o dia sem nome, 15

O dia sem nome, 15.

Viena, dia 14 de abril, 17 horas.

Ingrid Siegdal, viúva, cinquenta anos, sentada na cadeira antiga, assiste o drama pela televisão. Ingrid hoje não vai fazer o jantar. Ele está viajando e ela telefonou dizendo que ia dormir fora. Ingrid ouve com atenção. É um homem que fala a uma mulher coisas repetidas numa corrente que nunca pára, não se cansam de falar, e Ingrid não tem com quem conversar. A casa está limpa, odiosamente limpa, a roupa está guardada, nos mínimos detalhes quanto à maneira de dobrar e o local específico para cada peça. O brilho, a ordem e o cheiro de detergente natural dizem a Ingrid que sua missão foi cumprida mais um dia. Ingrid tem sono cedo, Ingrid vai gastar mais uma noite sem ter feito nada de útil.
Vinte anos servindo ao mesmo casal, a mulher conhece a casa como se conhece o próprio corpo, a cor, a disposição, a mudança da tonalidade da cortina que envelhece com ela.
Ingrid não tem com quem conversar. Ele não gosta de barulho, ela, quando passa em casa, se tranca a traduzir revistas estrangeiras. O telefone não deve soar mais de uma vez e a campainha da porta precisa ser atendida sempre imediatamente. Ingrid já se habituou a esse silêncio. É bem por isso que ela toma banho logo que levanta, uma vez apenas, nesses vinte anos, fora surpreendida pelo telefone. A mulher foi que atendeu, olhando-a, depois, cheia de ódio. Ele apenas tomara o refresco em silêncio, sua cara nunca demonstraria sinal de violência ou amor.
Os filhos tinham vindo e tinham partido. No começo choravam, riam, brincavam, mas a presença dele, aquela onipotente esfinge de bigode e óculos, com seu olhar de dragão, tinha terminado por silenciar as crianças. Aos poucos, tudo se acomodou. Primeiro silenciavam apenas à noite, com o pai em casa. Depois, os pobres gêmeos foram contaminados pelo sepulcro noturno, passaram a ser silenciosos também durante o dia, longe do pai e da mãe, brincando menos, gritando menos. Ingrid os tentava com cócegas mas eles riam um pouco e diziam que estavam com dor de cabeça.
Eles aprenderam rápido quem era Ingrid. Ingrid era um robô que precisava obedecer e ser perfeito. E foi assim que passaram as tratá-la, olhavam e queriam ser atendidos e ela, submissa, silenciosa, acabou por entender aquela linguagem tirânica. Mas eles não estavam mais lá. Um estudava na Grécia e o outro viajava pela América do Sul, mandando semanalmente fotos com monumentos fabulosos e algo como camponeses esfomeados e doentios. O da Grécia, entretanto, que sempre fora o preferido pelo pai, não mandava notícias, ela sabia que ele estava lá porque era ela quem fazia, algumas vezes, a remessa da ordem bancária.
Ingrid não tem mesmo com quem conversar. Queria um peixinho, um cão, um canário, mas a secura daquele par mataria com os olhos qualquer vidinha travessa que arriscasse um ruído novo naquele ninho de pedra. Assim tinha sido com o inquieto dálmata do gêmeo mais alto. O menino chegara rindo, o vizinho perguntou se eu quero, que ele vai se mudar, o pai olhou silencioso, a mãe se agachou e acariciou o menino, vamos tentar ficar com ele, os meninos conversaram horas sobre o nome que dariam ao animal, dois dias depois e o pequeno, chorando, saía com a mãe, levando o cãozinho sem nome, que nunca mais voltou.
Ingrid queria dizer a alguém porque continuava ali. A filha morando num pequeno apartamento, se a senhora sabe que aqui não tem lugar tem que continuar morando lá ninguém na Áustria paga tão bem a uma governanta e o serviço é pequeno, quer que eu ponha as crianças na sala quando pode ficar num quarto maior que esta merda aqui? Sim, Ingrid talvez fosse a mais bem paga governanta da Áustria, uma máquina de perfeição que nunca se enganava em nada, entendia bem três idiomas, podendo atender chamadas internacionais também em espanhol ou francês e ainda separar da pilha de revistas os artigos que poderiam ser traduzidos ou adaptados. Ingrid é uma mistura de secretária particular e empregada doméstica porque também conhece as dietas dos dois e prepara as refeições. Sobra um tempo imenso, que ela vê perder-se sem ter com quem conversar. Vai às compras, para ver gente, escolhe os artigos, coloca no carrinho que entra na pista rolante e passa pro outro lado. O carrinho chega à caixa, que passa os preços na máquina, o menino passa a mercadoria para a esteira rolante, o outro empacota e apresenta ao homem que lhe mostra a conta. Ingrid paga, quer falar alguma coisa mas não tem coragem para quebrar aquele silêncio produtivo e eficiente. Também não deve demorar na rua, porque o telefone pode tocar a qualquer hora. Então Ingrid entra e começa a pensar, porque não tem com quem conversar.
uma governanta não pode falhar, ouviu-o uma vez, falando com voz seca, ao afastar pra frente o prato com torradas mais morenas que de costume. Ele não tinha percebido que Ingrid se aproximava trazendo frutas.
foi o meu silêncio que eles compraram, dizia ela à filha. A filha, fingindo atenção, balançava a cabeça concordando e continuava lendo os escândalos dos festivais de cinema. Por causa da indiferença e do silêncio da filha é que Ingrid, algumas vezes, passava as tardes de domingo no parque solitário. Sentava no banco, enrolada no casaco, olhando as sombras que passavam silenciosas e sérias. Ingrid descobriu que alguns filhos aprendiam depressa. Lá iam eles, mudos, carrancudos, passo firme, sem pulinhos, sem risos nem brincadeiras. A maioria, porém, era rebelde e seus gritinhos, gorjeios de aves descuidadas, atingiam-na em cheio como um raio de sol inesperado. 
Ingrid poderia ler ou ir ao cinema mas não aguentava mais aquele diálogo em que só podia ouvir. Não adiantava muito pensar sobre o personagem, descobrí-lo, conhecê-lo e não poder comunicá-lo. A cruz de Ingrid, que lhe machucava dolorosamente o coração, era não haver nenhum outro em sua vida. Ingrid já sentia uma vergonha humilhante ao se olhar no espelho, que dignidade pode haver numa pessoa que não pode falar?
não há significado nenhum para um destino tão cinzento.
Quantas vezes ela tinha resolvido morar sozinha, num pequeno quarto qualquer, numa aldeia qualquer, talvez não houvesse mais aldeias. Mas ela não queria ficar longe dos três netinhos, o marido sempre dissera você é muito dependente, está sempre precisando das pessoas.
Ingrid, como que cantarolando, pensa no dia em que os netinhos crescerão e pedirão que ela lhes conte alguma historinha.
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