Monteiro Lobato – O Saci

O SACI

Capítulos 5, 6, 7 e 8

 5 – Pedrinho pega um saci

       Tão impressionado ficou Pedrinho com esta conversa que dali por diante só pensava em saci, e até começou a enxergar sacis por toda parte. Dona Benta caçoou, dizendo:

       — Cuidado! Já vi contar a história de um menino que, de tanto pensar em saci acabou virando saci…

       Pedrinho não fez caso da história, e um dia, enchendo-se de coragem, resolveu pegar um. Foi de novo em procura do tio Barnabé.

       — Estou resolvido a pegar um saci — disse ele — e quero que o senhor me ensine o melhor meio.

       Tio Barnabé riu-se daquela valentia.

       — Gosto de ver um menino assim. Bem mostra que é neto do defunto sinhô velho, um homem que não tinha medo nem de mula-sem-cabeça. Há muitos jeitos de pegar saci, mas o melhor é o de peneira. Arranja-se uma peneira de cruzeta…

       — Peneira de cruzeta? — interrompeu o menino. — Que é isso?

       — Nunca reparou que certas peneiras têm duas taquaras mais largas que se cruzam bem no meio e servem para reforço? Olhe aqui — e tio Barnabé mostrou ao menino uma das tais peneiras que estava ali num canto. Pois bem, arranja-se uma peneira destas e fica-se esperando um dia de vento bem forte, em que haja rodamoinho de poeira e folhas secas. Chegada essa ocasião, vai-se com todo o cuidado para o rodamoinho e zás! — joga-se a peneira em cima. Em todos os rodamoinhos há saci dentro, porque fazer rodamoinhos é justamente a principal ocupação dos sacis neste mundo.

       — E depois?

       — Depois, se a peneira foi bem atirada e o saci ficou preso, é só dar jeito de botar ele dentro de uma garrafa e arrolhar muito bem. Não esquecer de riscar uma cruzinha na rolha, porque o que prende o saci na garrafa não é a rolha e sim a cruzinha riscada nela. É preciso ainda tomar a carapucinha dele e a esconder bem escondida. Saci sem carapuça é como cachimbo sem fumo. Eu já tive um saci na garrafa, que me prestava muitos bons serviços. Mas veio aqui um dia aquela mulatinha sapeca que mora na casa do compadre Bastião e tanto lidou com a garrafa que a quebrou. Bateu logo um cheirinho de enxofre. O perneta pulou em cima da sua carapuça, que estava ali naquele prego, e “até logo, tio Barnabé!”

       Depois de tudo ouvir com a maior atenção, Pedrinho voltou para casa decidido a pegar um saci, custasse o que custasse. Contou o seu projeto a Narizinho e longamente discutiu com ela sobre o que faria no caso de escravizar um daqueles terríveis capetinhas. Depois de arranjar uma boa peneira de cruzeta, ficou à espera do dia de São Bartolomeu, que é o mais ventoso do ano.

       Custou a chegar esse dia, tal era sua impaciência, mas afinal chegou, e desde muito cedo Pedrinho foi postar-se no terreiro, de peneira em punho, à espera de rodamoinhos. Não esperou muito tempo. Um forte rodamoinho formou-se no pasto e veio caminhando para o terreiro.

       — É hora! — disse Narizinho. — Aquele que vem vindo está com muito jeito de ter saci dentro.

       Pedrinho foi se aproximando pé ante pé e, de repente, zás! — jogou a peneira em cima.

       — Peguei! — gritou no auge da emoção, debruçando-se com todo o peso do corpo sobre a peneira emborcada. — Peguei o saci!…

       A menina correu a ajudá-lo.

       — Peguei o saci! — repetiu o menino vitoriosamente. — Corra, Narizinho, e traga-me aquela garrafa escura que deixei na varanda. Depressa!

       A menina foi num pé voltou noutro.

       — Enfie a garrafa dentro da peneira — ordenou Pedrinho — enquanto eu cerco dos lados. Assim! Isso!…

       A menina fez como ele mandava e com muito jeito a garrafa foi introduzida dentro da peneira.

       — Agora tire do meu bolso a rolha que tem uma cruz riscada em cima — continuou Pedrinho. — Essa mesma. Dê cá.

