O Poço do Visconde
Capítulos 15 e 16
15 – A dinheirama
Enquanto não se construíam a refinaria e a canalização, era preciso fazer qualquer coisa do petróleo – e o remédio foi vendê-lo em estado bruto às pequenas refinarias já existentes no País. Eram refinarias montadas para extrair gasolina e querosene do óleo bruto importado do estrangeiro. Assim que elas souberam que havia petróleo no sítio de Dona Benta, mandaram para lá seus representantes fazer propostas.
Quem discutiu com eles foi Narizinho, recentemente nomeada Diretora Comercial da Companhia. Dona Benta era a Diretora Geral. O Visconde, o Consultor Técnico. Emília, a Diretora dos Transportes e Quindim, o Encarregado Geral da Defesa.
Narizinho recebeu os homens e discutiu muito bem a questão do preço, não pedindo nem de mais nem de menos.
– Vou fazer um precinho de amigo – disse ela. – Dez centavos o litro. Serve?
Os homens acharam baratíssimo, porque andavam comprando óleo importado por preço três vezes maior. Mas, ciganos como são todos os comerciantes, torceram o nariz, dizendo que era preço muito alto. O cálculo deles fora que como Dona Benta não tinha meios de se aproveitar do petróleo, vendê-lo-ia por qualquer preço e ofereceram 5 centavos.
Narizinho danou, e depois de consultar Dona Benta, respondeu-lhes da seguinte maneira:
– O preço que dei foi muito bem estudado por vovó, que não é nenhuma cigana, mas também não é boba. Os senhores, entretanto, além de bobos são uns ciganos, e para castigo das duas coisas eu só dou agora o petróleo a 12 centavos o litro. Dez centavos é o nosso preço e 2 centavos fica sendo a taxa do castigo.
Os homens riram-se.
– Nesse caso, não fazemos negócio e quero ver o que sua avó faz do petróleo. Narizinho respondeu:
– Vovó tem sessenta e cinco anos e nunca precisou do petróleo para viver. Nem nunca aturou ninguém. É independentíssima. Se não achar quem lhe pague o petróleo pelo preço que pede, pensam que ela se amola? Ah, ah, ah! Fecha os poços para só abri-los quando estiver com o oleoduto e a refinaria montados – e os senhores ficam bigodeados. Não temos pressa nenhuma em vender o nosso petróleo. Passem muito bem.
Vendo aquela firmeza da Diretora Comercial, os ciganos cocaram a cabeça.
– Pois bem – disseram eles. – Aceitamos o seu preço de dez centavos.
– Meu preço é 12, já disse. E amanhã será 13. Nós aqui não somos brincadeira de ninguém.
Os ciganos pararam com a ciganagem e fecharam a compra de todo o petróleo produzido pelos cinco Caraminguás à razão de 12 centavos o litro.
– Mas há de ser entregue na nossa porta – disseram eles, querendo novamente tapear a menina.
– Estão muito enganados – respondeu ela. – Esse preço é aqui na boca dos poços. O transporte corre por conta dos compradores.
A segurança com que ela falou meteu medo aos ciganos, os quais assinaram os contratos sem mais um pio.
O problema do transporte é sempre um tanto sério. Não havendo oleoduto que leve o petróleo aos centros de consumo, o remédio é recorrer a carros-tanque, ou a navios-tanques se a viagem tem que ser por mar.
Os compradores tiveram de arranjar caminhões-tanques que levassem o petróleo dali até à primeira estação de estrada de ferro, e tiveram ainda de fornecer à estrada de ferro vagões-tanques que levassem o petróleo até às cidades onde tinham as refinarias.
O Visconde falou dos caminhões e carros-tanques. O caminhão-tanque não passa dum reservatório de ferro sobre rodas, com capacidade para uma, duas ou três toneladas de petróleo; e o carro-tanque é um vagão comum de estrada de ferro, composto de rodas e um grande reservatórioc”hermeticamente fechável” em cima, com capacidade para 20 ou 30 toneladas.
– E o navio-tanque?
– E um enorme reservatório de ferro, “hermeticamente fechável” e que ocupa um navio de capacidade muito grande. Há navios-tanques que carregam 500 toneladas de petróleo e outros que carregam 5.000. Os Estados Unidos tinham, em 1927, 412 navios-tanques, com a tonelagem total de 2.372.000 toneladas.
– Que horror! E a Inglaterra, que tem fama de ter mais navios que os outros países?
– A Inglaterra, nesse ano, tinha mais navios-tanques que os Estados Unidos, mas com menor capacidade. Tinha uma frota de 479 navios-tanques, com capacidade para 2.248.000 toneladas – 124.000 menos que a tonelagem americana.
– E os outros países?
