Monteiro Lobato – O Saci

O SACI

Capítulos 1, 2, 3 e 4

 

1 –  Em férias

       Quando naquela tarde Pedrinho voltou da escola e disse à Dona Tonica que as férias iam começar dali uma semana, a boa senhora perguntou:

       — E onde quer passar as férias deste ano, meu filho?

       O menino riu-se.

       — Que pergunta, mamãe! Pois onde mais, se não no sítio de vovó.

       Pedrinho não podia compreender férias passadas em outro lugar que não fosse no Sítio do Picapau Amarelo, em companhia de Narizinho, do Marquês de Rabicó, do Visconde de Sabugosa e da Emília. E tinha de ser assim mesmo, porque Dona Benta era a melhor das vovós; Narizinho, a mais galante das primas; Emília, a mais maluquinha de todas as bonecas; o Marquês de Rabicó, o mais rabicó de todos os marqueses; e o Visconde de Sabugosa, o mais “cômodo” de todos os viscondes. E havia ainda tia Nastácia, a melhor quituteira deste e de todos os mundos que existem. Quem comia uma vez os seus bolinhos de polvilho, não podia nem sequer sentir o cheiro de bolos feitos por outras cozinheiras.

       Pedrinho tinha recebido carta de sua prima, dizendo: “Nosso grupo vai este ano completar século e meio de idade e é preciso que você não deixe de vir pelas férias a fim de comemorarmos o grande acontecimento.”

       Esse século e meio de idade era contado assim Dona Benta, 64 anos; tia Nastácia, 66; Narizinho; 8; Pedrinho, 9. Emília, o Marquês e o Visconde, l cada um. Ora, 64 mais 66 mais 8 mais 9 mais 1 mais l mais l, fazem 150 anos, ou seja, um século e meio.

       Logo que recebeu essa carta, Pedrinho fez a conta num papel para ver se a pilhava em erro: mas não pilhou.

        — E uma danada aquela Narizinho! — disse ele. — Não há meio de errar em contas.

 

2 – O sítio de dona Benta

       O sítio de Dona Benta ficava num lugar muito bonito. A casa era das antigas, de cômodos espaçosos e frescos. Havia o quarto de Dona Benta, o maior de todos, e junto o de Narizinho, que morava com sua avó. Havia ainda o “quarto de Pedrinho”, que lá passava as férias todos os anos; e o da tia Nastácia, a cozinheira e o faz-tudo da casa. Emília e o Visconde não tinham quartos; moravam num cantinho do escritório, onde ficavam as três estantes de livros e a mesa de estudo da menina.

       A sala de jantar era bem espaçosa, com janelas dando para o jardim, depois vinha a copa e a cozinha.

       — E sala de visitas? Tinha?

       — Como não? Uma sala de visitas com piano, sofá de cabiúna, de palhinha tão bem esticada que “cantava” quando Pedrinho batia-lhe tapas. Duas poltronas do mesmo estilo e seis cadeiras. A mesa do centro era de mármore e pés também de cabiúna. Encostadas às paredes havia duas meias mesas também de mármore, cheias de enfeites: três casais de içás vestidos, vários caramujos e estrelas-do-mar, duas redomas com velas dentro, tudo colocado sobre os “pertences” de miçangas feitos por Narizinho. Hoje ninguém mais sabe o que é isso. Pertences eram umas rodelas de crochê que havia em todas as casas, para botar bibelôs em cima; para o lavatório de Dona Benta; Narizinho fizera pertences de crochê; e para a sala de visitas fizera aqueles de miçanga de várias cores; da bem miudinha.

       Antes da sala de visitas havia a sala de espera, com chão de grandes ladrilhos quadrados; “cor de chita cor-de-rosa desbotada”. A sala de espera abria para a varanda. Que varanda gostosa! Cercada dum gradil de madeira, muito singelo, pintado de azul-claro. Da varanda descia-se para o terreiro por uma escadinha de seis degraus. Nas férias do ano anterior Pedrinho havia plantado em cada canto da varanda um pé de “cortina japonesa”, uma trepadeira que dá uns fios avermelhados da grossura dum barbante, que depois ficam amarelos e descem até quase ao chão, formando uma verdadeira cortina viva. Aquela varanda estava se transformando em jardim, tantas eram as orquídeas que o menino pendurara lá e os vasos de avenca da miúda que ele foi colocando junto à grade.

