Monteiro Lobato – O Saci

O SACI

Capítulos 25, 26, 27 e 28 (fim)

 

25 – O pingo dágua

A cólera da Cuca foi medonha. Deu um urro de ouvir-se a dez léguas dali, tamanho e tão horrendo que por um triz Pedrinho não disparou na corrida. E outro urro, e outro, e mais de cem.

— Berre, demônio! — gritou o saci.—Berre até rebentar. Pingo d’água não tem ouvidos, nem tem pressa. Esse que botei pingando nessa horrenda caraça vai divertir-se em pingar no mesmo lugarzinho por cem anos, se for preciso. Sei que Cuca é bicho duro, mas quero ver se pode com um pingo d’água que não tem pressa nenhuma, nem tem outra coisa a fazer na vida senão pingar, pingar, pingar…

A dor que a queda de um pingo atrás do outro já estava causando nos miolos da bruxa começava a crescer ponto por ponto. Cada novo pingo era um ponto mais de dor. Naquele andar ela não suportaria o suplício nem um mês, quanto mais os cem anos com que a ameaçara o saci.

— Parem com esse pingo d’água! — berrou a bruxa.

— Parar? Tinha graça! Se estamos apenas começando, como quer você que paremos? Já arrumei tudo, de modo que o pingo pingue durante cem anos, e se não for suficiente, arranjarei as coisas de modo que depois desses cem anos pingue outros cem. Duzentos anos de pingo na testa parece-me uma boa conta, não acha?

A Cuca ainda urrou como cem mil onças feridas, e espumou de cólera, e ameaçou céus e terras. Por fim viu que estava fazendo papel de boba, pois havia encontrado afinal um adversário mais inteligente do que ela; e disse:

— Parem com este pingo que já está me pondo louca! Tenham dó duma pobre velha…

— Pobre velha! A coitadinha… Quem não a conhece que a compre, bruxa duma figa! Só pararemos com a água se você nos contar o que fez de Narizinho.

— Hum! — exclamou a bruxa, percebendo afinal a causa de tudo aquilo. — Já sei…

— Pois se sabe, desembuche. Do contrário, a sua sina está escrita; há de morrer no maior suplício que existe. E nada de tentar enganar-nos. É melhor ir dizendo onde está a menina, o mais depressa possível.

— Farei o que quiserem, mas primeiro hão de desviar de minha testa este maldito pingo que me está deixando louca.

— Assim será feito — disse o saci trepando de novo às estalactites e desviando o fiozinho d’água para um lado.

A Cuca deu um suspiro de alívio. Tomou fôlego, descansou um bocado; depois disse:

— Encantei essa menina que vocês procuram, mas só poderei romper o encanto se vocês me trouxerem um fio de cabelo da Iara. Sem isso é impossível.

— Não seja essa a dúvida — respondeu o saci. Iremos buscar o fio de cabelo da Iara. Mas, se ao voltarmos, você não quebrar o encanto, juro que deixarei o pingo pingar nessa testa horrenda, não cem anos, mas cem mil anos, está ouvindo?

E, dizendo isto, tomou Pedrinho pela mão e retirou-se com ele da caverna.

 

26 – A Iara

— Vamos à cachoeira onde mora a Iara — disse. — Essa rainha das águas costuma aparecer sobre as pedras nas noites de lua. E muito possível que possamos surpreendê-la a pentear os seus lindos cabelos verdes com o pente de ouro que usa.

— Dizem que é criatura muito perigosa — murmurou Pedrinho.

— Perigosíssima — declarou o saci. — Todo o cuidado é pouco. A beleza da Iara dói tanto na vista dos homens que os cega e os puxa para o fundo d’água. A Iara tem a mesma beleza venenosa das sereias. Você vai fazer tudo direitinho como eu mandar. Do contrário, era uma vez o neto de Dona Benta!…

Pedrinho prometeu obedecer-lhe cegamente.

Andaram, andaram, andaram. Por fim chegaram a uma grande cachoeira cujo ruído já vinham ouvindo de longe.

— É ali — disse o perneta apontando. — É ali que ela costuma vir pentear-se ao luar. Mas você não pode vê-la. Tem de ficar bem quietinho, escondido aqui atrás desta pedra e sem licença de pôr os olhos na Iara. Se não fizer assim, há de arrepender-se amargamente. O menos que poderá acontecer é ficar cego.

Pedrinho prometeu, e de medo de não cumprir o prometido foi logo tapando os olhos com as mãos.

O saci partiu, saltando de pedra em pedra, para logo desaparecer por entre as moitas de samambaias e begônias silvestres.