– Os outros possuem frotas muito menores. A Noruega dispunha, naquele, tempo de 65 navios-tanques. A Itália de 48. A Holanda, de 64. A França, de 40. A Argentina, de 15. Mas nestes últimos anos essas frotas têm aumentado. A Argentina, por exemplo, está hoje com 54 navios–tanques.
– E para guardar o petróleo – as tulhas do petróleo – como são elas? – quis saber Narizinho.
– O mais usado são uns enormes reservatórios cilíndricos, de aço, como uma caixa redonda de pó de arroz com a tampa em forma cônica. Também se usam reservatórios de cimento armado em vez de aço, ou então reservatórios subterrâneos, ou enterrados no chão.
– E o tamanho?
– Varia muito. Há desde os de 13 metros de diâmetro até os de 50 metros de diâmetro, com altura de 4 a 10 metros. A capacidade desses reservatórios varia conforme o tamanho, podendo ir acima de 15.000 toneladas. A nossa produção aqui, sendo de 2.500 barris por dia, ou mais ou menos 400 toneladas, dá para encher um desses reservatórios grandes em pouco mais de um mês.
– E quantos carros, ou caminhões-tanques, vão ser necessários para o transporte do nosso petróleo?
– Trabalhando com caminhões-tanques de 2 toneladas, serão precisos 200. Mas como esses caminhões podem fazer cinco viagens por dia até à estação da estrada de ferro, bastam uns 40. E na estrada de ferro basta que corram 20 vagões-tanques por dia, caso possam voltar vazios no mesmo dia.
– Isso não pode, garanto! – disse Pedrinho.
– Nesse caso, com 40 vagões-tanques os ciganos se arrumam, contanto que não parem – que estejam indo e voltando constantemente.
Outro ponto em que Narizinho não transigiu foi quanto ao pagamento do petróleo. Os ciganos vieram com histórias de emitir duplicatas a 90 dias, etc., mas a menina recusou.
– Nada disso. Só vendemos o nosso petróleo ali na batata, como diz a Emília. Como os ovos do sítio de Nhá Veva. Quem quer uma dúzia de ovos, vai lá, pede-os, recebe-os e paga-os na ficha. Isso simplifica imensamente o negócio.
– Mas é praxe comercial este pagamento a prazo – disseram os homens.
– Praxe – respondeu Narizinho – é um costume, nada mais; e acho que neste caso será um mau costume. Não quero que no negócio novo do petróleo o País fique mal acostumado. Adoto, portanto, a praxe de Nhá Veva, com os ovos. Quem quiser que pague à vista. Quem não quiser, ou não puder, que se fomente.
Com esse sistema do pão-pão, queijo-queijo, a renda do sítio de Dona Benta ficou uma coisa colossal: 48 mil cruzeiros diários. No começo o Visconde fizera o cálculo do petróleo a 30 cruzeiros o barril. Mas Narizinho entendeu de ajudar o País e reduziu o preço a 12 centavos o litro, o que dava dezenove cruzeiros e vinte centavos por barril de 160 litros.
– Petróleo quanto mais barato mais ajuda a Pátria – dizia ela. – Para vovó 48 mil cruzeiros por dia já são dinheirama tamanha que ela nem sabe o que fazer dela. Podia vender pelo dobro – mas para quê? Ciganagem é coisa que não entra em nosso sítio.
Com o passar dos meses o dinheiro foi se juntando de tal maneira que Dona Benta chegou a ficar apreensiva. Apesar do conselho dado ao Chico Pirambóia, de depositar o dinheiro no banco, Dona Benta guardava o seu em casa.
– Como é isso vovó? – observou Pedrinho. – Para o Chico a senhora disse uma coisa e agora faz outra? Parece a história do frade: “Faça o que eu mando e não faça o que eu faço…”
– Explica-se, meu filho – respondeu Dona Benta. – O hábito de guardar dinheiro em banco tem sua razão de ser como garantia do dinheiro contra os assaltos e para facilidades de pagamento com cheques, etc. Mas aqui em nosso sítio tudo é diferente, como você não ignora. Medo de assalto não temos, porque a casa está sempre guardada pelo nosso tanque de carne…
– O Quindim…
– Isso mesmo. E necessidade de pagamentos com cheques, e mais coisas do comércio, nós não temos, porque não saímos daqui, não negociamos, não vivemos a vida que vivem todos os comerciantes. Por esse motivo guardo o dinheiro na arca.
E assim ficou. No fim do ano Narizinho resolveu dar um balanço. Esparramou o dinheiro pelo chão e contou. Tinham ganho um pouco mais de 17 milhões de cruzeiros. Esse pouco mais saiu para pagamento dos salários dos americanos, dos operários e das despesas da casa, de modo que nas arcas havia 17 milhões de cruzeiros certinhos.
– E agora? – murmurou Dona Benta. – Que fazer desta dinheirama?