       Pela informação do tio Barnabé, logo que a gente põe a garrafa dentro da peneira o saci por si mesmo, entra dentro dela, porque, como todos os filhos das trevas, tem a tendência de procurar sempre o lugar mais escuro. De modo que Pedrinho o mais que tinha a fazer era arrolhar a garrafa e erguer a peneira. Assim fez, e foi com o ar de vitória de quem houvesse conquistado um império que levantou no ar a garrafa para examiná-la contra a luz.

       Mas a garrafa estava tão vazia como antes. Nem sombra de saci dentro…

       A menina deu-lhe uma vaia e Pedrinho, muito desapontado, foi contar o caso ao tio Barnabé.

       — E, assim mesmo — explicou o negro velho. — Saci na garrafa é invisível. A gente só sabe que ele está lá dentro quando a gente cai na modorra. Num dia bem quente, quando os olhos da gente começam a piscar de sono, o saci pega a tomar forma, até que fica perfeitamente visível. E desse momento em diante que a gente faz dele o que quer. Guarde a garrafa bem fechada, que garanto que o saci está dentro dela.

       Pedrinho voltou para casa orgulhosíssimo com a sua façanha.

       — O saci está aqui dentro, sim — disse ele a Narizinho, — Mas está invisível, como me explicou tio Barnabé. Para a gente ver o capetinha é preciso cair na modorra — e repetiu as palavras que o negro lhe dissera.

       Quem não gostou da brincadeira foi a pobre tia Nastácia. Como tinha um medo horrível de tudo quanto era mistério, nunca mais chegou nem na porta do quarto de Pedrinho.

       — Deus me livre de entrar num quarto onde há garrafa com saci dentro! Credo! Nem sei como Dona Benta consente semelhante coisa em sua casa. Não parece ato de cristão…

 

6 – A modorra

       Um dia Pedrinho enganou Dona Benta que ia visitar o tio Barnabé, mas em vez disso tomou o rumo da mata virgem de seus sonhos. Nem o bodoque levou consigo. “Para que bodoque, se levo o saci na garrafa e ele é uma arma melhor do que quanto canhão ou metralhadora existe?”

       Que beleza! Pedrinho nunca supôs que uma floresta virgem fosse tão imponente. Aquelas árvores enormes, velhíssimas, barbadas de musgos e orquídeas; aquelas raízes de fora dando ideia de monstruosas sucuris; aqueles cipós torcidos como se fossem redes; aquela galharada, aquela folharada e sobretudo aquele ambiente de umidade e sombra, lhe causaram uma impressão que nunca mais se apagou.

       Volta e meia ouvia um rumor estranho, de inambu ou jacu a esvoaçar por entre a folhagem, ou então, de algum galho podre que tombava do alto e vinha num estardalhaço — brah, ah, ah… — esborrachar-se no chão.

       E quantas borboletas, das azuis, como cauda de pavão; das cinzentas, como casca de pau; das amarelas, cor de gema de ovo!

       E pássaros! Ora um enorme tucano de bico maior que o corpo e lindo papo amarelo. Ora um pica-pau, que interrompia o seu trabalho de bicar a madeira de um tronco para atentar no menino com interrogativa curiosidade.

       Até um bando de macaquinhos ele viu, pulando de galho em galho com incrível agilidade e balançando-se, pendurados pela cauda, como pêndulos de relógio.

       Pedrinho foi caminhando pela mata adentro até alcançar um ponto onde havia uma água muito límpida, que corria, cheia de barulhinhos mexeriqueiros, por entre velhas pedras verdoengas de limo. Em redor erguiam-se as esbeltas samambaiaçus, esses fetos enormes que parecem palmeiras. E quanta avenca de folhagem mimosa, e quanto musgo pelo chão!

       Encantado com a beleza daquele sítio, o menino parou para descansar. Juntou um monte de folhas caídas; fez cama; deitou-se de barriga para o ar e mãos cruzadas na nuca. E ali ficou num enlevo que nunca sentira antes, pensando em mil coisas em que nunca pensara antes, seguindo o voo silencioso das grandes borboletas azuis e embalando-se com o chiar das cigarras.     

       De repente notou que o saci dentro da garrafa fazia gestos de quem quer dizer qualquer coisa.

       Pedrinho não se admirou daquilo. Era tão natural que o capetinha afinal aparecesse…

       — Que aconteceu que está assim inquieto, meu caro saci? — perguntou-lhe em tom brincalhão.