       O jardim ficava nos fundos da sala de jantar, um verdadeiro amor de jardim, só de plantas antigas e fora da moda. Flores do tempo da mocidade de Dona Benta; esporinhas, damas-entre-verdes, suspiros, orelhas-de-macaco, dois pés de jasmim-do-cabo, e outro, muito velho, de jasmim-manga. Plantado na calçada e a subir pela parede, o velhíssimo pé de flor-de-cera, planta que os modernos já não plantam porque custa muito a crescer. Até cravo-de-defunto havia lá, flor com que Narizinho se implicava por ter “cheiro de cemitério”. Bem no centro do jardim havia um tanque redondo com uma cegonha de louça, toda esverdeada de limo, a esguichar água pelo bico. Mas a cegonha já estava sem cabeça, em consequência das pelotadas do bodoque de Pedrinho. E um velho regador verde morava perto do tanque, porque era com a água do tanque que tia Nastácia regava as plantas no tempo da seca.

       — E o pomar?

       — O pomar ficava nos fundos da casa, depois do “quintal da cozinha”, onde havia um galinheiro, um tanque de lavar roupa e o puxado da lenha. O poço velho fora fechado depois que Dona Benta mandou encanar a água do morro.

       Passado o quintal vinha o pomar — aquela delícia de pomar!

       — Por que delícia?

       — Porque as árvores eram muito velhas, e árvore quanto mais velha melhor para a beleza e a frescura da sombra. Árvore nova pode ser muito boa para dar frutas bonitas, baixinhas e fáceis de apanhar. Mas para a beleza não há como uma árvore bem velha, bem craquenta, com os galhos revestidos de musgos, liquens e parasitas. Certas árvores do pomar tinham donos. Havia a célebre pitangueira da Emília, as três jabuticabeiras de Pedrinho, a mangueira de manga-espada de Narizinho e os pés de mamão de tia Nastácia. Até o Visconde tinha sua árvore — um pezinho de romã muito feio e raquítico. O resto das árvores não eram de ninguém — eram de todos. E quantas! Cambucazeiros, duas jaqueiras, os pés de cabeluda e grumixama, os três pés de sapotis e aquele de fruta-do-conde que “não ia por diante.”

       Era tão antigo aquele pomar que os vizinhos até caçoavam. Viviam dizendo: “O pomar de Dona Benta está tão velho que qualquer dia se põe a caducar. As jaqueiras começam a dar manga e as mangueiras a dar laranjas.” Mas Dona Benta não fazia caso. Não admitia que se cortasse uma só árvore — nem o pobre pé de frutado-conde encarangado. Dizia que cada uma delas lembrava qualquer coisa da sua meninice ou mocidade.

       — Este pé de laranja-baiana — costumava dizer — foi o primeiro que tivemos aqui, e dele saíram os enxertos dos outros. Naquele tempo laranja-baiana era uma grande novidade. A muda foi presente do defunto Zé das Bichas, um português muito trabalhador que morava numa chácara perto da vila.

       Impossível haver no mundo lugar mais sossegado e fresco, e mais cheio de passarinhos, abelhas e borboletas. Como Dona Benta nunca admitiu por ali nenhum menino de estilingue, a passarinhada se sentia à vontade e fazia seus ninhos como se estivessem na Ilha da Segurança. O próprio bodoque de Pedrinho não funcionava no pomar.

       — E que passarinhos havia?