– Construir um palácio – propôs Narizinho – cheio de quadros preciosos e estátuas, e um jardim de inverno, e estufas para flores raras – e tanta coisa, vovó…
– Minha filha – disse Dona Benta – nossa vida aqui tem sido tão feliz que meu medo é que esta riqueza nos traga desgraça. Um palácio? Mas julga você que num palácio possamos viver mais felizes do que nesta casinha gostosa? Ah, vocês não calculam como os milionários e os reis se aborrecem em seus palácios de ouro, no meio da criadagem solene, perfilada como soldados de casaca… Veja esse Eduardo VIII da Inglaterra, o mais poderoso rei do mundo, que se enjoou de palácios e criados e etiquetas a ponto de mandar tudo às favas, para ir viver com sua mulherzinha a vida livre dos homens comuns. Não. O acertado é não mudarmos o nosso viver. Se somos felizes, que mais queremos?
– Mas se não gastarmos o dinheiro, ele entupirá todas as suas canastras e acabará sem valor – ficando dinheiro recolhido.
– Sim, isso se o não gastarmos. Temos de gastá-lo, não há dúvida. O dinheiro foi feito para circular, não para apodrecer nas arcas; mas em vez de gastá-lo egoisticamente só conosco, como fazem os maus ricos, podemos gastá-los de modo a beneficiar os milhares de pobrezinhos que nunca tiraram petróleo.
– Está aí uma idéia! – exclamou Pedrinho. – E a gente diverte-se muito mais gastando o dinheiro assim do que só com a gente.
– Isso, meu filho. Você está certo. O maior prazer da vida é fazer o bem. Eu sempre quis beneficiar este nosso povo da roça, tão miserável, sem cultura nenhuma, sem assistência, largado em pleno abandono no mato, corroído de doenças tão feias e dolorosas. Se empregarmos nosso dinheiro em melhorar-lhe a sorte, não só nos divertiremos, como você diz, como ficaremos com a consciência tranqüila. Meu programa é esse.
– Bravos, vovó! – exclamou Pedrinho. – E ainda podemos fazer mil coisas: estradas de verdade, por exemplo. Isso que no Brasil chamam estradas de rodagem é uma mentira. Estradas de atolagem, sim. Durante os meses de chuva, o Brasil inteiro só faz uma coisa: atola-se nas estradas, não roda. Nada roda nelas. Os carros de bois atolam até os eixos. Os automóveis atolam a ponto de precisarem de bois para arrancá-los. Os burros de tropa atolam. Tudo atola nas nossas estradas de atolagem. Podemos começar aqui pelo nosso município e depois iremos nos alastrando pelo País inteiro. Isto é, iremos construindo estradas de rodagem de verdade – pavimentadas de concreto, com um lado para ir e outro para vir – e uma faixa de grama no meio, como as da Alemanha.
– Perfeitamente. Aprovo o programa – disse Dona Benta.
– E também poderemos criar umas boas escolas profissionais para esta caboclada bronca – propôs Narizinho. – Eles são aproveitáveis, mas têm que ser ajudados. Por si nada fazem porque nada podem fazer.
– E também organizaremos umas casas-de-saúde bem modernas, com os melhores médicos e todas as comodidades, como os hospitais americanos que a senhora contou outro dia.
– Aprovado! – disse Dona Benta.
– E construiremos para eles casas decentes, com higiene e coisas modernas, que lhes sejam vendidas a prestações bem baixinhas. É uma vergonha para nossa terra como moram as gentes da roça – em casebres de sapé e barro, imundíssimos, sem mobília, sem nada lá dentro. Qualquer toca de bicho do mato, qualquer ninho de joão-de-barro, vale mais que um casebre de caboclo.
– Aprovado! – disse Dona Benta.
O Visconde tomou a palavra.
– E eu acho que devemos criar casas de ciências para o aproveitamento dos meninos que mostrarem vocação para os altos estudos. E mais tarde poderemos criar uma universidade como a de Harvard.
– Aprovado! – Senhor Visconde. Fica desde já nos nossos planos a criação da Universidade Sabugosa, da qual o nosso viscondinho será o primeiro reitor e o professor de geologia – disse Dona Benta.
Faltava Emília.
– E eu acho – disse ela – que poderemos atacar um problema em que ninguém ainda pensou: a domesticação das formigas…
Todos olharam para a boneca, muito espantados.
– Sim, o homem domesticou vários animais, como o boi, o cavalo, o cachorro. Por que não há de domesticar mais um – a formiga? Dizem que o estrago que esse bichinho faz na agricultura é imenso, e até aqui o homem, na sua brutalidade, só pensou numa coisa: matar a formiga. Mas por mais que as mate elas aí estão cada vez mais numerosas. Minha idéia é abandonar essa guerra inútil e fazer um tratado de paz entre o homem e a formiga – domesticando-a, como já se fez com o cavalo, o boi e o cão.