Vendo-se só, Pedrinho arrependeu-se de haver prometido conservar-se de olhos fechados. Já tinha visto o Lobisomem, o Caipora, o Curupira, a Cuca. Por que não havia de ver a Iara também? O que diziam do poder fatal dos seus encantos certamente que era exagero. Além disso, poderia usar um recurso: espiar com um olho só. O gosto de contar a toda gente que tinha visto a famosa Iara valia bem um olho.

Assim pensando, e não podendo por mais tempo resistir à tentação, fez como o saci: foi pulando de pedra em pedra, seguindo o mesmo caminho por ele seguido.

Súbito, estacou, como fulminado pelo raio. Ao galgar uma pedra mais alta do que as outras, viu, a cinquenta metros de distância, uma ninfa de deslumbrante beleza, em repouso numa pedra verde de limo, a pentear com um pente de ouro os longos cabelos verdes cor do mar. Mirava-se no espelho das águas, que naquele ponto formava uma bacia de superfície parada. Em torno dela centenas de vaga-lumes descreviam círculos no ar eram a coroa viva da rainha das águas. Joia bela assim, pensou Pedrinho, nenhuma rainha da terra jamais possuiu. A tonteira que a vista de Iara causa nos mortais tomou conta dele. Esqueceu até do seu plano de olhar com um olhe só. Olhava com os dois, arregaladíssimos, e cem olhos que tivesse, com todos os cem olharia.

Enquanto isso, ia o saci se aproximando da mãe-d’água, cautelosamente, com infinitos de astúcia para que ela nada percebesse. Quando chegou a poucos metros de distância, deu um pulo de gato e nhoque! furtou-lhe um fio de cabelo.

O susto da Iara foi grande. Desferiu um grito e precipitou-se nas águas, desaparecendo.

O saci não esperou por mais. Com espantosa agilidade de macaco, aos pinotes, saltando as pedras de duas em duas, de três em três, num momento se achou no ponto onde Pedrinho, ainda no deslumbramento da beleza, jazia de olhos arregalados, imóvel, feito uma estátua.

— Louco! — exclamou o saci lançando-se a ele esfregando-lhe nos olhos um punhado de folha colhidas no momento. — Não fosse o acaso ter posto aqui ao meu alcance esta planta maravilhosa e você estaria perdido para sempre. Louco, dez vezes louco, louquíssimo, que você é, Pedrinho! Por que me desobedeceu

— Não pude resistir — respondeu o menino logo que a fala lhe voltou. — Era tão linda, tão linda, tão linda, que me considerei feliz de perder até os dois olhos em troca do encantamento de contemplá-la por uns segundos.

— Pois saiba que cometeu uma grande falta. Não devia pensar unicamente em si, mas também na pobre Dona Benta, que é tão boa, e na sua mãe e em Narizinho. Eu, apesar de um simples saci, tenho melhor cabeça do que você, pelo que estou vendo…

Aquelas palavras calaram no menino, que nada teve a dizer, achando que realmente o saci tinha toda razão.

— Bem — continuou o duendezinho — agora que o perigo já passou, trataremos de voltar à caverna da Cuca. E depressa, antes que amanheça. Lembre-se que prometemos a Dona Benta estar no sítio com a menina sumida logo ao romper da manhã.

 

27 – Na caverna da Cuca

Voltando os dois na maior pressa para os domínios da Cuca, encontraram-na com um estranho ar de riso na horrenda boca, a falar sozinha, como se estivesse muito satisfeita da vida. Assim, porém, que os viu de novo por lá, a bruxa estremeceu e o seu sorriso transformou-se numa careta de cólera e desespero.

— Conseguiram voltar? — exclamou traindo os seus maus pensamentos.

— Está claro que sim! — respondeu o saci.

— E trouxeram o fio de cabelo da Iara?

— Está claro que sim! — repetiu o saci. — Ei-lo aqui, disse, apresentando à horrenda megera o verde fio de cabelo da mãe d’água.

A Cuca estorceu-se toda dentro do novelo de cipós num supremo arranco para libertar-se daquela prisão. Nada conseguindo, pôs-se a vociferar e a soltar pela horrível boca uma espuma venenosa.

Aquela história da Iara e do fio de cabelo tinha sido apenas um embuste de que lançara mão para perder o saci e menino, na certeza de que nenhum deles resistiria aos encantos da Iara. Mas vendo que se tinha enganado, debatia-se no maior acesso de cólera e desespero, sentindo-se completamente vencida. E por quem! Por um menino de nove anos e mais um sacizinho…

Entretanto, pérfida como era, tentou ainda usar da astúcia. Acalmou-se e disse, num tom muito amável:

—Muito bem. Mas esse fio de cabelo da Iara não basta para romper o encanto da menina. Preciso ainda de um fio de barba do Caipora.

— Perfeitamente, Senhora Cuca. Ali em cima daquelas estalactites está o fio de barba do Caipora de que você precisa — disse o saci, apontando para o pingo d’água. — Vou já buscá-lo…

Vendo pela firmeza das palavras do saci que era inútil tentar enganá-lo segunda vez, a Cuca deu um profundo ai e confessou-se vencida.

