o dia sem nome, 11

O dia sem nome, 11.

Sidney, dia 15 de abril, 2 horas da madrugada.

John Caldwell abriu a porta do quarto e entraram os quatro companheiros.
você fica de serviço hoje?
vou, mas vocês podem ficar aqui. o aparelho está arrumado, podem ouvir música.
estamos mesmo é a fim de ver aqueles filmes. já devolveu?
não. o sargento disse que só vai devolver pro dono na quinta feira. vocês dois ainda não viram?
acho que vi todos. faço confusão.
só não vale tocar punheta. Foi até o banheiro.
vocês leram o depoimento do Fred?
eu li na semana passada. falava mais da música dele do que da situação política…
não, esse é outro. a entrevista é curta. mas ele deixou bem claro que não quer ser herói, não é herói de nenhum grupo nem de revolução nenhuma.
porra, esse cara está traindo os interesses do povo.
por que traindo? ele diz que se falar demais acaba entrando numa fria.
se ele quisesse, podia mandar uma mensagem pra toda a Austrália. ele tem cobertura pra isso, é conhecido de todos.
eu não concordo. se ele faz isto, no dia seguinte é preso, quê que adiantou?
minha mãe diz que a Austrália é o único país do mundo em que o povo escolheu uma ditadura.
porra, ninguém vai ter coragem de botar a mão em cima dele.
isto é o que você pensa. já expulsaram e prenderam tanta gente importante! quem é que abriu a boca quando o bispo foi exilado? todo mundo fica reclamando de heróis mas ninguém quer entender que só vamos mudar de regime quando todo mundo resolver que está na hora de mudar. quem é que está a fim de desaparecer sem deixar vestígio?
foi isto que ele disse na entrevista. num resumo, a opinião dele seria mais ou menos esta: só se muda um regime de ditadura quando todo o povo resolve que está na hora. é uma questão de amadurecer o povo. ou, quem sabe, de apodrecer o poder, isto é meu, ele não falou. ele acha que fica todo mundo querendo que os padres, os intelectuais e os artistas ataquem o governo mas ninguém dá a impressão de que sairia às ruas pra reclamar de uma prisão ou de um assassinato injustos.
é muito trágico chegar a essa conclusão, mas, no fundo, no fundo, cada povo tem o governo que merece.
isto é comodismo da nossa parte! Gritou John Caldwell, voltando do banheiro, enxugando o rosto barbeado.
por que é comodismo? quem é que pode fazer alguma coisa?
porque tem gente fazendo. a gente escreve nas paredes da cuca que cada povo tem o governo que merece e ciao mesmo, senta, vê televisão e toma o seu refresquinho. fica mais fácil, quando o povo resolver, a gente sai pra ajudar. acho que isto é comodismo.
eu acho que tem certas coisas que dá pra fazer, outras, não. geralmente, o que dá pra fazer é muito pouco. a gente aqui, no quartel, por exemplo, fica condicionado a obedecer. quê se há de fazer? não dá nem pra abrir a boca!
porra, vamos falar de mulher!
cala a boca, merda.
porra, vocês ficam repetindo sempre a mesma coisa. a gente veio jogar ou discutir?
jogar e ver filmes pornográficos.
vocês dois são uns alienados!
merda, toda vez em que vocês três se juntam, é este papo sem fim. leva a alguma coisa, esta repetição?
claro que leva! a gente vai, aos pouquinhos, colocando as coisas no lugar. organiza a cuca.
porra, eu prefiro falar de mulher.
no fundo, fica a mesma repetição.
pelo menos dá mais tesão.
você gosta de falar de mulher porque sexo ainda é problema pra você.
porra, lá vem você com esta merda de psicologia de faculdade.
bom, alguém sabe usar este aparelho novo? daqui a pouco tenho que sair.
é capaz de dar tempo pra uma rodada, antes. trouxe um baralho novo.
o plástico é bom. já vi esta foto antes. Disse John Caldwell, nu, olhando o verso da carta numa das mãos, segurando a cueca e a calça da farda na outra.
é um super-computador orbital, eu me lembro da primeira vez em que ouvi falar disso, eu era menino.
quê que você tem aí pra beber?
tem alguma coisa na geladeira. John agora aperta o cinto e o afivela, ajeitando a calça.
posso abrir esse saco de biscoito?
claro. então é esse que controla as bombas?
eu também acho que ele está certo. depois, ele morre e ninguém vai procurar saber de nada.