       — Oh, tantos!… No tempo das laranjas o pomar enchia-se de sabiás de peito vermelho, amigos de cantar a célebre música-de-sabiá que os pais vão ensinando aos filhotes, sempre igualzinha, sem a menor mudança. E havia os sanhaços cor de cinza clara. E as saíras azuis. E as graúnas pretíssimas. E muito canário-da-terra, muito papa-capim, tisio, pintassilgo, rolinha, corruíla…

       As corruílas eram o encanto da menina, que vivia a observar o jeitinho delas no constante escarafunchamento dos muros carunchados em busca de pequenas aranhas e outros bichinhos moles. Bichinho duro corruíla não quer. E sempre com as penas da cauda erguidas, ninguém sabe por quê. Corruílas cor de telha e mansíssimas. Há também a linda corruíla do brejo, que faz aqueles enormes ninhos espinhentos — mas essas nunca apareciam no pomar. Moravam nos brejos.

       Às vezes pousavam lá, de passagem, um ou outro tié-sangue, o passarinho mais lindamente vermelho que existe. Mas não se demoravam. Eram arisquíssimos.

       — Por que, vovó, justamente os passarinhos mais bonitos são os mais ariscos? — perguntou certa vez a menina.

       — Justamente por serem bonitos, minha filha. Os homens perseguem os passarinhos bonitos porque são bonitos — quem quer saber de passarinho feio? Os tico-ticos, por exemplo: vivem na maior paz em todos os terreiros justamente porque ninguém os persegue. São feinhos, os coitados. Mas apareça aqui um tié-sangue, ou uma saíra daquelas lindas: todos se põem atrás deles, querendo apanhá-los vivos ou mortos. Para a felicidade neste nosso mundo, minha filha, não há como ser tico-tico, isto é, feinho e insignificante…

        Mas o rei do pomar era o joão-de-barro. Na paineira grande, bem lá no fundo, moravam dois num ninho feito de argila, em forma de forno de assar pão. Era o casal mais amigo possível. Não se largavam nunca. Onde estava um, também estava por perto o outro. E se por acaso um se afastava um pouco mais, volta e meia soltava uns gritos como quem pergunta: “Onde você está” — e o outro respondia: “Estou aqui”. E de vez em quando cantavam juntos aqueles terrível dueto que mais parece uma série de marteladas estridentes e alegres.

       — Que coisa interessante, vovó! — disse Pedrinho um dia. — Repare que eles sempre cantam ou gritam juntos. Um faz uma parte e outro faz o acompanhamento, como no piano…

       E era assim mesmo. São tão amigos que até para cantar “cantam a duas mãos”, como dizia a boneca.

       Certo ano o casal resolveu construir um ninho novo em outro galho da paineira, e durante quinze dias o divertimento dos meninos foi acompanhar de longe aquele trabalho. Os dois passarinhos traziam da beira do ribeirão um pelote de barro no bico, e ficavam ali a colocar aquela massa no lugar próprio, e a bicá-la cem vezes para que ficasse bem ligadinha. Enquanto um se ocupava naquilo, o outro voava em busca de mais barro. Nunca estavam os dois no mesmo serviço; revezavam-se. À tardinha interrompiam o trabalho, cantavam o dueto com toda a força e depois se acomodavam no ninho velho. Tia Nastácia vivia dizendo que nos domingos eles não trabalhavam, mas infelizmente os meninos não puderam tirar a prova duma coisa tão linda.

        O mais curioso foi que depois de acabado o ninho novo, eles, em vez de se mudarem, resolveram fazer um segundo ninho em cima daquele. Quem primeiro notou isso foi o Visconde, que foi, todo assanhado, contar a Dona Benta.

       — Venham ver — disse o sabuguinho. — Eles terminaram ontem a construção do ninho novo, mas não se mudaram do velho; em vez disso estão a construir um segundo ninho sobre o novo — uma espécie de segundo andar.

       Dona Benta foi com os meninos e viu.

       — Por que será, vovó? — quis saber Pedrinho.

       — Não sei, meu filho, mas eles devem ter lá as suas razões.

       — Eu sei — berrou Emília. — É para alugar!…

       Todos riram-se.

       — Eu acho — disse Narizinho — que é para acomodar os filhotes quando chegarem ao ponto de voar.