– Como?
– Ensinando-as a só comerem as ervas daninhas que os fazendeiros arrancam com as enxadas dos trabalhadores. Desse modo elas resolveriam o problema da limpa das roças. Teriam licença de comer só as plantas daninhas, respeitando as úteis – como as laranjeiras, etc.
Todos riram-se da idéia emiliana.
– De que se riem? – exclamou Emília. – Tudo é possível no mundo, sobretudo tratando-se de formigas, uns bichinhos verdadeiramente inteligentes. Se um sábio cuidasse disso e conseguisse educar uma certa quantidade de formigas, elas iriam ser as professoras das outras e…
– Pedrinho – disse Dona Benta – peça a Mister Kalamazoo que mande vir da América um blowout-preventerzinho que sirva na Emília. Um blowout que feche este nosso caraminguazinho de asneiras. Emília fez bico.
– Asneira! Asneira! Acham asneira tudo quanto eu falo – mas nos momentos de aperto quem salva a situação é sempre a asneirenta. Só uma coisa eu digo: se eu fosse refazer o mundo, ele ficava muito mais direito e interessante do que é. Os homens são todos uns sábios da Grécia, mas o mundo anda cada vez mais torto. Juro que com isso que chamam asneira eu transformava a terra num paraíso…
Dona Benta fico pensativa. Quem sabe se Emília não tinha razão.
16 – O Brasil tem petróleo!
A descoberta do petróleo no sítio de Dona Benta abalou o País inteiro. Até ali ninguém cuidara de petróleo porque ninguém acreditava na existência do petróleo nesta enorme área de oito e meio milhões de quilômetros quadrados, toda ela circundada pelos poços de petróleo das repúblicas vizinhas. Mas assim que irrompeu o Caraminguá n.° 1 os negadores ficaram com cara de asno, a murmurar uns para os outros: “Ora veja! E não é que tínhamos petróleo mesmo?”
E a febre começou. Em todos os Estados formaram-se empresas para pesquisar petróleo. Em Alagoas abriu-se o primeiro poço no Riacho Doce, com 600 barris por dia – e a seguir toda, aquela região se encheu de poços. Vendo aquilo, os Estados vizinhos atiraram-se. Sergipe furou vários poços e por fim também acertou no petróleo. Pernambuco, idem; em menos de um ano estava com dez poços em vários pontos; o primeiro aberto pertinho de Olinda. A Bahia perfurou na zona dos Camamus e encheu-se de petróleo; até na zona do Lobato, nos subúrbios da capital, abriram-se poços de excelente petróleo (*). O Amazonas e o Pará não ficaram atrás. Em várias pontos surgiram excelentes poços de petróleo. No Maranhão o Município de Codó tornou-se um centro petroleiro de muita importância.
A mesma coisa no sul e no centro. Nos Estados do Espírito Santo e do Rio de Janeiro, perto de Campos, abriram-se vários poços de petróleo. Em São Paulo, idem, lá pelos lados de Piraju e S. Pedro. O Paraná entrou em cena com grande fúria, abrindo poços ótimos em várias zonas. Santa Catarina também. No Rio Grande perfuraram em Pelotas e na beira da Lagoa dos Patos, e o Rio Grande também ficou alagado de petróleo.
Nos Estados centrais, a mesma coisa. O petróleo do Rio Verde, em Goiás, foi uma coisa louca. Poços potentíssimos. E em Mato Grosso, então, nem é bom falar. Surgiram nesse Estado os maiores poços da América do Sul, tão espetaculares como os do México. O Poço Xaraés n.° 2, rompeu com tanta violência que arrebentou a torre, arremessando a ferralhada a cem metros de distância. Picou a jorrar sem controle, numa coluna de 80 metros de altura, durante um mês. Por fim foi dominado. O Poço Rondon n.° 1, no Rio Negro, também deu trabalho. A sua produção inicial foi de 10.000 barris por 24 horas! Até o Estado de Minas se revelou rico em petróleo.
E aconteceu então um fato espantoso. O Brasil, que não tinha petróleo, que estava oficialmente proibido de ter petróleo, passou a ser o maior produtor de petróleo do mundo. Houve logo superprodução. Felizmente o petróleo não é como o café, que tem que ser colhido, dê ou não dê preço remunerador. No petróleo, quando há produção em excesso, as companhias entram em acordo e rateiam – cada uma fica autorizada a só produzir um tanto. Coisa facílima, aliás, pois basta que se dê uma voltinha na torneira dos poços para imediatamente a produção cair.
