Monteiro Lobato – Caçadas de Pedrinho

MONTEIRO LOBATO

 Caçadas de Pedrinho

 Capítulos 11 e 12

 

     11 – Inaugura-se a linha

               A linha telefônica foi construída com todo o luxo, como é de costume nas obras do governo. Os postes foram até pintados! Era a mais curta linha do mundo: com cem metros de comprimento e dois postos apenas, um no terreiro da casa e outro no acampamento dos caçadores. Um poste foi pintado de verde, outro de amarelo. No dia da inauguração, porém, aconteceu um fato imprevisto: o rinoceronte não veio deitar-se à porteira na hora do costume. Nem apareceu no dia seguinte, nem durante toda a semana. Os caçadores tiveram de armar barracas e ficar ali esperando, pacientemente, que ele se resolvesse a voltar.

               Por que isso? Porque ficava sem jeito inaugurarem a linha sem o rinoceronte atravessado na porteira. Sem rinoceronte poderiam entrar duma vez no terreiro e falar diretamente com a dona da casa. Mas precisavam justificar a construção da linha, e por isso resolveram esperar que o monstro voltasse.

               Vendo as coisas assim encrencadas, Emília resolveu intervir. Foi à Figueira Brava pedir ao rinoceronte que não desapontasse a gente do governo e continuasse a ir dormir na porteira. Não se sabe de que argumentos a boneca usou; o que se sabe é que no dia seguinte, exatamente às três da tarde, o rinoceronte veio de novo, pachorrentamente, deitar-se de atravessado na porteira.

               Houve vivas de entusiasmo no acampamento dos caçadores. Podiam, enfim, inaugurar a linha.

               Trlin, trlin… soou na varanda a campainha do aparelho.

               – Vá atender – disse Dona Benta ao Visconde, que estava cochilando por ali.

               – Eu atendo – gritou Cléu, que tinha muita prática em falar ao telefone.

               E numa vozinha muito clara e espevitada atendeu: – Alô! Quem fala?

               – Fala aqui o detetive X B2, chefe do Departamento Nacional de Caça ao Rinoceronte – respondeu uma voz grossa. – E quem está falando aí?

               – Aqui fala Cléu, por ordem da proprietária da casa, Dona Benta Encerrabodes de Oliveira, avó de Narizinho, Pedrinho e Rabicó. Que deseja Vossa Rinocerôncia?

               – Desejo participar à dona da casa que a linha telefônica está concluída e que agora podemos discutir as operações necessárias à caçada do rinoceronte, tendo o gosto de fazer com que as nossas palavras passem bem por cima dele sem que o bruto perceba, ah! ah! ah!…

               – Mas por que não discutiu isso durante a semana em que o rinoceronte andou sumido e a passagem pela porteira estava completamente franca? Acho que Vossa Rinocerôncia perdeu um tempo precioso.

               – Menina – respondeu, meio ofendido, o detetive X B2 -, não se meta no que não é da sua conta. O governo sabe o que faz. Quero falar com a dona da casa.

               Cléu tapou com a mão o bocal do telefone e voltou-se para Dona Benta.

               – Ele quer falar com a senhora mesma.

               Mas a velha não estava pelos autos. Considerava aquela gente uma súcia de idiotas, um verdadeiro bando de exploradores.

               – Diga-lhe que não me aborreça. Estou muito velha para andar servindo de instrumento a piratas.

               Cléu deu o recado, com outras palavras para não ofender o governo, e então o detetive X B2 explicou que necessitava da autorização de Dona Benta para construir outra linha…

               – Segunda linha telefônica? – indagou Cléu, admirada.

               – Não, menina abelhuda. Agora será uma linha de transporte aéreo, que nos permita levar para aí as nossas armas e bagagens. Só assim poderemos assestar o canhão-revólver e a metralhadora na escadinha da varanda, de modo a abrir fogo de barragem contra o inimigo, sem dano para os vidros das vidraças de Dona Benta.

               – E foi só para pedir tal licença que os senhores levaram tanto tempo construindo esta linha telefônica? – perguntou Cléu, admiradíssima.

               – Não discuta os nossos processos, menina impertinente – disse com cara feia o detetive X B2. – O governo sabe o que faz, torno a dizer.   

               Cléu tapou de novo a boca do aparelho, enquanto consultava Dona Benta.           