       — Isso não — observou Dona Benta. — Porque se os pais construíssem casa para os filhos, estes não aprenderiam a arte da construção e essa arte se perderia. É fazendo que se aprende, já disse o velho Camões

        — Mas então esses passarinhos raciocinam, vovó — têm inteligência…

       — Está claro que têm, meu filho. A inteligência é uma faculdade que aparece em todos os seres, não só no homem. Até as plantas revelam inteligência. O que há é que a inteligência varia muito de grau. É pequeniníssima nas galinhas e nos perus, mas já bem desenvolvida no joão-de-barro — e é um colosso num homem como Isaac Newton, aquele que descobriu a Lei da Gravitação Universal.

       No terreiro do sítio, em frente à varanda, havia sempre um mastro de São João, que Pedrinho fincava na véspera do dia desse santo, a 24 de junho, quando vinha pelas férias. Ele mesmo cortava o pau no mato, ele mesmo o descascava e pintava inteirinho, com arabescos vermelhos, amarelos e azuis. No topo do mastro colocava a “bandeira de São João”, que era um quadrado de sarrafo, espécie de moldura, na qual pregava com tachinhas um retrato de São João meninote com um cordeirinho no braço. Essas bandeiras, estampadas em morim, custavam $1,50 na venda do Elias Turco, lá na estrada.

       O terreiro era vedado por uma cerca de paus-a-pique — rachões de guarantã. Bem no centro ficava a porteira. Para lá da porteira era o pasto, onde havia um célebre cupim de metro e meio de altura; e mais adiante, um velho cedro ainda do tempo da mata virgem. Através do pasto seguia o “caminho” — ou a estrada que ia ter à vila, a légua e meia dali. No fim do pasto, perto da ponte, apareciam a casinha do tio Barnabé e a figueira grande; e bem lá adiante, o Capoeirão dos Tucanos, uma verdadeira mata virgem onde até onça, macucos e jacus havia.

       E que mais? Ah, sim, o ribeirão que passava pela casa do tio Barnabé cortava o pasto e vinha fazer as divisas do pomar com as terras de plantação. Impossível haver no mundo um ribeirão mais lindo, de água mais limpa, com tantas pedrinhas roliças de todas as cores no fundo. Em certos pontos viam-se pequenas praias de areia branca. Nas curvas a água quase que parava, formando os célebres “poços” onde Pedrinho pescava lambaris e bagres. As beiras de água rasa eram a zona dos guarus — o peixinho menor que existe.

       Aos domingos tia Nastácia saía a mariscar de peneira. Os meninos davam pulos de alegria. A boa negra metia-se na água até à cintura e ia descendo o ribeirão, com eles a acompanhá-la da margem, aos gritos.

       — Aqui, Nastácia, aqui nestes capinzinhos…

       A negra, muito cautelosamente, mergulhava a peneira por baixo dos capinzinhos boiantes e suspendia-a de repente, de surpresa. A água escoava-se pelos furos e na peneira aparecia uma porção de vidinhas aquáticas, a saltar e espernejar: guarus barrigudinhos, lambarizinhos novos, pequeninas traíras e de vez em quando um baratão-d’água muito casquento e feio. E outros bichinhos ainda, incompreensíveis e sem nome. Certo dia a peneira trouxe uma cobra-d’água verde, que a negra jogou sob o capim da margem. Foi uma gritaria e uma correria das crianças.

       — Não tenham medo que não é venenosa! — disse a negra rindo-se com toda a gengivada vermelha de fora.

       Mas os meninos não quiseram saber de nada. Ficaram a espiar de longe. A cobra verde foi coleando por entre os capins e se sumiu de novo na água.