O mercado interno, que até então se abastecia com petróleo comprado no estrangeiro, passou a ser fornecido inteiramente com o petróleo nacional. A gasolina caiu de preço. Era em todas as bombas vendida a 20 centavos o litro; e o óleo combustível, a 10 centavos. Os agentes secretos dos trustes, que andavam a espalhar por toda parte que quando o Brasil tirasse petróleo a gasolina seria vendida mais cara que a água de Caxambu, ficaram desapontadíssimos. Toda gente percebeu que eles não passavam de espiões dos trustes, encarregados de espalhar a descrença no povo para que ninguém se lembrasse de pesquisar petróleo e o Brasil ficasse eternamente a comprar petróleo fora.
Em certas cidades, como Maceió, por exemplo, o povo, entusiasmado com a torrente de petróleo que brotava do Riacho Doce e com a gasolina vendida nas bombas a 20 centavos, agarrou os “caxambueiros” (como eram conhecidos esses marotos) e os fez passear pela cidade com caraças de burro na cabeça – e no fim da passeata os jogou na lama dos mangues para serem comidos pelos sururus.
O País entrou a prosperar dum modo maravilhoso. Todo mundo compreendeu que o nosso emperramento antigo provinha da falta de circulação. Nada circulava no Brasil, porque não havia transporte e o transporte é tudo para um país de grande território. Para haver transporte é necessário que haja combustível abundante e barato ora, como poderia ter combustível abundante e barato um país que o comprava fora a peso de ouro?
O número de automóveis cresceu vertiginosamente. O de caminhões de carga, ainda mais. As fazendas adotaram os tratores de puxar os arados e aposentaram os bois e as mulas. As estradas de ferro passaram a queimar óleo combustível em vez de lenha e carvão. Os navios que ainda usavam carvão reformaram as máquinas para só consumirem óleo combustível.
O supergás, ou gás líquido, acondicionado em cilindros de ferro, invadiu até as casas da roça. Ninguém mais cozinhou com lenha: só a gás, como nas cidades grandes.
O petróleo produzido no Brasil, porém, não ficou por muito tempo limitado ao consumo interno. A primeira partida negociada foi de 4.000 toneladas do “Donabentense cru”, e a partir desse dia a exportação nunca mais parou de crescer. Basta dizer que no ano de 1955 o Brasil já estava exportando 1 milhão e 200 mil toneladas. E para cada 100 mil toneladas vendidas fora ia de lambuja, amarrado de pés e mãos, um dos antigos “caxambueiros.”
A transformação operada no Tucano Amarelo foi maravilhosa. Aquela vilinha de 200 anos de idade e que jamais passara de mil habitantes, cada qual mais feio, pobre e bronco, virou uma esplêndida cidade de 100 mil habitantes, com ruas pavimentadas com o asfalto produzido ali mesmo, dez cinemas, cinco hotéis de luxo, escolas magníficas e a Casa de Saúde Dona Benta, que apesar de ser absolutamente gratuita punha num chinelo as casas de saúde das capitais, que cobram 50 cruzeiros por dia, fora os extraordinários. Os doentes saíam invariavelmente curados e gordos. A Escola Técnica Narizinho tornou-se um padrão copiado pelo País inteiro. Os rapazes e as raparigas que lá se diplomavam em inúmeros ofícios, eram disputados a peso de ouro. “Aqui se aprende de verdade” era o letreiro que havia na fachada do estabelecimento – e aprendia-se mesmo.
As estradas do município, feitas por Dona Benta, atraíam turistas de longe. Duas faixas de concreto, uma para ir e outra para vir, separadas por uma cinta sem fim de grama tosadinha; de distância em distância a grama era substituída por um canteiro de flores de cinco metros de comprimento.
Estrada iluminada à noite e com bombas de gasolina Donabentense de 3 em 3 quilômetros; e estações de consertos de carros, e pequenos restaurantes muito pitorescos, e “Casas de Abrigo” – uma idéia de Narizinho. Nessas casas de abrigo os viajantes se acomodavam à vontade e como queriam, sem nada pagar.
– Isto é a evolução dos antigos ranchos de tropeiros – dizia a menina.
E era.
Dona Benta e os meninos costumavam sair em longas excursões num excelente automóvel que rebocava um trailer construído sob medida. Que trailer gostoso! Uma verdadeira casinha ambulante, com tudo que é necessário à vida. Pedrinho guiava o automóvel, com Emília e o Visconde sempre ao lado. No trailer ia Dona Benta, Narizinho e tia Nastácia, todas na frescata, e tão a cômodo como se estivessem na casinha do sítio.
A negra no começo arrenegou de tantas novidades; por fim acabou gostando.
– A gente não tem remédio senão ir na onda – dizia ela – E no fim gosta, porque é bom mesmo. Quando Seu Pedrinho veio com a história do tal supergás lá na cozinha, eu danei, pensando que era peta. Mas deu certo. Acabou aquela endrômina de acender fogo de lenha, e assoprar, assoprar, com os olhos ardendo. Agora basta torcer uma torneirinha e sai um ventinho que pega um fogo azul – e quente como o diabo! Que limpeza!