               – Ele pede licença para construir uma nova linha – uma linha de cabos aéreos, como aquela do Pão de Açúcar…

               Dona Benta respondeu que fizessem como entendessem e não a incomodassem mais.

               Pedrinho estava assombrado da esperteza daqueles homens. Iam construir uma linha de cabos só para levar ao terreiro um canhãozinho e uma metralhadora!… Muitos rinocerontes já haviam sido caçados desde que o mundo é mundo, mas nenhum seria caçado tão caro e com tanta ciência como aquele. Apesar de nunca saídos daqui, tais homens bem que podiam mudar-se para a África, a fim de ensinar aos negros do Uganda como é que se caçam feras…

               Tanto tempo levou a construção da linha de cabos aéreos que o rinoceronte se foi familiarizando não só com as pessoas do sítio, como ainda com o pelotão de caçadores. Várias vezes chegou até o acampamento onde farejava com curiosidade o canhão-revólver e a metralhadora, sem saber para que serviam. Numa dessas vezes ajudou os construtores da linha a arrancarem um poste que fora fincado torto, trabalhando tal qual um elefante manso da índia.

               Emília tornara-se amiga íntima do animalão. Ia sempre à Figueira-Brava vê-lo pastar arbustos, e com ele entretinha-se horas a ouvir casos da vida africana. Era um rinoceronte de boa paz, já velho, com a ferocidade nativa quebrada por longos anos de cativeiro no circo. Só queria uma coisa: sossego. Por isso fugira do circo e viera esconder-se ali, no silêncio do capoeirão dos Taquaruçus.

               – Eles querem matar você – disse-lhe Emília certa manhã. – Trouxeram para esse fim um canhão-revólver e uma metralhadora.

               O rinoceronte arrepiou-se todo. Jamais supusera que a atividade daqueles homens e toda a trapalhada das linhas, que andavam assentando, tivessem por fim dar cabo da sua vida.

               – Mas por quê? – indagou, em tom magoado. – Que mal fiz eu a essa gente?

               – Nenhum, mas você é o que os homens chamam “caça” – e o que é caça deve ser caçado. Quando os homens encontram no seu caminho uma lebre, uma preazinha, um inambu, um pato selvagem ou o que seja, ficam logo assanhadíssimos para matá-lo – só por isso, porque é caça. Mas você não tenha medo que não será caçado. Hei de dar um jeito.

               – Que jeito?

               – Não sei ainda. Vou ver. Mas não se incomode. Sou jeitosíssima! Dou um jeito de afugentar os homens e você ficará morando toda a vida neste sítio. Já temos em nosso bandinho um quadrúpede, o Marquês de Rabicó, que é leitão, conhece?

               – Não tenho a honra.

               – Pois é um senhor muito importante, apesar da sua covardia e gulodice (Emília não teve a coragem de contar que Rabicó era seu marido). Tem quatro pés, como você, mas nem um pingo de chifre. Com mais um companheiro, e este de formidável chifre na testa, havemos de pintar o sete pelo mundo…

               Emília estava radiante com a ideia de ver o rinoceronte incorporado à família de Dona Benta. Tia Nastácia é que iria ficar tonta de susto…

               – E que tenho de fazer nesse bando? – perguntou o rinoceronte, comovido com o oferecimento.

               – Nada, por enquanto. Mais tarde, veremos. O pelotão dos caçadores já está com a linha aérea pronta. Breve farão o transporte do canhão-revólver, da metralhadora e do resto. Vão assestar essas armas na escadinha da varanda.

               – Devo então continuar a deitar-me na porteira, não é?

               – Está claro. Para que eles possam utilizar-se da linha de cabos aéreos é indispensável que você esteja atravessado na porteira.

               O rinoceronte não entendia aquilo.

               – Mas por que já não transportaram esse tal canhão no tempo que passei sem ir deitar-me à porteira?

               – Não sei – respondeu Emília, que de fato não sabia. – Dona Benta também não sabe, nem Cléu, que foi quem conversou com o detetive X B2 pelo telefone, nem Narizinho, nem Pedrinho, nem o Visconde, nem Rabicó – ninguém sabe. Diz Cléu que são “coisas do governo”, um puro mistério.

