O dia sem nome, 2.
João já estava morto. Lá fora alguém cantava uma velha inesquecível canção proibida
apesar de você, amanhã há de ser outro dia,
mas João já estava morto. Não ouviu o zumbido do extermínio, sua perna dormente desmanchou-se, suas coxas e nádegas, cheias de agulhadas de droga, se esfarelaram, seus rins magoados viraram gelatina, os pulmões amarrotados deixavam para sempre de inflar.
A cidade do fumo, a mancha cinzenta, adormecia, apesar de todos aqueles repetidos desastres que aos poucos eram serenados. No sul e no norte, o mesmo fado. A mesma sina a leste e a oeste. A fortuna negra, a fortuna mais amarga, calara o coral da humanidade e todo o acompanhamento da orquestra da vida. Não mais mães, nem vizinhos, nem alunos, nem doentes. Só cidades, vazias e imensas, por isso mesmo muito mais mortas. Não mais folhas nem seiva nem pomos nem gemas nem rebentos. Apenas terra e areia, deserto e solidão. No lugar onde antes pontificavam as imensas florestas, fortificações inexpugnáveis, depois do murmúrio com que desabou a grandeza da massa verde, no lugar das grandes árvores, apenas uma extensíssima gosma, aderindo ao chão, espelhando uma coloração brilhante para o vazio. Sem ovos, sem peixes, sem algas, sem criaturas imensas vagantes no mar sem fim. Mas a canção contínua, não mais ouvida, a luta eterna das vagas contra os rochedos de Prometeu, não mais cantada pelos poetas que já não vagabundavam em busca da resposta; o imenso aguaréu, morto e incansável. Não mais ninhos, não mais répteis, não mais cabras arriscando a vida no salto impossível, não mais águias rasgando a tenra carne do cordeiro abatido. O vento, sim, cortante como sempre, trabalhador que não desistia de desfazer montanhas, fragmentando-as hoje e hoje e hoje e hoje. A neve, sim, pesando como almofada de morte que asfixia, branca e luminosa. A noite, também, penetrando primeiro nas grutas mais profundas, depois nas brexas, finalmente engolindo a planície e a montanha. A lua, às vezes gôndola curva, às vezes virgem oculta, às vezes escandalosa moeda de luz orgulhosa, azulando os planaltos, prateando as ruínas obstinadas. As estrelas, piscando o indecifrável mistério polvilhado.
Para quê mar, sem menino assustado com o barulhão? Para quê ventos, sem ouvidos para estremecer ante os uivos de pavor? Para quê neve, sem pés descalços para endurecerem? Para quê lua, para quê lua e estrelas, para quê lua, se se tinham silenciado os corações ébrios? Para quê lua e deserto? Para quê estrelas e terraços, se Eric não era mais? Para quem o arco íris, para quem a chuva, para quem a imensa dúvida de para quê tudo isto?
Os monumentos da vaidade foram tombando aos pouquinhos. Emudeceram os gritos e os sussurros. Perderam o encanto as fadas e os ogros. As janelas tiveram vasados os olhos. As estradas permaneceram não percorridas. Não mais se levantou o cajado para brotar a fonte da morte na cabeça do inocente. A lâmina da mentira e o estilete da calúnia tiveram interrompidas as suas missões de dividir para a destruição. À filha de Sião não mais era dado chorar. Suspensa foi a peregrinação do homem.
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