O dia sem nome, 21.
São Paulo, dia 14 de abril, 13 horas.
Confusão e sono. Sono e dor. Dor e ruídos. Ruídos e dormência.
João tentou levantar a perna insensível mas não conseguiu, sentiu que não conseguia. Pensou, no meio do nevoeiro, pensou com dificuldade que, se respirasse muito fundo, conseguiria levantar a perna morta. Respirou mas ouviu zumbidos, estalos que rebentavam e luziam ante seus olhos inchados e meio cegos. O esforço foi muito grande, sentiu rebentar dentro dele uma espécie de balão inflado, houve uma dor, uma faca rasgando alguma carne muito sensível, a dor o fez mergulhar numa pequena morte. Não percebeu que tinha urinado. Alguém trocou a calça do seu pijama, limpou a urina, mudou o lençol, uma pessoa qualquer o levantou pelos ombros e foi como se um estilete cheio de fogo percorresse toda a sua coluna vertebral.
João não sabia se estava gemendo ou não. Os olhos arregalavam mas ele via apenas uma fina fresta porque as pálpebras enormes se recusavam a abrir, pesadas e roxas. U’a mão o empurrou para o lado, João sentiu apalparem a nádega
vão me dar outra daquelas injeções
quis levantar o braço para impedir mas não conseguiu. A mão apalpou, mas como a carne estava machucada demais e muito magra, a mão virou-o e o álcool foi passado na coxa e na coxa ele sentiu a fincada violenta enquanto a dor penetrava grossa como um azeite empelotado.
João não queria mais dormir porque sabia que as idéias custariam a voltar ao lugar. Ele vomitaria verde de novo, algumas bolotas de sangue também. A vantagem, porém, era que, pelo menos, enquanto dormisse, ele não seria levado lá. Mas ia perder novamente a noção de tempo, há quanto tempo tinha começado tudo aquilo?, desde o momento inesperado, quando, ao abrir o quarto da pensão, sentiu um cano no peito e uma voz soou no escuro
comunista porco, me siga ou te castro e te mato!
João tinha uma ligeira impressão de que se passara muito tempo porque agora estava muito frio, nunca tinha sentido tanto frio. Tentou lembrar do número de vezes que tinha sido interrogado com aquela luz na cara, as perguntas voavam, ele sentia de novo o pano molhado fechando a sua respiração e se agitava e gemia mas o pano foi voando com as perguntas e as luzes foram virando pipocas que estourassem mudas e as caras daqueles homens de farda, com olhos de falcão e mãos de gato, tudo aquilo foi se desmanchando e silenciando até que a droga venceu as agulhadas e os estalos e João permaneceu calado e quieto durante algumas horas.
você pensa que seu movimento vai vencer, mas nós venceremos. nada vai impedir a caminhada do gigante para o progresso total.
não defendo nenhum movimento. não faço parte de nenhum grupo, já falei isto mais de mil vezes. o que fiz foi escrever um conto e entregá-lo pro jornal universitário.
Havia algo amargo na boca ressecada, não tinha forças para cuspir e nem a saliva brotava em torno da língua.
aí é que você se engana. está provado que só um regime enérgico leva o país a grandes rumos.
Sentindo u’a mão apertar seu ventre, ele torceu-se mas o gemido não teve energia para rebentar. João achava esquisito, mas percebia aquele local como sendo a casa em que tinha nascido, era uma verdade lógica como as verdades do sonho.
você queria que a gente abrisse as pernas? jornais, filmes, eleições, ia ser aquela confusão total. e agora tudo vai muito bem.