               O rinoceronte ficou pensativo. Devia ser uma bem estranha criatura esse tal governo, que fazia coisas acima do entendimento até da Emília!   Às três da tarde apareceu o animalão no terreiro, indo deitar-se no seu lugarzinho do costume. Grande alegria entre os caçadores. Podiam, afinal, fazer o transporte das armas e bagagens, e também de si próprios, utilizando-se da linha de cabos aéreos, e em seguida dar começo ao ataque à fera. Um entusiasmadíssimo telegrama foi passado para o Rio, nestes termos: “Trabalhos linha aérea brilhantemente concluídos ponto iniciaremos hoje transporte armas e bagagens ponto vitória segura ponto saúde e fraternidade”.

               Os jornais publicaram a notícia com grandes elogios aos heroicos caçadores do rinoceronte, que tão bravamente arrostavam os maiores perigos a fim de limpar o solo da pátria daquele perigosíssimo animal. O detetive X B2 foi chamado “impertérrito”, e outros lindos adjetivos que a imprensa só usa para homens de pulso e tremendos heróis do mais alto calibre. Choveram telegramas de parabéns pela beleza dos trabalhos realizados.

               Às três da tarde, logo que o rinoceronte se atravessou na porteira, a linha de cabos foi posta a funcionar. Primeiro passou, pendurado em carretilhas, o canhão-revólver. Depois a metralhadora. Depois passaram as munições, a bagagem, as violas e, por fim, os caçadores.

               Dona Benta viu, com má cara, toda aquela gente encher o terreiro. Já andava enjoada deles, e quando Tia Nastácia falou em lhes oferecer um café com bolinhos, não consentiu.

               – Nada de comedorias – disse ela. – Do contrário esses heróis nunca mais me abandonam o sítio.

               – É isso mesmo, sinhá – tornou a preta. – O meu cafezinho parece que tem visgo.

               Enquanto os homens descansavam, um tanto desapontados de não aparecer o café com bolinhos, Emília foi secretamente à caixa das munições e trocou a pólvora que lá havia por farinha de mandioca. Em seguida, mandou pelo Visconde um recado muito comprido ao rinoceronte, o qual terminava assim: “… e quando eu soltar um assobio, você levanta-se e dá uma investida de rinoceronte selvagem contra esses homens”.

               – E se o rinoceronte errar e investir também contra algum de nós? – objetou com muita sabedoria o Visconde. – Porque aqui da casa ele só conhece você.

               Emília refletiu um bocado. Depois:

               – Diga-lhe para só chifrar os que não tiverem uma rodela de casca de laranja no peito.

               Enquanto o Visconde dava o recado, Emília foi ao pomar com uma faca e trouxe meia dúzia de rodelas de casca de laranja, que colocou no peito de cada morador da casa sem perder tempo em explicar para que era. Só Tia Nastácia insistiu em saber as razões.

               – Ah, não quer? – disse Emília. – Sua alma sua palma. Depois não se queixe – e deixou-a sem rodela no peito.

               Nisto soou a voz do detetive X B2, dirigida aos seus homens.

               – Tudo pronto? – indagava ele.

               – Tudo pronto! – responderam os perguntados.

               – Então, fogo!

               – Parem! Parem! Não ainda! – berrou Tia Nastácia lá de dentro. – Estou procurando algodão para botar nos meus ouvidos e nos de Dona Benta. Onde já se viu dar tiro de peça na escadinha da varanda sem a gente estar com um bom chumaço de algodão nos ouvidos? Credo!

               Os artilheiros esperaram que os ouvidos das duas velhas ficassem perfeitamente enchumaçados. Depois, ouvindo de novo a ordem de “Fogo!”, fecharam os olhos e bateram na espoleta.

               A decepção foi completa. Em vez dum terrível Bum! que atroasse os ares, o que saiu do canhãozinho foi pirão de farinha de mandioca. O grande tiro falhara da maneira mais vergonhosa. Nesse momento Emília, imitando Pedrinho, meteu dois dedos na boca e tirou um assobio agudíssimo.

               O rinoceronte ouviu lá longe. Levantou-se de cara feia e veio, que nem uma avalancha de carne, contra os seus perseguidores.

               Soou um berro de pânico misturado com a ordem do detetive X B2 de “salve-se quem puder”. Todos puderam, porque todos se salvaram, como veados, pelos fundos do quintal, imperterritamente. Naquela velocidade, em menos de uma hora estariam no Rio de Janeiro.