o biscoito está gostoso.
posso arrumar a mesa?, pessoal.
encomendei uns baralhos novos. são à prova de uma porrada de coisas.
amanhã não acordo antes do meio-dia!
você sabia que agora eles é que dão o sinal? viu aquele filme?
quando ela telefonar eu vou dizer ó nega, não tou pra perder tempo. quer ir prum motel comigo, fala, se não, não telefona mais não que eu não sou príncipe encantado, tá?, benzinho!
e os satélites camicazes atraíram o foguete e explodiram.
só durmo com ela porque ela faz alguns trabalhos pra mim e eu tiro notas boas.
esse que você fala, não é um bem antigo? Doutor Fantástico, de um tal de Chaplin? John se sentou, espichou os dedos dos pés, começou a calçar as meias.
tem um jornalista italiano pesquisando tudo.
acho que vou na cantina buscar umas bebidas.
não, esse é mais antigo. é um filme mais recente. ele já fala da suspeita que existe, da existência dessa bomba que só destrói o que é vivo.
tem dinheiro? John se levantou.
tenho.
isto parece ficção científica.
aquele cara tá com mania de perseguição. disse que não passou por causa do coronel.
parece que só se escuta um assobio muito alto.
esse é o único jeito deles conseguirem a matéria-prima.
tem tanta coisa que o homem faz que parece ficção científica… quê que deu no John, gente?
vai descer ou esperar o sinal?
filhos da puta! filhos da puta todos eles! John foi pentear os cabelos, o olhar preocupado.
ele sempre se impressiona com as coisas.
filhinho da mamãe.
só a matéria viva é atingida. nada mais se altera.
deve ter complexo de culpa porque é rico.
Um pequeno sinal soou. John Caldwell se despediu.
pega esta revista. chegou hoje, de manhã.
John enfiou a revista dentro da calça, avançou diversas vezes o ventre, rindo, repetindo os movimentos da penetração sexual, ajeitou a farda, saiu rindo.
Apresentou-se ao capitão e substituiu o jovem sonolento, colocando-se na cadeira diante do painel. Se uma das luzes vermelhas se acendesse, ele levantaria o fone, anotaria o endereço e mandaria uma patrulha ao local, para averiguar.
ainda bem que sirvo nesse quartel de segurança municipal. não deve ser fácil apertar o botão que vai destruir a humanidade. aliás, agora ninguém mais aperta botão. mas alguma ordem tem que partir de algum lugar.
Tirou de dentro da calça o folhetim pornográfico e diminuiu a luz, para realçar mais o vermelho, se alguma das luzinhas se acendesse.
parece aquela lourinha da semana passada e se eu estivesse fazendo isso mesmo com ela e a tal bomba explodisse e como será essa tal de diluição?
Uma luzinha se acendeu, John Caldwell levantou o fone
luz suspeita acesa na quadra cinco oeste.
registrado. comunicarei à patrulha.
Apertou um botão verde, a luz acendeu e se apagou.
quadra cinco oeste, verificar luz suspeita.
Silêncio de novo.
puta merda, isso é sempre igual. como é estranho tudo isto, a gente não está sabendo de nada e eles tramam o destino da humanidade. destruição de regiões inteiras… e o pior é que pode ser tudo diferente do que falam e muito mais terrível…
Continuou a folhear, distraído.
pensei que ia ter saco pra escrever agora aquele trabalho pra segunda, acho que vou deixar pra amanhã. o filósofo falou que sempre o homem teve medo mas aquele filme mostra bem que o problema é uma falha qualquer numa das máquinas se eu conseguir o livro na Biblioteca posso fazer amanhã depois do almoço ainda não resolvi direito qual será o tema que vou escolher mas Peter me disse que o livro trata de tudo mas se o computador falhar talvez já tenham inventado um dispositivo pra anular a contagem regressiva e esse pessoal fica falando de bomba que só destrói a matéria orgânica e se for diferente e Deus se é que isto existe resolver se livrar da praga que somos e apontar o dedo pra poeirinha e pensar ele não precisa falar estou farto desse bichinho impertinente…
John percebeu que estava suando frio e um vazio diante dele fez com que se arrepiasse por inteiro. E seus olhos se congelaram numa expressão de horror total…
não. não quero pensar nisto.
A revista caiu no chão. 
não estou me sentindo bem…
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