tudo vai muito bem, diz você. quer mesmo saber o que penso? esta imensa máquina é poderosa de fato. não dá pra dizer que não. não temos mais arte, não temos mais cultura, isto que vocês pregam é a imitação grotesca daquilo que há vinte anos já era ultrapassado. vocês são fortes, mas eu pergunto: pra quê? pra quê? pra quem foi construída esta enorme fábrica de repressão? defende o quê, esta gigantesca usina de silêncio? a quem beneficia esta monstruosa indústria de violência? sabe a quem? a si mesma! a máquina cresceu, vocês dependem desta aberração, vocês estão todos apavorados. vocês estão com medo porque as coisas não correm como vocês queriam. vocês sabem que vão cair. vocês se cagam nas calças quando um simples estudante escreve um texto de duas páginas sobre uma minhoca que cavou túneis debaixo do castelo do rei. vocês se borram de medo de qualquer mosquitinho que lhes vem assoprar no ouvido que as coisas estão mudando. pois vocês sabem que as coisas estão mudando. viram em quantas repúblicas está virando a intocável União Soviética? viram o que está acontecendo na Europa? vinte e poucos anos, ein? não dou mais dez pra esta merda imensa soçobrar…
João ouviu o gargalhar do outro, as luzes se acenderam.
não, não, eu não quero ir pra lá, vão me colocar o pano molhado novamente…
sossega, não vai acontecer nada, você está na enfermaria.
eles vão me pôr de pé em cima das latinhas, e meus pés se abriram em buracos e eu já perdi a minha perna direita…
Tentando abrir os olhos, inchados e vermelhos, sentindo u’a mão macia nos cabelos.
fique tranquilo, fique tranquilo. se estiver doendo muito, posso trazer outra injeção.
não, não, não, não…
O nevoeiro voltou, a dormência, o esquecimento. Apenas os estalidos continuavam, era uma luz forte mas pequenina que crescia, entrava nos olhos e estalava. Depois, tudo foi diminuindo e João embebeu-se novamente de uma morte provisória.
Quando tentou abrir os olhos, que doíam muito, percebeu que havia penumbra. Ouvia uma voz conhecida mas não lembrava de que lonjura ela vinha. Foi quando sentiu a mão quente, trêmula e medrosa, que reconheceu a mãe.
Viu brilho de lágrimas no seu rosto. A vez dela brotou dos abismos do pavor:
meu filho, meu filho… eu tinha dito que era perigoso…
não foi nada, mãe. não foi nada.
Sentiu uma imensa vontade de chorar.
está tudo bem – a voz incapaz, quase desaparecida. a gente não estava sabendo de nada… ainda bem que seu tio conhece um coronel… ele ligou pro ministério…
A enfermeira colocou a mão no ombro da mãe. A mãe beijou a testa de João.
há quanto tempo estou aqui?
cinco semanas – levantando-se.
As duas saíram. Ele ouviu um pranto violento e agoniado e a porta foi fechada.
Quando a enfermeira voltou, ele pediu lápis e papel.
você não pode escrever.
você vai escrever pra mim… estou nos meus últimos momentos de lucidez…
Ela repetiu você não pode escrever mas estremeceu por inteiro quando os olhares se cruzaram, o dele mal permitido pelas pálpebras enormes. Pegou papel e lápis e se sentou.
A voz vinha pausada.
escreve aí:
“O SERMÃO DO PLANALTO.
Vendo o homem que chegava sua hora, acomodou-se no leito da morte, e, tendo-se sentado, aproximou-se dele alguém. E ele, abrindo com dificuldade sua boca, soprava suas últimas palavras, dizendo:
Mal-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino da miséria.
Mal-aventurados os que choram, porque eles serão espoliados e pisoteados.
Mal-aventurados os humildes, porque não merecerão a dignidade de serem ouvidos.
Mal-aventurados os que padecem fome e sede de justiça, porque serão cercados no curral da penúria e nas grades negras da humilhação.
Mal-aventurados os misericordiosos, porque a sua misericórdia os deitará a perder e eis que serão devorados pela hidra de duas cabeças, Fobos e Deimos.
Mal-aventurados os limpos de coração, porque verão a Mentira coroada e a Força no trono.
Mal-aventurados os pacíficos, porque serão chamados cordeiros do Rei e filhos da Iniquidade.
Mal-aventurados os que sofrem perseguição por amor à Justiça, porque deles é o covil da dor e a grota da tortura e seu sangue será derramado no altar da Repressão.
Mal-aventurados sois, quando vos injuriarem e vos perseguirem e, enganando, disserem todo o mal contra vós, por causa da Mentira. Chorai e humilhai-vos, porque é esse o vosso galardão na terra, pois dessa mesma forma foram perseguidos os justos que existiram antes de vós.”
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