               Ao alcançar a escadinha, o rinoceronte não encontrou um só inimigo, isto é, uma só pessoa sem rodela de casca de laranja no peito. Minto. Encontrou uma: Tia Nastácia, e ao vê-la sem rodela pensou que fosse cozinheira da gente do governo. Abaixou a cabeça e investiu. A pobre preta mal teve tempo de trancar-se na despensa, onde fez, no escuro, mais pelo-sinais do que em todo o resto de sua vida.

               – Toma! – gritou a diabinha da Emília. – Quis ser muito sabida, não é? Pois toma…

  

12 – Rinoceronte familiar

               A vida no sítio mudou depois da entrada do rinoceronte para o bando. No começo Narizinho e Pedrinho não podiam esconder certo medo. Quanto a Dona Benta e Tia Nastácia, isso nem é bom falar. Tremiam de pavor sempre que à tarde, conforme seu costume, o paquiderme vinha da Figueira-Brava postar-se no terreiro para longas prosas com a Emília. Nem espiar pela janela espiavam, as coitadas. Mas os meninos espiavam. Regalavam-se de espiar.

               O rinoceronte vinha e dava um bufo. Emília e o Visconde largavam incontinenti o que estivessem fazendo e iam na volada ao encontro dele, para ouvirem histórias da África. Depois se punham os três a brincar de esconde-esconde, de chicote-queimado, de pegador. Emília logo inventou jeito de montar a cavalo no chifre dele para passear pelo terreiro. O Visconde puxava o monstruoso paquiderme por uma cordinha atada à orelha.

               – Que danada esta Emília! – dizia Narizinho, lá da sua janela, com uma inveja louca de fazer o mesmo. – Não tem medo de coisa nenhuma…

               – Grande milagre! – retorquia Pedrinho, com uma ponta de inveja. – Se eu fosse de pano, como ela, até em três rinocerontes montava ao mesmo tempo.

               – Não sei, não sei, Pedrinho – intervinha a Cléu, fazendo cara de dúvida. – Emília é mesmo uma exceção completa. Isso de não ter medo me parece o de menos. O que me assombra é o jeito que ela tem para tudo. Repare que neste caso do rinoceronte foi quem fez sempre o primeiro papel. Foi quem o descobriu, foi quem o amansou, foi quem passou a perna nos caçadores e os botou daqui para fora a fugirem como veados. Ora, isto é muito para uma boneca, não acha?

               Pedrinho, que estava namorando a Cléu, não teve remédio senão achar que sim.

               Numa dessas vezes Tia Nastácia criou coragem e entreabriu muito devagarinho a janela. Espiou pela fresta.

               – Nossa Senhora da Aparecida! – exclamou, com os olhos pulando da cara. – Venha ver, sinhá! A Emília a cavalo no tal boi de um chifre só e o Visconde puxando ele por uma cordinha, como se fosse a coisa mais natural do mundo! Credo!…

               Dona Benta espiou e também assombrou-se.

               – Realmente! Para mim a Emília é alguma fadinha que anda pelo mundo disfarçada em boneca de pano. Passear a cavalo num rinoceronte! Vá a gente contar isso lá fora – ninguém acredita, nem pode acreditar…

               – E o Visconde, sinhá, repare o jeitinho dele, puxando o boi…

               – Não é boi, Nastácia, é ri-no-ce-ron-te – emendou Dona Benta. 

               – Para mim é boi – insistiu a negra. – Não sei dizer esse nome tão comprido e feio. Estou velha demais para decorar palavras estrangeiras. Mas repare no Visconde, sinhá. Puxa o boi da África como se estivesse puxando um boizinho de chuchu, daqueles que Seu Pedrinho costuma fazer…

               E as duas ficavam de boca aberta, admirando aqueles assombros.       Um dia Narizinho gritou lá da sua janela:

               – Emília, estou com vontade de perder o medo e montar nele também. Que acha?

               – Pois venha, boba! Não há bicho mais manso que este. A História natural de Dona Benta está errada. Não vê como faço dele gato e sapato?

               – Sim, mas você é de pano e eu não. Sou de carne…

               – Por dentro; por fora é de pano como eu – os vestidos. Faça de conta que é de pano inteirinha e venha. Ele tem reparado muito na sua ausência, está até sentido. Venha e diga a Pedrinho e Cléu que venham também.

               Narizinho, Pedrinho e Cléu entreolharam-se com uma vontade louca de aceitar o convite.

               – Vamos? — propôs Narizinho, já meio decidida.