       — Aconteceu que este lugar é o mais perigoso da floresta; e que se a noite pilhar você aqui, era uma vez o neto de Dona Benta…

       Pedrinho sentiu um arrepio correr-lhe pelo fio da espinha.

       — Por quê? — perguntou, olhando ressabiadamente para todos os lados.

       — Porque é justamente aqui o coração da mata, ponto de reunião de sacis, lobisomens, bruxas, caiporas e até da mula-sem-cabeça. Sem meu socorro você estará perdido, porque não há mais tempo para voltar para casa, nem você sabe o caminho. Mas o meu auxílio eu só darei sob uma condição…

       — Já sei, restituir a carapuça — adiantou Pedrinho.

       — Isso mesmo. Restituir-me a carapuça e com ela a liberdade. Aceita?

       Que remédio? Pedrinho sentia muito ver-se obrigado a perder um saci que tanto lhe custara a apanhar, mas como não tinha outro remédio senão ceder, jurou que o libertaria se o saci o livrasse dos perigos da noite e pela manhã o reconduzisse, são e salvo, à casa de Dona Benta.

       — Muito bem — disse o saci. — Mas nesse caso você tem de abrir a garrafa e me soltar. Terei assim mais facilidade de ação. Você jurou que me liberta; eu dou minha palavra de saci que mesmo solto o ajudarei em tudo. Depois o acompanharei até o sítio para receber minha carapuça e despedir-me de todos.

       Pedrinho soltou o saci e durante o resto da aventura tratou-o mais como um velho camarada do que como um escravo. Assim que se viu fora da garrafa, o capeta pôs-se a dançar e a fazer cabriolas com tanto prazer que o menino ficou arrependido de por tantos dias ter conservado presa uma criaturinha tão irrequieta e amiga da liberdade.

       — Vou revelar os segredos da mata virgem — disse-lhe o saci — e talvez seja você a primeira criatura humana a conhecer tais segredos. Para começar, temos de ir ao “sacizeiro” onde nasci, onde nasceram meus irmãos e onde todos os sacis se escondem durante o dia, enquanto o sol está fora. O sol é o nosso maior inimigo. Seus raios espantam-nos para as tocas escuras. Somos os eternos namorados da lua. É por isso que os poetas nos chamam de filhos das trevas. Sabe o que é trevas?

       — Sei. O escuro, a escuridão.

       — Pois é isso. Somos filhos das trevas, como os beija-flores, os sabiás e as abelhas são filhos do Sol.

       Assim falando, o saci levou o menino para uma cerrada moita de taquaraçus existente num dos pontos mais espessos da floresta.

       Pedrinho assombrou-se diante das dimensões daqueles gomos quase da sua altura e grossos que nem uma laranja de umbigo.

 

7 – A sacizada      

       — É aqui, dentro destes gomos, que se geram e crescem meus irmãos de uma perna só — disse o saci. — Quando chegam em idade de correr mundo, furam os gomos e saltam fora. Repare quantos gomos furados. De cada um deles já saiu um saci.

       Pedrinho viu que era exato o que ele dizia, mostrou desejos de abrir um gomo para espiar um sacizinho novo ainda preso lá dentro.

       — Vou satisfazer a sua curiosidade, Pedrinho, mas não posso revelar o segredo de furar os gomos; portanto, vire-se de costas.

       O menino virou-se de costas, assim ficando até que o saci dissesse — “Pronto!” Só então desvirou-se e com grande admiração viu aberta num gomo uma perfeita janelinha.

       — Posso espiar? — perguntou.

       — Espie, mas com um olho só — respondeu o saci. — Se espiar com os dois, o sacizinho acorda e joga nos seus olhos a brasa do pitinho.

       O menino assim fez. Espiou com um olho só e viu um sacizinho do tamanho de um camundongo já de pitinho aceso na boca e carapucinha na cabeça. Estava todo encolhido no fundo do gomo.

       — Que galanteza! — exclamou Pedrinho. — Que pena o povo lá de casa não estar aqui para ver esta maravilha!

       — Esse sacizinho ainda fica aí durante quatro anos. A conta da nossa vida dentro dos gomos são de sete anos. Depois saímos para viver no mundo setenta e sete anos justos. Alcançando essa idade viramos cogumelos venenosos, ou orelhas-de-pau.