       O mais importante daquelas mariscagens eram os camarõezinhos de água doce, moles e transparentes, que tia Nastácia apanhava em quantidade A carregadeira do samburá (a cestinha redondinha que os mariscadores usam para recolher o peixe) era sempre Narizinho. A menina ia passando os camarões da peneira para o samburá, com muito medo de ser mordida. Só os agarrava pelos fios da barba. Pedrinho ria-se: “Boba! Onde se veem camarão morder?” E ela: “A gente nunca sabe…”

       No jantar daqueles domingos, quando aparecia na mesa o prato-travessa cheio de camarõezinhos fritos, bem pururucas e vermelhos, as crianças até sapateavam de gosto. E se com os camarõezinhos vinha alguma pequena traíra ou bagre, a disputa era certa.

       — A traíra é minha! — berrava um.

       — É minha, é minha! — gritava outro.

       O remédio era sempre uma das célebres sentenças de Salomão de Dona Benta.

       — Como vocês são dois e a traíra é uma só, eu como a traíra e vocês repartem os camarões.

       Cessava incontinenti a disputa, e a travessa de camarão ia diminuindo, diminuindo, até não ficar nem um fio de barba.

 

3 – Medo de Saci

       Pedrinho, naqueles tempos, costumava passar as férias no sítio de Dona Benta, onde brincava de tudo, como está nas REINAÇÕES de Narizinho e na VIAGEM AO CÉU. Só não está contado o que lhe aconteceu antes da famosa viagem ao céu, quando andava com a cabeça cheia de sacis.

       A coisa foi assim. Estava ele na varanda com os olhos no horizonte, postos lá onde aparecia o verde-escuro do Capoeirão dos Tucanos, a mata virgem do sítio. De repente, disse:

       — Vovó, eu ando com ideias de ir caçar na mata virgem.

       Dona Benta, ali na sua cadeirinha de pernas cotós, entretida no tricô, ergueu os óculos para a testa.

       — Não sabe que naquela mata há onças? — disse com ar sério — Certa vez uma onça pintada veio de lá, invadiu aqui o pasto e pegou um lindo novilho da vaca Mocha.

       — Mas eu não tenho medo de onça, vovó! — exclamou Pedrinho, fazendo o mais belo ar de desprezo.

       Dona Benta riu-se de tanta coragem.

       — Olhem o valentão! Quem foi que naquela tarde entrou aqui berrando com uma ferroada de vespa na ponta do nariz?

       — Sim, vovó, de vespa eu tenho medo, não nego — mas de onça, não! Se ela vier do meu lado, prego-lhe uma pelotada do meu bodoque novo no olho esquerdo; e outra bem no meio do focinho e outra…

       — Chega! — interrompeu Dona Benta, com medo de levar também uma pelotada. — Mas além de onças existem cobras. Dizem que até urutus há naquele mato.

       — Cobra? — e Pedrinho fez outra cara de pouco caso ainda maior. — Cobra mata-se com um pedaço de pau, vovó. Cobra!… Como se eu lá tivesse medo de cobra…

       Dona Benta começou a admirar a coragem do neto, mas disse ainda:

       — E há aranhas caranguejeiras, daquelas peludas, enormes, que devoram até filhotes de passarinho.

       O menino cuspiu de lado com desprezo e esfregou o pé em cima.

       — Aranha mata-se assim, vovó — e seu pé parecia mesmo estar esmagando várias aranhas caranguejeiras.

       — E também há sacis — rematou Dona Benta.

       Pedrinho calou-se. Embora nunca o houvesse confessado a ninguém, percebia-se que tinha medo de saci. Nesse ponto não havia nenhuma diferença entre ele, que era da cidade, e os demais meninos nascidos e crescidos na roça. Todos tinham medo de saci, tais eram as histórias correntes a respeito do endiabrado moleque duma perna só.

       Desde esse dia ficou Pedrinho com o saci na cabeça. Vivia falando em saci e tomando informações a respeito. Quando consultou tia Nastácia, a resposta da negra foi, depois de fazer o pelo-sinal e dizer “Credo!”.

       — Pois saci, Pedrinho, é uma coisa que branco da cidade nega, diz que não há — mas há. Não existe negro velho por aí, desses que nascem e morrem no meio do mato, que não jure ter visto saci. Nunca vi nenhum, mas sei quem viu.

