Monteiro Lobato

As aventuras de Hans Staden

 Capítulos 21 e 22 (último)

 

21 – Hans muda de taba

         Depois desses acontecimentos, Ipiru-guaçu resolveu entregar Hans ao morubixaba Abati-poçanga (bebida de milho), da taba de Itaquaquecetuba (1). O nosso artilheiro foi conduzido para lá, onde o entregaram a Abati, com recomendação de não lhe fazerem mal, porque o Deus de Hans se mostrava terrível quando o maltratavam.

         Hans confirmou tais palavras e disse que brevemente chegariam seu irmão e mais parentes, com um navio cheio de coisas destinadas ao morubixaba.

         Abati-poçanga chamou-lhe “seu filho”, tratou-o muito bem e nunca mais saiu à caça sem que o levasse consigo.

         Sua situação mudara por completo. Embora prisioneiro, gozava de todas as regalias e já contava como certo o regresso à pátria.

         Quatorze dias depois da sua chegada a Itaquaquecetuba uns índios dirigiram-se a ele, dizendo ter ouvido tiros de peça dos lados de Iteron.

         Era de fato um navio francês que entrara. Como o caso de Hans já andava muito espalhado, logo souberam dele a bordo, e o comandante mandou à sua procura dois homens.

         Esses emissários eram boas almas, em tudo diferentes do Carauatá-uara e do Jacó. Ao se encontrarem com o prisioneiro sentiram-se tomados de piedade e com ele repartiram suas roupas.      Depois explicaram que tinham vindo com ordem de conduzi-lo de qualquer maneira.

         O coração de Hans palpitou violentamente, de júbilo e esperança. Qualquer coisa lhe dizia que era chegado o termo dos seus sofrimentos.

         Conferenciou com os franceses e combinou o meio de enganar os índios. Em seguida puseram em prática o plano.

         Um deles, de nome Perot, apresentou-se a Abati-poçanga como o tão esperado irmão de Hans, dono do navio de Iteron, e convidou-o a ir até lá com os seus índios, para receber os presentes trazidos. Pediu-lhe que levasse consigo o prisioneiro, a fim de ser abraçado por outros parentes que ficaram a bordo. Quando o navio partisse, Hans regressaria à taba, entregando-se ao cultivo da pimenta, mercadoria que esse barco tinha de vir buscar no ano seguinte.

         Os indígenas concordaram com a proposta e Abati-poçanga partiu para Iteron, levando Hans em sua companhia.

         Lá chegando, subiram todos ao barco, sendo recebidos com toda a cordialidade pelos franceses.

         Hans contou-lhes a sua história e todos se enterneceram profundamente com tão longa tragédia.

         Cinco dias durou a permanência de Abati a bordo. Ao termo desse prazo perguntou ele pelos presentes. O comandante disse a Hans que o fosse entretendo até o momento de largar ferro, mas de modo que Abati não se zangasse nem desconfiasse.

         Hans engambelou o índio; apesar disso Abati desconfiou e insistiu em levá-lo para terra.

         Hans fez-lhe ver que quando parentes e bons amigos se encontram, depois de longa ausência, não podem separar-se assim depressa; pediu-lhe um pouco mais de paciência; o navio muito breve iria partir e então regressariam todos à taba.

         Abati achou razoável aquilo e cedeu.

         Finalmente, completa a carga, embarcaram-se os franceses e o navio aparelhou para zarpar.

         O comandante reuniu os índios na coberta e, por meio de um intérprete, disse-lhes que estava muitíssimo contente com todos por terem poupado Hans, apesar de o haverem apanhado entre inimigos. Disse que mandara chamá-los a bordo para os presentear em agradecimento pelo bom trato que dispensaram ao prisioneiro; disse mais que sua intenção era deixá-lo na taba de Abati, entregue ao cultivo da pimenta, já que Hans se dava tão bem por lá e era tão amado.

         Nesse momento o comandante foi interrompido por um grupo de dez franceses que se declararam irmãos de Hans e lhe pediram que conseguisse dos índios a restituição do prisioneiro, cujo velho pai ansiava por abraçá-lo de novo.

         O comandante, depois de ouvida a súplica dos “dez irmãos”, dirigiu de novo a fala aos índios. Disse-lhes que sua intenção sempre fora deixar o prisioneiro com Abati; mas os dez irmãos queriam o contrário e, como ele era um só e os outros dez, não tinha meios de resistir ao número, sendo forçado a ceder diante da força.

         Mal o comandante cessou de falar, adiantou-se Hans para dizer que muito desejava ficar na taba de Abati onde fora tão bem tratado, mas que se via impedido disso pela atitude dos seus dez irmãos.

         Abati-poçanga declarou então que consentia na sua partida com a condição de voltar no ano seguinte. Era seu amigo, considerava-o seu filho e estava zangado com os de Ubatuba por terem querido devorá-lo.

         A comédia acabou bem. O comandante fez vir facas, espelhos, machados e pentes e entregou tudo a Abati.

         Terminadas as despedidas, os índios desceram às canoas.          Ao vê-los, enfim, deixarem o navio, o nosso Staden soltou o maior uf! que a história do Brasil registra. Estava salvo!

1- Bambuzal

 

22 – A salvação

         – Que navio era esse, vovó?

         – Esse navio chamava-se Catherine de Vataville e tinha por comandante o Capitão Guilherme de Moner.

         No momento de deixar Iteron o Vataville avistou um barco português que também saía, depois de ter negociado com a tribo dos maracajás.

         Os franceses lançaram ao mar um escaler com algumas bocas-de-fogo, com o fito de atacá-lo, levando consigo Hans. Como o artilheiro falava português, quiseram que ele fosse para intimar os portugueses à rendição.

         O trunfo, porém, saiu às avessas. O naviozinho atacado reagiu valentemente e repeliu o escaler. Morreram vários franceses, além de muitos ficarem feridos, entre os quais o próprio Hans.

         – Que azar! – exclamou Pedrinho. – Teria graça se depois de livre dos canibais morresse das balas dos peros…

         – E quase foi assim – disse Dona Benta – porque Hans recebeu ferimentos graves; mas sua natureza era rija e por fim escapou.

         A partida de Iteron deu-se no último dia de outubro de 1.554. Ferido como se achava, Hans não pôde despedir-se daqueles céus e daquelas montanhas, mas lá do leito em que ardia em febre disse mentalmente um “até nunca mais” à terra onde por um triz escapou de ser moqueado e comido.

         A 20 de fevereiro do ano seguinte o Vataville chegou a Honfleur, na Normandia, depois de quatro meses de viagem sem incidentes.

         Parece que a sorte adversa se cansara de perseguir o nosso aventureiro, depois de verificar que coisa nenhuma o vencia. Naufrágios, combates navais, guerra terrestre, sanha de antropófagos – nada pôde com ele.

         Hans regressou à sua pátria, onde escreveu o livro em que conta estas histórias, livro precioso para nós porque foi o primeiro publicado a respeito de coisas do nosso país.

         – Agora, que terminei a narração da sua vida atormentada, quero que vocês me digam que lição tiram dela – concluiu a vovó.

         – Que não devemos desanimar nunca! – exclamou Pedrinho incontinenti.

         – Isso mesmo – aprovou a boa senhora. – E você, Narizinho, que lição tira?

         – Que são horas de ir para dentro porque a Emília está pendendo de sono – respondeu a travessa menina, abrindo a boca num bocejo de urutau.

1927

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