               – Vamos! – responderam os outros, corajosamente.

               Minutos depois estavam os três repimpados no lombo do rinoceronte.

               – Falta Rabicó! – berrou a Emília. E pôs-se a chamar:

               – Rabicó! Rabicó! Não seja bobo, venha também!…

               Mas Rabicó estava a duzentos metros dali, no pasto, espiando a cena por detrás dum capim. Não vê que ia!

               As brincadeiras com o rinoceronte repetiam-se diariamente, por horas. Além das passeatas, inventaram novas coisas, como, por exemplo, fazê-lo puxar o carrinho de cabrito, com um passageiro de cada vez porque não cabiam dois. Ora ia Narizinho, ora o menino, ora a Cléu. Emília nunca deixava o seu posto no chifrão do monstro. Aquele lugar era dela só.      

               Um dia Tia Nastácia não resistiu. Foi para o terreiro ver de perto a brincadeira. Quando virou o rosto, viu Dona Benta que vinha vindo. Dona Benta também não resistira à tentação.

               Os meninos fizeram-lhes uma grande festa.

               – Ora, graças que se estão civilizando! – berrou Narizinho. – Viva vovó! Viva Tia Nastácia!

               Nisto, Cléu, que estava dentro do carrinho, pulou fora e disse:

               – Chegou sua vez, Dona Benta. Suba!

               Era um despropósito aquilo, coisa para desmoralizar a boa velha para o resto da vida. Apesar disso a tentação foi forte e, como Cléu a ia empurrando, Dona Benta de súbito decidiu-se. Ajuntou a saia e, sem olhar para Tia Nastácia (de vergonha), subiu ao carrinho.

               – Viva! Viva vovó! – berraram, do alto do paquiderme, os meninos. – Toca, Emília! Puxa, Visconde!

               Emília deu no rinoceronte com o seu chicotinho e o Visconde o puxou quatro vezes até à porteira, ida e volta. Se houvesse por ali um aparelho de cinema podia ser tirada a melhor fita do mundo…

               Nesse ponto da brincadeira, porém, aconteceu uma atrapalhação. Dois homens a cavalo surgiram na estrada. Mais que depressa Dona Benta pulou fora do carrinho e correu para a varanda.

               Os homens pararam na porteira e pediram licença para entrar. Entraram. Apearam-se. Dirigiram-se para a varanda.

               – Desejamos falar com a dona da casa – disseram. Dona Benta adiantou-se.

               – Sou eu a dona da casa. Que é que Vossas Senhorias desejam?         Um dos homens era alemão. O outro, brasileiro. Foi este quem falou.        

               – Minha senhora – disse ele -, quero apresentar a Vossa Excelência o Senhor Fritz Müller, proprietário do circo de cavalinhos que está no Rio de Janeiro. O Senhor Müller é dono dum rinoceronte que fugiu de lá faz uns meses. Depois de longas pesquisas descobriu que o animal estava escondido aqui e veio comigo reclamá-lo. Sou o seu advogado.

               O rinoceronte reconheceu o Senhor Müller e pendurou o focinho, muito triste, já sem vontade de brincar.

               – Que é que há? – perguntou-lhe a boneca, ao ouvido.

               – Aquele homem louro é o meu dono – respondeu o paquiderme – e veio buscar-me. Estou triste porque gosto muito mais daqui do que do circo…     

                Emília abespinhou-se toda, lançando um olhar terrível para os dois intrusos. Refletiu uns instantes e depois disse ao animalão:

               – Não se aborreça. Darei um jeito desses piratas fugirem daqui ainda mais depressa que os caçadores. – Disse e desceu, dirigindo-se para a varanda, onde ficou atrás duma cadeira, escutando a conversa dos homens com a velha.

               – Pois não haja dúvida – dizia Dona Benta. – Se o animal é seu, pode levá-lo, apesar de que está muito acostumado aqui e não nos incomoda em nada.

               – Está bem – disse o alemão. – Vou levá-lo já. Ao ouvir tais palavras Emília não se conteve. Pulou de trás da cadeira, plantou-se diante do homem, de mãozinhas na cintura, e disse:

               – A coisa não vai assim, meu caro senhor! Não basta ir dizendo que o rinoceronte é seu. Tem que provar que é seu, sabe?

               O alemão ficou espantadíssimo daquele prodígio: uma bonequinha falando, e falando daquele jeito, com tal arrogância.

