Monteiro Lobato

As aventuras de Hans Staden

 

 Capítulos 17 e 18

17 – O carijó doente

         Havia na taba um prisioneiro carijó que houvera sido escravo dos portugueses e fora apanhado pelos tupinambás numa das expedições contra São Vicente. Esse carijó detestava Hans Staden e vivia dizendo que fora ele quem matara o pai de Nhaepepô com um tiro.

         Era falso. O carijó estava ali na taba já de três anos e Hans só tinha um ano de estada no Brasil: não podia o índio, portanto, tê-lo conhecido na Bertioga, como afirmava.

         Um dia, em que esse escravo caiu muito doente, Ipiru-guaçu, seu dono, chamou Hans para curá-lo.

         Hans examinou-o e disse:

         – Está doente e vai morrer porque me quis fazer mal. Não tem cura.

         Em vista disso Ipiru resolveu dar o carijó ao seu amigo Abaté 1 para que o matasse e ganhasse um nome.

         Vários índios que se achavam à volta do doente foram da mesma opinião.

         – Sim, ele “quer” morrer; é melhor matá-lo já. – Hans horrorizou-se com a ideia e disse:

         – Não! Não o matem, que ele ainda poderá sarar.

         De nada valeram as suas palavras; os índios levaram-no dali  a braços, porque o doente não dava mais acordo de si.

         Abaté recebeu o presente, agradeceu-o e foi para dentro buscar a iverapema. Trouxe-a, ergueu-a no ar e desferiu tamanho golpe no crânio do carijó que os miolos espirraram longe. Iam comê-lo. Hans interveio para aconselhar que não o fizessem; o carijó estava doente e sua carne poderia envenená-los.

         Os índios vacilaram um instante. Estava tão feia a cara do carijó, além do mais, cego de um olho, que se sentiram repugnados.

Nisto surge de uma das cabanas um índio mais desabusado, manda que as mulheres façam fogo ao pé do cadáver e decepa-lhe a cabeça, arrojando-a para longe.

         Suprimida a parte do corpo que horrorizava pelo aspecto, desapareceu a repugnância dos índios, os quais tomaram o cadáver, chamuscaram-no ao fogo, esfolaram-no, dividiram-no em postas e distribuíram-nas entre os circunstantes. Logo depois em cada cabana começou a chiar ao espeto um naco de carijó…

         – Pare, vovó! – exclamou Narizinho; – pare que estou sentindo uma bola no estômago…

         – De fato, minha filha, o quadro é horroroso. No entanto fazemos nós hoje coisa muito parecida com os cadáveres dos bois e dos porcos… Afastado o aspecto moral, não vejo diferença entre o cadáver de um carijó e o cadáver de um boi.

         – Basta, vovó – disse Pedrinho. – De hoje em diante não comerei mais carne.

         – Nem de galinha? – interpelou Dona Benta.

         Pedrinho, que gostava muito de frango assado, vacilou.

         – De galinha não digo; mas de boi ou de porco, nunca mais!…

 

18 – O terceiro navio

         Os tupinambás haviam marcado para a sua expedição contra a Bertioga o mês de agosto, tempo das tainhas. A abundância do peixe facilitava a operação guerreira, porque não há guerra possível quando não há facilidade de abastecimento.

         Hans contava fugir por essa ocasião.

         Ficaria na aldeia sozinho com as mulheres e fácil lhe seria escapar.

         Oito dias antes da expedição, porém, chegou notícia de um novo barco francês ancorado em Iteron, ou Rio de Janeiro, como diziam os portugueses. Essa notícia viera por um bote pertencente ao navio, o qual chegara até Ubatuba em procura de pimenta, macacos e papagaios. Vinha no bote um tal Jacó que sabia a língua dos tupinambás e o jeito de negociar com eles.

         Hans insistiu com os selvagens para que o conduzissem até ao navio, onde devia estar seu irmão com os presentes esperados.

         – Não! – responderam os índios. – Esses franceses não são teus amigos. Vieram no bote e nem uma camisa te trouxeram.

         Era bem verdade aquilo! Mas Hans insistiu; disse que se ele chegasse até à nau os franceses lhe dariam muita coisa.

         – Tem tempo – responderam os selvagens. – O navio demora-se ainda. Depois da expedição cuidaremos disso.

         Enquanto o nosso Hans, na praia, aferrado às suas esperanças, debatia com os índios, o bote de Jacó começou a afastar-se.

         Na sua ânsia de libertação Hans perdeu a cabeça e atirou-se ao mar, rumo ao bote. Os índios foram-lhe ao encalço; um deles chegou a pôr-lhe a mão. O desespero, porém, redobrou as forças do fugitivo, que repeliu o índio, safou-se e, a violentas braçadas, atingiu o bote.

         – Finalmente! – exclamou Narizinho, comovida. – Também já era tempo…

         – Engano, minha filha. Não era tempo ainda. Os franceses do bote não o deixaram entrar. Repeliram-no, alegando serem amigos daquela tribo e que se o deixassem entrar contra a vontade dos índios eles se vingariam. E o pobre Hans teve de voltar para terra…

         – Que horror!

         – Os índios, que já o supunham perdido, começaram a gritar alegremente: “Ele volta! Ele não fugiu!”

         Hans, ao pisar na praia, mostrou-se agastado.

         – Julgáveis então que eu pretendia fugir? Fui ao bote unicamente para dizer aos meus patrícios que viessem buscar-me depois da guerra e que trouxessem para vocês muitas coisas bonitas.

         – Sim, senhora! – exclamou Pedrinho. – Esse alemão era das arábias! Conseguiu mais uma vez lograr os pobres índios…

         – Lográ-los – confirmou Dona Benta – e agradá-los. Os índios ficaram contentíssimos com o seu gesto e passaram a tratá-lo ainda melhor.

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