       — Quem?

       — O tio Barnabé. Fale com ele. Negro sabido está ali! Entende de todas as feitiçarias, e de saci, de mula-sem-cabeça, de lobisomem — de tudo.

       Pedrinho ficou pensativo.

 

4 – Tio Barnabé

       Tio Barnabé era um negro de mais de oitenta anos que morava no rancho coberto de sapé lá junto da ponte. Pedrinho não disse nada a ninguém e foi vê-lo. Encontrou-o sentado, com o pé direito num toco de pau, à porta de sua casinha, aquentando sol.

       —Tio Barnabé eu vivo querendo saber duma coisa e ninguém me conta direito. Sobre o saci. Será mesmo que existe saci?

       O negro deu uma risada gostosa e, depois de encher de fumo picado o velho pito, começou a falar:

       — Pois, Seu Pedrinho, saci é uma coisa que eu juro que “exéste”. Gente da cidade não acredita — mas “exéste”. A primeira vez que vi saci eu tinha assim a sua idade. Isso foi no tempo da escravidão, na Fazenda do Passo Fundo, que era do defunto Major Teotônio, pai desse Coronel Teodorico, compadre de sua avó, Dona Benta. Foi lá que vi o primeiro saci. Depois disso, quantos e quantos!…

       — Conte, então, direitinho, o que é o saci. Bem tia Nastácia me disse que o senhor sabia — que o senhor sabe tudo…

       — Como não hei de saber tudo, menino, se já tenho mais de oitenta anos? Quem muito “véve”, muito sabe…

       — Então conte. Que é, afinal de contas, o tal saci?

       E o negro contou tudo direitinho.

       — O saci — começou ele — é um diabinho de uma perna só que anda solto pelo mundo, armando reinações de toda sorte e atropelando quanta criatura existe. Traz sempre na boca um pito aceso, e na cabeça uma carapuça vermelha. A força dele está na carapuça, como a força de Sanção estava nos cabelos. Quem consegue tomar e esconder a carapuça de um saci fica por toda vida senhor de um pequeno escravo.

       — Mas que reinações ele faz? — indagou o menino.

       — Quantas pode — respondeu o negro. — Azeda o leite, quebra a ponta das agulhas, esconde as tesourinhas de unha, embaraça os novelos de linha, faz o dedal das costureiras cair nos buracos, bota moscas na sopa, queima o feijão que está no fogo, gora os ovos das ninhadas. Quando encontra um prego, vira ele de ponta pra riba para que espete o pé do primeiro que passa. Tudo que numa casa acontece de ruim é sempre arte do saci. Não contente com isso, também atormenta os cachorros, atropela as galinhas e persegue os cavalos no pasto, chupando o sangue deles. O saci não faz maldade grande, mas não há maldade pequenina que não faça.

       — E a gente consegue ver o saci?

       — Como não? Eu, por exemplo, já vi muitos. Ainda no mês passado andou por aqui um saci mexendo comigo — por sinal que lhe dei uma lição de mestre…

       — Como foi? Conte…

       Tio Barnabé contou.

       — Tinha anoitecido e eu estava sozinho em casa, rezando as minhas rezas. Rezei, e depois me deu vontade de comer pipoca. Fui ali no fumeiro e escolhi uma espiga de milho bem seca. Debulhei o milho numa caçarola, pus a caçarola no fogo e vim para este canto picar fumo pro pito. Nisto ouvi no terreiro um barulhinho que não me engana. “Vai ver que é saci!” — pensei comigo. — E era mesmo. Dali a pouco um saci preto que nem carvão, de carapuça vermelha e pitinho na boca, apareceu na janela. Eu imediatamente me encolhi no meu canto e fingi que estava dormindo. Ele espiou de um lado e de outro e por fim pulou para dentro. Veio vindo, chegou pertinho de mim, escutou os meus roncos e convenceu-se de que eu estava mesmo dormindo. Então começou a reinar na casa. Remexeu tudo, que nem mulher velha, sempre farejando o ar com o seu narizinho muito aceso. Nisto o milho começou a chiar na caçarola e ele dirigiu-se para o fogão. Ficou de cócoras no cabo da caçarola, fazendo micagens. Estava “rezando” o milho, como se diz. E adeus, pipoca! Cada grão que o saci reza não rebenta mais, vira piruá.