               – Quem é esta “senhorrita”? – perguntou ele a Dona Benta.

               – Pois é a Emília, Marquesa de Rabicó; nunca ouviu falar dela? Foi quem descobriu o rinoceronte no capoeirão dos Taquaruçus. Depois o vendeu a Pedrinho. Depois o amansou e agora passa o dia a brincar com ele.

               O alemão estava cada vez mais assombrado. Apesar de ser homem vivido, e de ter corrido o mundo inteiro com o seu circo, jamais observara fenômeno igual: uma bonequinha tão pernóstica. Quis continuar a falar e não pôde. Estava engasgado. Quem falou dali por diante foi o seu companheiro.

               – Sim, sim, minha senhorinha – disse este -, o rinoceronte pertence aqui ao meu amigo Müller, que o vem reclamar. Vejo que tanto a senhorinha como os outros meninos já estão acostumados com o paquiderme. Infelizmente somos obrigados a levá-lo para o circo.

               Emília empertigou-se mais ainda.

               – Vamos por partes – disse ela. – Antes de mais nada, quero que o senhor doutor me prove que ali o Senhor Müller é mesmo o dono deste rinoceronte. Exijo provas, sabe? Eu não uso anel de advogado no dedo, mas acho que em direito o que vale são as provas.

               Foi a vez de o advogado abrir a boca, de espanto. A tal bonequinha sabia discutir como um perfeito rábula.

               – Toda gente deste país sabe que o rinoceronte pertence ao Senhor Müller – disse ele. – Os jornais deram mil notícias a respeito de sua fuga e da busca que os homens do detetive X B2 andaram fazendo pelo Brasil inteiro. É um fato de domínio público.

               – Perfeitamente – replicou Emília. – Não nego que esse cara-de-cavalo melado…

               – Emília! – repreendeu Dona Benta. – Mais modos, hem?…

               – … seja dono dum rinoceronte. Mas quero que prove que o rinoceronte dele é este, está entendendo?

               O advogado deu uma risadinha amarela.

               – Muito fácil provar, bonequinha. No Brasil não há rinocerontes. O Senhor Müller foi o primeiro homem que trouxe um para cá. Esse um fugiu. Em seguida aparece este rinoceronte por aqui. Logo, o presente rinoceronte é o mesmo rinoceronte do referido Senhor Müller.

               – Isso nunca foi prova, nem aqui nem na casa do diabo – contestou Emília. – Quero prova de verdade. Alguma marca, algum sinal de nascença…

               – A marca é aquele chifre único que ele tem na testa – disse o advogado, piscando o olho, como se Emília não soubesse que todos os rinocerontes daquela espécie possuem sempre um chifre só.

               Emília não respondeu. Achou um grande desaforo querer aquele idiota fazê-la de boba. Em vez de responder, disse apenas:

               – Espere aí.

               O advogado esperou, com um sorriso nos lábios, certo de que a tinha vencido na argumentação. Enquanto esperava, ia trocando olhares velhacos com o Senhor Müller.

               Emília foi mexer nos guardados de Pedrinho e trouxe uma pitada de pó de pirlimpimpim num pires.

               – Vamos resolver esta questão dum outro modo – disse ela, ao voltar. – Tenho aqui este tabaco que vou dividir em duas porções. O senhor toma uma pitada e ali o “cara-melada”…

               – Emília!… – repreendeu de novo Dona Benta.

               – … toma outra. Se não espirrarem, é que o rinoceronte é o mesmo que andam procurando.

               O advogado e o alemão acharam muita graça naquilo e, sem desconfiança nenhuma, resolveram tomar a pitada de pó de pirlimpimpim, certos de que não espirrariam. Era dose pequena demais para fazer espirrar dois homões como eles, acostumados ao fumo forte. Tomaram a pitada, sorridentes e… fiunnn! – ninguém nunca soube onde foram parar! Sumiram-se no espaço…

               A vitória da Emília foi saudada com berros e palmas. Até o rinoceronte aplaudiu com urros, contentíssimo do feliz desfecho do incidente.

               Dona Benta deu um suspiro de alívio e voltou ao terreiro. Queria continuar o seu passeio no carrinho. Mas não pôde. Tia Nastácia já estava escarrapachada dentro dele.

               – Tenha paciência – dizia a boa criatura. – Agora chegou minha vez. Negro também é gente, sinhá…

 

1933.

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