o dia sem nome, 13

O dia sem nome, 13.

Bengazi, dia 14 de abril, 18 horas.

hoje, então, poderei dormir no terraço?, perguntou Eric à enfermeira.
pode, desde que me prometa uma coisa.
o quê?
acredita no talismã da sorte?
acredito. eu tinha um pente de marfim da minha mãe e foi depois que o perdi que vim pra cá.
então vamos fazer assim: eu vou pregar esse amuleto na sua gola. Falou ela, enquanto instalava na gola do pijama dele um minúsculo microfone sem fio, simulando uma antiga divindade negra. mas, para que funcione, é preciso que você pense em voz alta.
como vou pensar em voz alta?
você vai falar tudo que pensa. só assim vai dar certo. converse alto como se você fosse um pouco surdo e não ouvisse os próprios pensamentos. ou como se você fosse velho. voce sabe que os velhos falam sozinhos? na madrugada, então, poderá fazer um pedido.
vai ser muito engraçado pensar em voz alta.
não vai descer pra jantar?
não. daqui a pouco escurece e elas vão começar a aparecer.
então, quando subir leve alguma coisa pra comer.
Eric saiu. A enfermeira retirou sua ficha e leu a última nota: saída programada para vinte de maio. Anotou: suspeita de regressão. Iniciei a experiência do talismã.
eu sabia que ia ser mais fácil com ele. Pensou, enquanto se dirigia à cantina, depois de ligar o gravador.
Eric chegou ao terraço, estendeu a cama inflável, deitou-se e todo o céu ficou sendo seu. A clínica era no alto de uma colina, cercada de imenso gramado.
o único problema é que eu não posso sair daqui… consegui ler na ficha, há duas semanas, a palavra alucinação, não sei se li direito e não sei se aquela ficha era a minha. eles nunca vão acreditar que não é alucinação. ela desce da estrela e conversa comigo.
Eric contava as estrelas e, quando chegasse a cem, a centésima estrela desceria até ele e viraria fada-mãe. Nessa noite Eric estava com muito medo.
da última vez ela colocou os seios de fora e quando colocou a mão sobre a minha coxa eu tive vontade de chorar. aquela já é a segunda, eu sabia que aquela seria a segunda. costuma aparecer ainda no claro e eu penso que ela é o olho do grande caçador.
De repente Eric lembrou que tinha de pensar em voz alta.
ela falou que eu preciso pensar em voz alta, é bem difícil.
E começou a falar:
eu estou pensando que seria bem melhor sair desse lugar. mas também não terei pra onde ir. meu pai está preso, minha mãe virou estrela e a vó não gosta de mim.
Agora, com quinze anos, Eric visualiza um quadro acontecido quatro anos antes e fecha os olhos, agoniado.
não quero me lembrar daquele dia. mas eu sempre me lembro… e não vou pensar isto em voz alta. mas ela falou que eu preciso pensar em voz alta pra obrigar o pedido a dar certo. e o pedido será que ela não volte mais lá pra cima e o céu ficará sem uma estrela e eu ficarei novamente com a minha mãe mas não quero que ela ponha a mão em mim nem venha com a túnica caída.
Aos onze anos Eric olhava as estrelas, abraçado a sua mãe, morena, de grandes olhos negros, misteriosa como uma fada. Naquela noite ela contou a lenda de três heróis que tinham virado estrela. Eric gostava das histórias de heróis que tinham virado estrelas e sua mãe gostava de contar todas elas. O céu era um imenso painel onde se via os corpos estendidos e cheios de luz. Eric aguçava o ouvido como pedia sua mãe mas nunca ouvia o mugido choroso da ursa que ia ser trespassada pelo próprio filho.
se você prestar muita atenção, vai ouvir a ursa gritando…
Em vão.
Mas lá estava ela cheia de aflição e Eric chegava a ver movimentos de dor na constelação que ele julgava ser a grande ursa.
então eu vou repetir em voz alta que naquela noite ela tinha contado três histórias de heróis que tinham virado estrela e bebemos laranjada e de repente ele entrou e gritou sua cadela então é verdade e você saia da frente e não se meta e escutei o tiro e ela caiu e depois eu acordei na casa da vó e durante muito tempo não sabia se era dia se era noite e parece que fiquei louco e só voltei ao normal no dia em que ela acenou pra mim lá do alto e desceu e disse que se eu fosse bonzinho ela me visitaria sempre mas a vó falou que eu estou mas é bem maluco e ninguém acredita que é verdade e não me deixam sair daqui.