– Uma criatura até fica vadia com tantas facilidades de hoje. E a geladeira, então? E’ só botar as coisas ali dentro, puxar um ferrinho e fechar a porta. Gera um frio lá dentro que até parece o tal pólo que Seu Pedrinho conta. A água vira vidro, de tão dura. Diz que é gelo. E a carne e o peixe não se estragam ali – podem ficar um tempão. E esta casinha em cima de rodas que anda por toda parte? Coisa boa, sim. Diverte a gente. A gente varia, vê caras e coisas novas. Estou gostando, estou gostando, sim…
Saíam a passeio, às vezes de semana, sem pressa de chegar, porque a festa não era chegar – era ir andando e parando aqui e ali, ora para pegar uma borboleta para a coleção da Emília, ora para Pedrinho tirar um instantâneo, ora para Narizinho (que aprendera a desenhar) fazer um lindo croquis em seu álbum. Quando passavam por algum rio ou lagoa, era fatal uma parada para o Visconde fazer sua fezinha à beira d’água com o anzol.
Pescador como ele não havia outro. Ele e tia Nastácia. A preta sentava-se ao lado do Visconde para ir botando minhoca no anzol.
Num desses passeios encontraram o Coronel Teodorico.
– Viva, compadre! – exclamou Dona Benta. – Que novidade a sua presença por estas bandas?
O Coronel estava avelhentado, cheio de rugas na testa, com ar de quem tinha sofrido muito.
– Pois é, comadre. Quem é vivo sempre aparece. Ouvi tanta história disto por aqui, que criei coragem e vim ver. Mas antes não viesse…
– Por quê?
– Porque tudo me confirma as suas palavras daquele dia, lembra-se? Eu fui um bobo, confesso. Vendi minha fazenda, pensando fazer um negocião, mas o que fiz foi negócio de sandeu.
– Eu bem disse…
– Disse, sim comadre, e se eu pusesse tento nas suas palavras, tudo teria corrido muito bem. Mas eu era presunçoso, tinha confiança demais em mim e…
– E que aconteceu?
– Acabei limpo, comadre. Os piratas lá do Rio de Janeiro caíram em cima de mim como piranhas que atacam boi n’água. Primeiro foi uma compra de bondes que até tenho vergonha de contar…
– Eu sei da história – disse Dona Benta. O Coronel arregalou os olhos.
– Sabe? Quem lhe contou?
– Li nos jornais. Os jornais do Rio insistiram muito nesse caso.
O Coronel cocou a cabeça.
– Pois então, ainda pior. Como não leio jornal, fiquei sem saber disso… Pois é, comadre, comprei aqueles quatro bondes por 200 mil cruzeiros – e levei na cabeça, porque era conto-do-vigário. Depois me aprecatei mais. Não adiantou. Os piratas sabem lidar com os bobos da roça. Houve um que me vendeu por 300 mil cruzeiros uma máquina que era a maior maravilha deste mundo. A gente botava papel em branco dum lado, e despejava umas drogas nuns canudos e virava uma manivela – e saía cada nota de 200 cruzeiros que era uma beleza. Mas verdadeiras, sim senhora! Tão verdadeiras que eu andei com duas delas de banco em banco indagando se eram falsas ou verdadeiras e todos me confirmaram: “São verdadeiras”. E foi então que eu comprei a máquina maravilhosa de fazer dinheiro verdadeiro – porque o crime é fazer dinheiro falso. Fazer dinheiro verdadeiro não é crime porque o dinheiro é verdadeiro, não é assim?
– E quando recebeu a máquina e foi fazer dinheiro verdadeiro, errou na mistura das drogas e a máquina explodiu, não foi isso?
O Coronel arregalou os olhos.
– Homem, comadre, a senhora até parece que tem parte com o demo: adivinha as coisas!… Como sabe duma “conseqüência” que eu só contei pra minha velha?
– Sei porque adivinho, está claro… – respondeu Dona Benta sorrindo.
– Pois adivinhou certo – continuou o Coronel. – A máquina explodiu, pluf! e lá se foram os meus 300 mil cruzeiros. Bati o Rio de Janeiro inteirinho atrás do homem que me vendeu aquilo e nada. Nem sombra.
– Bem – disse Dona Benta. – Temos já aqui 500 mil cruzeiros lambidos pelos piratas. E o resto?
– O resto foi comido pelo leão e por uma francesa – aquela peste!
– Quê história é essa?
– Sim, andei seguindo o leão no jogo do bicho, a milhares de cruzeiros por dia, durante quase dois meses. Pois há de crer, comadre, que assim que parei de jogar o desgraçado deu com 64? E o que escapou do leão caiu no bucho da francesa, uma tal Odete, que depois descobri que nem francesa, nem Odete era. Me deixou limpo. Então vendi minha casa e vim ver isto por aqui…
– E a comadre?