       Dali saiu pra bulir numa ninhada de ovos que a minha carijó calçuda estava chocando num balaio velho, naquele canto. A pobre galinha quase que morreu de susto. Fez cró, cró, cró… e voou do ninho feito uma louca, mais arrepiada que um ouriço-cacheiro. Resultado: o saci rezou os ovos e todos goraram.

       Em seguida pôs-se a procurar o meu pito de barro Achou o pito naquela mesa, pôs uma brasinha dentro e paque, paque, paque… tirou justamente sete fumaçadas. O saci gosta muito do número sete.

       Eu disse cá comigo: “Deixe estar, coisa-ruinzinho, que eu ainda apronto uma boa para você. Você há de voltar outro dia e eu te curo.”

       E assim aconteceu. Depois de muito virar e mexer, o sacizinho foi-se embora e eu fiquei armando o meu plano para assim que ele voltasse.

       — E voltou? — inquiriu Pedrinho.

       — Como não? Na sexta-feira seguinte apareceu aqui outra vez às mesmas horas. Espiou da janela, ouviu os meus roncos fingidos, pulou para dentro. Remexeu em tudo, como da primeira vez, e depois foi atrás do pito que eu tinha guardado no mesmo lugar. Pôs o pito na boca e foi ao fogão buscar uma brasinha, que trouxe dançando nas mãos.

       — É verdade que ele tem as mãos furadas?

       — É, sim. Tem as mãos furadinhas bem no centro da palma; quando carrega brasa, vem brincando com ela, fazendo ela passar de uma para a outra mão pelo furo. Trouxe a brasa, pôs a brasa no pito e sentou-se de pernas cruzadas para fumar com todo o seu sossego.

       — Como? — exclamou Pedrinho arregalando os olhos. — Como cruzou as pernas, se saci tem uma perna só?

       — Ah, menino, mecê não imagina como saci é arteiro!… Tem uma perna só, sim, mas quando quer cruza as pernas como se tivesse duas! São coisas que só ele entende e ninguém pode explicar. Cruzou as pernas e começou a tirar baforadas, uma atrás da outra, muito satisfeito da vida. Mas de repente, puff! Aquele estouro e aquela fumaceira!… O saci deu tamanho pinote que foi parar lá longe, e saiu ventando pela janela a fora.

       Pedrinho fez cara de quem não entende.

       — Mas que puff foi esse? — perguntou. — Não estou entendendo…

       — É que eu tinha socado pólvora no fundo do pito — exclamou tio Barnabé dando uma risada gostosa. A pólvora explodiu justamente quando ele estava tirando a fumaçada número sete, e o saci, com a cara toda sapecada, raspou-se para nunca mais voltar.

       — Que pena — exclamou Pedrinho. — Tanta vontade que eu tinha de conhecer esse saci…

       — Mas não há só um saci no mundo, menino. Esse lá se foi e nunca mais aparece por estas bandas, mas quantos outros não andam por aí? Ainda na semana passada apareceu um no pasto de Seu Quincas Teixeira e chupou o sangue daquela égua baia que tem uma estrela na testa.

       — Como é que ele chupa o sangue dos animais?

       — Muito bem. Faz um estribo na crina, isto é, dá uma laçada na crina do animal de modo que possa enfiar o pé e manter-se em posição de ferrar os dentes numa das veias do pescoço e chupar o sangue, como fazem os morcegos. O pobre animal assusta-se e sai pelos campos na disparada, correndo até não poder mais. O único meio de evitar isso é botar bentinho no pescoço dos animais.

       — Bentinho é bom?

       — É um porrete. Dando com cruz ou bentinho pela frente, saci fede enxofre e foge com botas-de-sete-léguas.

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