Eric percebeu que o céu já estava bem mais iluminado. Talvez, se começasse a contar já conseguiria chegar na centésima estrela. Mas estava com medo porque seu corpo sentia estranhos arrepios e ele não parava de tremer.
e eu não vou pensar mais em voz alta o que me assusta é que vejo que ela pode ter vontade de tirar toda aquela roupa bonita.
eles precisavam acreditar em mim. quando tem alguém perto eu erro a conta e ela nunca aparece. tenho medo mas já tenho o meu destino traçado e ela dizia que o destino dos homens já está escrito nos céus, desde o nascer até a hora em que ele morre então eles não sabem ler nas estrelas que o meu destino não é ser louco e é muito difícil fazer aquele homem entender isto tomara eu não tenha caído num hospício eles chamam de clínica de repouso mas não me entendem em nada a enfermeira é muito bonita mas é loura…
e se eu tivesse que pensar isto em voz alta eu digo que ela é bonita mas é loura e se pintasse o cabelo não adiantaria porque ela teria o cabelo preto mas seria loura porque está escrito nas estrelas que o destino dela era ser loura mas também não gosto quando ela me encosta a mão no rosto e não devia falar isto em voz alta aí sim eles vão dizer que fiquei maluco.
Eric fechou os olhos, cobriu-se, encolheu-se, resolveu que ia dormir.
não! acho melhor contar logo as estrelas e quando ela chegar pedirei mãezinha está frio não deixe cair a túnica.
Eric começou a contar as estrelas mas fechou os olhos de medo. Abriu-os e recomeçou a contagem. Um turbilhão de emoções o atrapalhava e ele sentia vontade de chorar. A loura surgiu em sua mente, ele fechou os olhos com força, ela desapareceu, ele continuou a contar…
cinquenta e sete, cinquenta e oito, cinquenta e nove…
O tremor aumentou. Eric, sem perceber, levou as mãos para dentro da calça e começou a se acariciar, já com o rosto molhado de lágrimas.
setenta e três, setenta e quatro, está escrito nas estrelas que eu sou muito feliz, setenta e sete…
E todo o seu corpo entrou em convulsão. Os olhos nada mais viam, ele adivinhava as estrelas e quando chegou na centésima, cobriu o rosto com as mãos e virou-se de bruços, estremecendo por inteiro.
A mão foi pousada delicadamente no seu ombro, depois fez uma pequena pressão. Eric, debatendo-se inteiramente, virou-se novamente e ela surgiu diante dele, luminosa, branca, inteiramente nua.
você mudou…, quase num sussurro.
o que foi que mudou? sorrindo um sorriso desconhecido.
é você mas está no rosto dela mas ela é loura…
Ela sorriu mais bonito. Eric pensou que devia ser assim que os deuses sorriam, quando tomavam a forma de outra pessoa.
mas sou eu mesma. vim consolar você.
Disse, e começou a desabotoar a sua camisa. Eric percebeu qual era o seu destino e percebeu também que não adiantava resistir. Nenhum homem jamais fora amado por uma estrela que era a sua própria mãe. Ele mesmo abriu aflito a calça do pijama, desceu-a, despiu-se, os pés batiam no colchão, como numa convulsão, marcando um compasso desesperadamente desordenado, ela veio sobre ele, ele sentiu sua boca sendo sugada e algo macio e delicado envolveu o seu sexo e era um abraço tão encantado como ser tragado por uma constelação e algo rebentou dentro dele e enquanto vazava o gozo ele sentiu que no mundo inteiro, antes e depois, nunca as estrelas tinham escrito um destino tão maravilhoso e ele estava acabando de decrifrá-lo.
Uma canção soou, figuras coloridas flutuavam, pássaros de papel prateado voejaram ao redor dos seus olhos, aos poucos ele adormeceu, nu, enrolado num cobertor, encolhido como um feto, molhadas as partes internas das coxas e a barriga e as mãos, solitário mas tranquilo, no terraço da clínica psiquiátrica.
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