– Morreu, coitada. Morreu de desgosto, depois que a máquina de fazer dinheiro arrebentou…
O Coronel passou a manga do paletó nos olhos.
– E que pretende fazer agora? – perguntou Dona Benta.
– Homem, não sei. Estou assuntando. Para que presta um velho louco e bobo como eu?
– Presta para muita coisa – disse Dona Benta. – Apareça lá no sítio na semana que vem que lhe arranjo um bom empreguinho.
– A comadre ainda mora lá mesmo?
– Sim, na mesma casinha de sempre.
– Na mesma casinha? Então, sendo tão rica, não teve coragem de fazer um palácio?
Dona Benta riu-se.
– Minha casinha, compadre, é o palácio da felicidade. Não troco nem pelo Buckingham Palace do Rei Jorge VI…
O Coronel Teodorico ficou a olhá-la com espanto. Depois disse:
– Ah, comadre, se todos fossem como a senhora, se todos tivessem a sabedoria da senhora… Como me arrependo de não ter ouvido os seus conselhos!
– Pois apareça e ouça-os, que ainda é tempo.
Despediram-se. Pedrinho pôs o carro em movimento – e lá se foi o trailer com a boa senhora na janela, a dizer adeus de mão para o pobre compadre.
Logo adiante encontraram outro velho, este de boné na cabeça.
– Parece o Chico Pirambóia, vovó – disse a menina.
– É ele mesmo! – gritou tia Nastácia. – Mas como está importante! De boné…
Pedrinho parou o carro e Dona Benta chamou o Pirambóia.
– Então, que é isso, meu velho?
– Pois isto é a vida, Dona Benta – respondeu o caboclo. – Depois daquele desastre que me sucedeu, estive mais de ano no hospital, e por fim fui solto na rua. Mas estava que nem aquele Jó da Bíblia – sem nada de nada, sem nenhum tostão no bolso. Os malvados me roubaram os 230 mil cruzeiros e passaram recibo com peroba no meu lombo. Os pestes!… Mas Deus é grande, Dona Benta. Fui andando e bati lá no meu antigo sítio. Quase nem reconheci. Tudo mudado, tudo bonito, tudo importante. Eles estavam desmanchando uma torre de ferro, como essas que a gente vê agora por toda parte. Eu procurei o chefe dos trabalhos e pedi serviço. Ele olhou bem para mim (era um engenheiro de perneira) e perguntou para que eu prestava. E eu então fui e respondi: – “Sempre hei de prestar para alguma coisa, capinar chão, tratar de burro de carroça, carregar coisas na cacunda – mas já prestei para negócios muito importantes.”
O “perneira” estranhou minha conversa e deu corda.
– “Sim – disse eu – já me prestei para os entendidos fazerem no meu lombo grandes negócios, como o deste sítio que vendi por 230 mil cruzeiros no contado.”
O engenheiro arregalou os olhos.
– “Será verdade? Então foi o senhor o antigo dono destas terras?”
– “Eu mesmo – Chico Pirambóia, pode perguntar para qualquer.”
O homem riu-se dum modo esquisito. Depois disse:
– “Pois fique sabendo que nos passou a perna. Compramos estes dez alqueires por 230 mil cruzeiros na certeza de encontrar petróleo – e já abrimos dois poços sem resultado nenhum. Estamos agora desmontando a sonda para armá-la numas terras que compramos adiante. Lá, sim, o petróleo é certo. Isto aqui não vale nada. Você nos passou a perna, seu barba-rala duma figa. E agora vem rir-se de nós nas nossas ventas, não é?”
Contei para ele então o que me tinha sucedido – o assalto dos ladrões, o ano e meio que passei no hospital, a minha vida miserável. E Dona Benta há de crer que o “perneira” teve dó de mim? Até parece mentira, mas teve. Olhou bem pra minha cara e disse:
– “Bem, se é assim, então o caso muda – e posso ajudar você. Nossa companhia está construindo muitas obras lá na antiga fazenda do Coronel Teodorico, onde precisamos duma boa turma de guarda-poços. Vá lá com este cartão e procure o chefe do serviço. Para guardar o poço de noite você serve. Não há nada que fazer – é só não ferrar no sono. Dormir é de dia.”
– Eu fui e me deram serviço na turma de guarda – e de tanto ficar acordado de noite e dormir de dia, quase virei coruja. Por fim me enjoei daquilo e pedi outro serviço. Eles então me puseram guarda-diurno, que é como lá dizem.
– Pois você não pode queixar-se, Pirambóia – disse Dona Benta. – Está no seu empreguinho graças ao petróleo. Quanto ganha por mês?
– Trezentos cruzeiros.
– E quanto tirava por mês quando era sitiante?
Chico Pirambóia deu uma risada.
