:
– Mas se o menino tivesse comido a canela sem que tu visses, o tempo não se teria arruinado.
De volta a Ubatuba, Alkindar caiu doente dos olhos e andou cego por uns dias. O medo da morte fê-lo procurar Hans e pedir que rogasse ao seu Deus pela volta da vista. Hans o fez, e assim conseguiu também dele a promessa de não consentir que o matassem.
16 – Aparece outro navio
Já ia no quinto mês a escravidão de Staden. Sua situação melhorara muito; o espantalho do seu sacrifício estava de todo afastado. Os índios, muito supersticiosos que eram, respeitavam-no cada vez mais, com medo de que o Deus de Hans os castigasse.
Por essa época surgiu em Ubatuba outro navio vindo de São Vicente. Embora inimigos, os portugueses e tupinambás não deixavam de entrar em negócios. Esses índios produziam muita farinha de mandioca, gênero de que os portugueses faziam grande consumo nas suas plantações, lavradas por escravos. Quando a farinha escasseava em São Vicente, vinham de lá navios a fim de obtê-la dos índios em troca de machados e anzóis. Esses navios ancoravam no porto e davam o tiro do costume. Os índios saíam da taba a indagar do que era.
– Negócio de farinha! – gritavam os de bordo.
Os índios, então, juntavam-se na praia, de armas em punho, mandando uma canoa com dois parlamentares ao encontro do navio a fim de ajustarem as condições do negócio. Depois de tudo bem combinado, realizava-se a permuta das mercadorias, com as maiores precauções de lado a lado porque um não confiava no outro.
Concluída a transação, recomeçava a guerra. Os índios despediam contra o barco uma nuvem de flechas e o barco por sua vez despejava contra os índios os seus canhões.
– Ora que curioso! – exclamou Pedrinho. – Está aí um costume que nunca imaginei possível.
– Era como se dissessem: inimigos, inimigos, negócios à parte – acrescentou Dona Benta. – No fundo, a necessidade os obrigava a isso. Uns não podiam passar sem anzóis, outros não podiam passar sem farinha. O armistício resolvia o apuro de ambas as partes, como breve parêntese na luta que só teve fim quando os índios foram completamente dominados.
O navio em questão entrou no porto e deu o tiro de aviso. Vieram os índios. Desta vez, não era farinha o que os peros queriam. Apenas desejavam saber notícias de Staden. Disseram mais que estava a bordo um irmão de Hans, com muitas mercadorias a ele destinadas.
Os índios parlamentares voltaram do navio com essa boa nova e Hans pediu que o deixassem conversar com o seu irmão.
– Quero pedir a meu irmão que conte a meu pai a minha história e lhe peça que venha buscar-me com um navio cheio de presentes.
Os selvagens acharam justa a pretensão; impuseram-lhe, todavia, que não falasse português. Andavam a preparar em segredo uma expedição contra a Bertioga e receavam que o prisioneiro os traísse.
– Nada temais – disse-lhes Hans; – os peros não compreendem a minha língua, nem a do meu irmão que está a bordo.
Os índios deixaram-se embaçar e levaram-no à distância de uns cinquenta passos do navio. Dali Hans gritou:
– Deus seja convosco, irmãos. Que venha um só falar comigo e não deem a perceber aos índios que não sou francês.
– Mas os índios não estavam a ouvir essa fala? – perguntou Pedrinho.
– Sim, estavam, mas esses índios não entendiam a língua dos portugueses, porque viviam em guerra com eles e sempre que apanhavam algum, em vez de o tomarem para professor, preferiam comê-lo assado. Desse modo podia Hans falar livremente sem receio de ser entendido.
Em resposta às suas palavras adiantou-se o biscainho João Sánchez e disse:
– Meu querido irmão, aqui vimos em busca de notícias tuas, visto como o primeiro navio mandado nenhuma nova pôde levar. Quem nos envia é o Capitão Brás Cubas, de Santos, o qual deseja saber se estás vivo, a fim de te resgatar.
Hans retomou a palavra:
– Que Deus vos recompense eternamente, pois vivo em grande aflição, sem saber o que estes selvagens querem de mim. Só sei que já me teriam devorado, se Deus não me houvesse protegido. Eles recusam-se a vender-me, pois esperam que meu pai venha de França buscar-me num navio cheio de presentes. Peço-vos que não os deixeis suspeitar que não sou francês, pois que isso me seria funesto, e peço-vos ainda que me deis facas, machados e anzóis com que eu possa presenteá-los.
Sánchez respondeu:
– Sim, irmão, tudo faremos como desejas. Manda cá uma canoa buscar os presentes.
Neste ponto os índios deram mostras de que já se estava prolongando demais a fala. Hans, então, despediu-se de Sánchez.
– Os índios não me deixam dizer mais. Cuidado com eles! Estão a preparar secretamente uma investida contra a Bertioga. Adeus!
– Adeus, irmão! – disse Sánchez. – Antes que eles ataquem a Bertioga, serão atacados pelos tupiniquins cujas canoas estão prontas. Não desanimes. Deus te há de acudir em melhor momento, já que neste nada podemos fazer pela tua salvação.
E separaram-se. Os índios levaram Hans dali e mandaram uma canoa a bordo em busca dos presentes, que Hans distribuiu entre eles, dizendo:
– Tudo isto me trouxe o meu irmão francês.
– E que foi que disseste a teu irmão? – perguntaram os índios.
– Disse-lhe – inventou Hans – que procurasse fugir das unhas dos peros e voltasse para a nossa terra, e de lá tornasse num navio cheio de presentes para vós, visto que sois bons para comigo e não me maltratais.
Semelhante fala, como é natural, muito agradou os selvagens, que murmuraram entre si:
– Não resta dúvida que é francês, havemos de tratá-lo como irmão.
A partir desse momento gozou Hans de mais folga na taba; ia à caça com os índios e ajudava-os nos trabalhos de roça.
– Os selvagens, afinal de contas, não passavam de uns coitados – disse Narizinho. – Hans embaçou-os de uma vez.
– É que possuíam um grau de inteligência muito inferior ao dos brancos. Daí a facilidade com que os peros e os espanhóis, em muito menor número, conseguiram dominá-los. Neste caso de Hans, por exemplo, assistimos à luta da inteligência contra a bruteza. A inteligência, com suas manhas e artimanhas, acabou vencendo a força bronca do número.