       Pedrinho regalou-se de contemplar o sacizinho adormecido e ali ficaria horas se o saci não puxasse pela manga.

       — Chega — disse ele. — Vire-se de costas outra vez, que é tempo de fechar a janelinha.

       Pedrinho obedeceu, e quando de novo olhou não conseguiu perceber no gomo do taquaruçu o menor sinal da janelinha.

       Justamente nesse instante um formidável miado de gato feriu os seus ouvidos.

       — É o jaguar! — exclamou o saci. — Trepemos depressa numa árvore, porque ele vem vindo nesta direção.

       Pedrinho, tomado de pânico, fez gesto de subir na primeira árvore que viu à sua frente, um velho jacarandá coberto de barbas-de-pau.

       — Nessa, não! —berrou o saci. — É muito grossa; o jaguar treparia atrás de nós. Temos que escolher uma de casca bem lisa e tronco esguio. Aquele guarantã ali está ótimo — concluiu, apontando para uma árvore bastante alta e magrinha de tronco, que se via à esquerda.

       Subiram — e nunca em sua vida Pedrinho subiu tão depressa em uma árvore! Tinha a impressão de que o terrível tigre dos sertões estava atrás dele, já de boca aberta, para o engolir vivo. Mas era ilusão apenas, filha do medo, pois a fera miou outra vez e o saci calculou pelo som que ainda deveria estar a cem metros dali. Pedrinho ajeitou-se como pôde numa forquilha da árvore, lá ficando quietinho ao lado do saci.

       Preparou-se para ver uma fera sobre a qual vivia falando mas sem ter a respeito ideia justa. Ia ver a famosa onça-pintada, esse gatão que muito lembra a pantera das matas da Índia.

 

8 – A onça

       O miado soou de novo, desta vez bem perto, e logo depois surgiu, por entre as folhas a cabeça de uma formidável onça-pintada. Era um animal de extrema beleza, quase tão grande como o tigre de Bengala. Parou; farejou o ar. Depois ergueu os olhos para a árvore. Dando com o menino e o saci lá em cima, soltou um rugido de satisfação, como quem diz: “Achei o meu jantar!” E tentou subir à árvore. Vendo que isso lhe era impossível, sacudiu o tronco tão violentamente que por um triz Pedrinho não veio abaixo, como se fosse jaca madura. Mas não caiu, e a onça, desanimada, resolveu esperar que ele descesse. Sentou-se nas patas traseiras e ali ficou quieta, só movendo a cauda e passando de quando em quando a língua pelos beiços.

       — Ela é capaz de permanecer nessa posição três dias e três noites — disse o saci. — Temos que inventar um meio de afugentá-la.

       Olhou em redor, examinando as árvores como quem está com uma ideia na cabeça. Depois saltou para a mais próxima e foi de copa em copa até uma que estava cheia de grandes vagens. Escolheu meia dúzia das mais secas e voltou para junto do menino.

       — Apare nas mãos o pó que vou deixar cair destas vagens — disse ele, abrindo com os dentes uma delas.

       Pedrinho estendeu as mãos em forma de cuia e o saci sacudiu dentro um pó amarelado. O mesmo foi feito com as outras vagens.

       — Bem. Agora derrame este pó bem a prumo, de modo que vá cair sobre a cara da onça.

       Pedrinho colocou-se em linha vertical com á fera e derramou de um jato o pó amarelo.

       Foi uma beleza aquilo! Quando o pó caiu sobre os olhos da onça, ela deu tamanho pinote que foi parar a cinco metros de distância, sumindo-se em seguida pelo mato adentro, a urrar de dor e a esfregar os olhos como se quisesse arrancá-los.

       Pedrinho deu uma risada gostosa. — Que diabo de pó é este, amigo saci? — perguntou. — Vejo que vale mais que uma boa carabina…

       — Isso se chama pó-de-mico. Arde nos olhos como pimenta e dá na pele uma tal coceira que a vítima até se coçara com um ralo de ralar coco, se o tiver ao alcance da mão.

       Pedrinho escorregou da árvore abaixo, ainda a rir-se da pobre onça. Mas não se riu por muito tempo. Mal tinha dado alguns passos, recuou espavorido.

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