– Mecê está brincando comigo, Dona Benta! Naquele tempo eu não tirava nada. O que fazia era me endividar na venda do Elias Turco.
– Isso mesmo. E agora está com 300 por mês, graças ao petróleo. Pois lamba as unhas. Apesar de não haver petróleo no seu sítio, você pode dizer que foi um dos que tiraram petróleo. É ou não é?
– Lá isso é – concordou o guarda-diurno.
– E que está escrito no seu boné?
Antes que ele dissesse, Narizinho respondeu:
– C. G. P. – Companhia Guaxanduba de Petróleo, a tal que está furando na fazenda do Coronel.
– Isso mesmo – confirmou o caboclo. – Aquilo lá até parece uma cidade. Já abriram mais de cem poços – mas nenhum chega aos pés dos seus, Dona Benta. É poço de 30, 40, 50 barris por dia. O petróleo está mesmo no seu sítio, segundo todos dizem. Eles, lá no Coronel, têm que abrir um bandão de poços para dar o que dá um Caraminguá sozinho. Mas onde parece que vai rebentar poço dos macanudos é lá na vertente do Nheco. Está correndo por aí que ontem acabaram de abrir um que deu 1.500 barris no primeiro arranco.
– Fico muito satisfeita de saber disso, porque quanto mais petróleo tivermos por aqui, tanto melhor para todos – disse Dona Benta. – Francamente, eu andava aborrecida dos meus poços serem os maiores da zona, de maneira que o que você me conta muito me alegra. Eu também tenho umas terrinhas por lá…
– Eu sei. O antigo sítio do João Maleiteiro, que a senhora comprou por 50 mil cruzeiros e todo mundo deu risada. A senhora é a mulher que enxerga mais longe que eu conheço. Inda é capaz de tirar desse sítio que custou 50 mil cruzeiros um poder de petróleo de assustar o mundo…
– E a vila, Chico?
– Vila? Cidade, isso sim! Aquilo virou uma prepotência de cidade que até dá medo. E tudo lá é petróleo. A antiga venda do Canhambora virou um armazém de seis portas, com um letreiro assim: AO TRÉPANO DE OURO. Aquele botequim do Chico Pileque, que só tinha pinga e fumo de corda, está agora um hotel de seis andares – HOTEL ROTARY MODELO. Mas o mais bonito de tudo é a ESCOLA NARIZINHO, onde a criançada entra boba e sai mais sabida que o defunto vigário Padre Pedrosa, que Deus haja.
– Pois é – disse Dona Benta. – Mas quando abrimos lá no sítio o Caraminguá n.° 1 e você foi despedir-se de mim, lembra-se do que me disse do “criosene?”
Chico Pirambóia ergueu o boné e com a mesma mão cocou a cabeça.
– Lembro, sim, Dona Benta. Eu duvidei, não nego. Fui um bobo, como todos por aqui, menos a senhora. Mas hoje minha Bíblia é o “criosene.” Juro em cima dele, se for preciso …
– E ainda diz “criosene”, em vez de petróleo?
– Digo só por figuração, para matar saudades do tempo antigo. Mas nesse ponto já não estou bobo. Sei o que é petróleo, sei o que se faz dele, sei tanto já, que ainda acabo fazendo uma sociedade para abrir um poço num lugarzinho que eu conheço…
E como Dona Benta fizesse cara de curiosidade:
– Para a senhora eu conto – pra ninguém mais: no sitinho de Nhá Veva, aquela dos ovos. Outro dia estive lá e tirei uma linha com os olhos, por cima daquele morrinho selado; e sabe onde bateu a linha*? No eixo do “anticriná” lá do seu sítio! Pra mim – ninguém me tira da cabeça: o sítio de Nhá Veva é um rabo de “anticriná…”
Dona Benta despediu-se de Chico Pirambóia e ficou a rir-se.
– Veja, minha filha – disse ela a Narizinho. – Isto é mais um dos milagres do petróleo. Esse pobre Chico, que era o caboclo mais xucro aqui na zona, já tira linha com o olho e descobre “rabos de anticlinais…”
– Outro milagre do petróleo – disse a menina – é a mudança de gênio de tia Nastácia. Olhe o jeitinho dela com o Visconde. Assim que o trailer parou para a senhora falar com o Pirambóia, correu para aquele córrego com o Visconde – foram pescar. E veja como está alegre, contente da vida e remoçada. Até parece uma negra americana do cinema, das sabidas…
Logo depois tia Nastácia voltou com uma traíra pescada pelo Visconde. Vinha arreganhando de gosto, com o peixe no ar.
– Veja que linda, Sinhá! Isto recheadinho dá um suco…
Dona Benta olhou-a bem e perguntou:
– Nastácia, é verdade que você se sente feliz?
– Que pergunta, Sinhá – respondeu a negra – e virou a cara para que não lhe vissem os olhos molhados…