— Meus parabéns. Vocês descobriram a única arma no mundo capaz de vencer uma Cuca — esse miserável pingo d’água… Farei como querem. Desencantarei a menina. Voltem ao sítio, procurem perto do pote d’água uma flor azul que lá deixei, arranquem-lhe as pétalas e lancem-nas ao vento logo ao romper da manhã. Narizinho, que deixei transformada em pedra, reaparecerá imediatamente.

— E se isso for um embuste como da primeira vez? — perguntou Pedrinho.

— Não é, reconheço que fui vencida em teimar. Voltem ao sítio, façam o que eu disse e depois venham desamarrar-me. Juro que jamais perseguirei qualquer pessoa lá do sítio.

 

28 – Desencantamento

A madrugada já vinha rompendo quando os dois aventureiros chegaram de novo ao sítio. Dona Benta e tia Nastácia, estavam ainda acordadas, porém mais calmas do que da primeira vez. Assim que os viram entrar, exclamaram ambas ao mesmo tempo:

— Trouxeram Narizinho?

— Sim, vovó — respondeu Pedrinho sem ter a certeza de que ela se desencantaria ou não. — Espere mais um minuto que vai ver de novo sua neta, forte e corada como sempre.

Falou e correu a ver se atrás do pote existia alguma flor azul.

Lá estava ela, a tal flor azul — esquisitíssima e diferente de todas as flores conhecidas. O menino tomou-a, desfolhou-a e lançou as pétalas ao vento, como a Cuca mandara.

Mal acabou de fazer isso, um fato maravilhoso se deu. Uma pedra do terreiro, que ninguém se lembrava de ter visto ali, principiou a inchar, a crescer e a tomar forma de gente. Segundos depois essa forma de gente começou a apresentar os traços de Narizinho, que, por fim, reapareceu tal qual era, forte e corada como Pedrinho o prometera a Dona Benta.

Foi uma alegria. As duas velhas atiraram-se à menina e choraram quantas lágrimas ainda tinham dentro de si — mas desta vez do mais puro contentamento.

— Então, minha filha, que foi que aconteceu? — perguntou Dona Benta.

Narizinho, ainda tonta, de pouco se recordava. Minutos após, entretanto, suas ideias principiaram a aclarar-se e pôde contar o que havia sucedido.

— Estou me lembrando, — disse levando a mão pela testa. — Foi assim. Eu estava com a Emília debaixo da jabuticabeira. De repente, uma velha, muito velha e coroca, aproximou-se de mim com um sorriso muito feio na cara.

— “Que é que a senhora deseja?” — perguntei-lhe naturalmente.

— “Desejo apenas oferecer à menina esta linda flor” — respondeu ela, apresentando-me uma flor azul muito esquisita. —”Cheire; veja que maravilhoso perfume tem.”

— Eu, sem desconfiar de coisa nenhuma, cheirei a tal flor — e imediatamente meu corpo principiou a endurecer. Perdi a fala; virei pedra. De nada mais me lembro senão que, de repente, fui revivendo outra vez e aqui estou…

Só então Dona Benta compreendeu que Pedrinho a tinha enganado para evitar que ela morresse de dor — e perdoou-lhe aquela boa mentira. Depois fez-lhe grandes elogios, quando soube do muito que ele tivera de lutar para que a horrenda Cuca revivesse a menina.

— Vejo, Pedrinho, que você é um verdadeiro herói. Essa proeza que acaba de realizar até merece aparecer num livro como uma das mais notáveis que um menino da sua idade ainda praticou.

— Espere, vovó — disse Pedrinho com modéstia. — Se a senhora emprega essas palavras para mim, que palavras empregará para o meu amigo saci? Na verdade foi ele quem fez tudo. Sem a sua astúcia e conhecimento da vida misteriosa da floresta e dos hábitos da Cuca, eu sozinho nada teria conseguido. Absolutamente nada. Agradeça ao saci, que não faz senão dar o seu ao seu dono, como diz tia Nastácia.

Todos se voltaram para o saci. Mas…

— Que é do saci? — exclamaram a um tempo.

Procuraram-no por toda parte, inutilmente. O heroico duendezinho duma perna só havia desaparecido. — Ingrato! — exclamou Narizinho com tristeza. — Foi-se embora sem nem ao menos despedir-se de mim…

De noite, porém, ao deitar-se, verificou que havia sido injusta. Em cima do travesseiro encontrou um raminho de miosótis que não podia ter sido posto lá senão pelo saci. Miosótis em inglês é forguet-me-not — que significa “não-te-esqueças-de-mim”.

— Que alma poética ele tem! — murmurou a menina, comovida.

1921.

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