o dia sem nome, 5.

O dia sem nome, 5.

Varsóvia, dia 14 de abril, 17 horas

Julek, quatro anos, trepado nos ombros do pai, observa o cortejo. Homens e mulheres vestidos com roupas coloridas, desfilam dançando e rindo. Julek não sabe o porquê da festa. Não entendeu o que disse o tio, ao falar de vinte anos de independência. As crianças ganharam uma bandeirinha branca com letrinhas vermelhas mas Julek esqueceu o que estava escrito na sua e pergunta à sua mãe o que está desenhado aqui mas ela faz psiu e continua olhando e rindo.
Os homens e as mulheres continuam passando e Julek não entende de onde eles saem porque olha em volta e só vê cabeças, louras, morenas, toucas, flores, bonés. No princípio eles tinham roupas diferentes, pareciam ursos de tão peludos. Depois, passaram muitos homens e mulheres amarrados com correntes, com enormes pesos, Julek perguntou e o pai falou você pergunta demais e ele ficou triste mas o tio falou eles representam o tempo da escravidão e Julek perguntou o que é escravidão e a mãe fez psiu fica quieto ou vamos para casa. Então o tio o pegou no colo e o beijou e disse escravidão é quando homens maus e cheios de espingardas obrigam todo mundo a trabalhar para eles. Aí uma música bem forte começou a tocar e Julek percebe que não está vendo mais os dançarinos e começa a trepar nos ombros do tio e o tio o levanta lá no alto mas sua bandeirinha cai e ele começa a chorar. A mãe se abaixa, o pai fala alguma coisa, o tio diz que não conseguimos mais achar porque está muito apertado mas a velha que está do lado diz fica com esta aqui e dá um beijo na testa de Julek. A bandeirinha nova não está amassada e Julek pergunta à velhinha o quê que está desenhado aqui e ela diz com os olhos brilhando
paz e liberdade.
O tio o recoloca nos ombros e Julek pensa nas palavras enquanto vê jovens a cavalo com roupas bem vermelhas. Não sabe o que é paz nem liberdade mas não teve coragem de perguntar pra velhinha porque os olhos dela tinham brilhado de meter medo. Aí o pai fala alguma coisa e ele perguntou o que foi e a mãe diz que eles estão mostrando como era antes da independência, os cavaleiros são do partido que acabou e a moça de branco é a virgem Polônia. Julek olha mas já deve ter passado a moça porque ele não vê nada. Aí a velhinha da bandeirinha começa a gritar ninguém mais vai pôr a mão na nossa Polônia e as garras imundas não mais vão entrar no solo da Pátria. Alguém grita lá na frente Viva a Liberdade e o cortejo pára e todos olham para onde está Julek e gritam Viva Viva Viva e Julek começa a chorar assustado. A mãe o toma e a velhinha, chorando, beija-o novamente. Julek chora mais alto e o pai o pega, levando-o dali. Ele procura a mãe, vê gente em torno, uns rindo, outros gritando, todos com os olhos brilhando. Afastam-se e o rumor vai diminuindo. Entram num bar; algumas vezes, nos passeios, o pai o leva ao bar, mas naquele ele nunca tinha estado. O pai pergunta o que você quer e ele sempre quer laranjada e sorvete. O moço de branco traz o sorvete e o pai fala que não tem refresco e Julek diz que agora quer fazer xixi. O moço aponta pro pai o lugar de fazer xixi e Julek acha engraçado o lugar do xixi, que é diferente dos outros. E enquanto Julek come sorvete, depois de voltar, o pai conversa com as pessoas da outra mesa. Daí que chegam a mãe e o tio e todos se sentam e pedem batata frita e Julek diz que também quer batata frita. A batata demora muito e a mãe ajuda Julek a comer o sorvete. Enfim chega a batata e o tio pega palitos e distribui e o pai põe sal. Julek quer mais palitos, a mãe retira o paliteiro, Julek quer mais sal, o pai apresenta o saleiro, a mãe diz que está quente, Julek joga sal na batata mas o sal cai na mãozinha e no palito e Julek lambe e faz uma careta e o tio ri bastante e ele come a batata e grita porque está quente e a mãe fala eu acabei de falar que está quente quer um pouco d’água?, mas Julek quer o paliteiro e a mãe o traz novamente e ele tira cinco palitos e enfia um por um nas batatas e enfileira todas e começa a falar
fica frio-te sézamo, fica frio-te sézamo!
Conversam muito e não ouvem que Julek pede água. Ele puxa a roupa da mãe, ela zanga, eu quero água, o pai levanta o braço e chama o moço de branco. O moço chega e o pai dá dinheiro pra ele e o moço vai e volta com a água, Julek prova mas a sede já acabou e todos se levantam e vão pro carro do tio e Julek vê que as casas passam e passam e fica quietinho no colo da mãe e encostando o ouvido no peito dela escuta, quando ela fala, uma voz diferente que vem dum lugar igual à caverna do Ali Babá. Julek gosta que a mãe fale, pra rir com a voz que vem da caverna. As coisas vão ficando pequeninas e Julek desaparece.
Ao ser colocado na cama, cuidadosamente, Julek acorda. Levanta-se e começa a pular.
não quer dormir?, pipoquinha.
não. quero brincar com o Toicinho.
A mãe traz o Toicinho, um cocker spaniel mel e dourado. Julek dá gritos, pula e bate palmas. A vó entra cantando no quarto, perguntando se o docinho de amendoim gostou da festa? e dá muitos beijos em Julek e faz cócegas e a mãe entra e diz que mude de roupa e brinque com o Toicinho que eu vou sair com o pai e o tio.
eu também quero ir.
de noite você não entra.
O pai o pega no colo, para beijá-lo.
quando que eu entro?
de dia.
você me leva?
amanhã eu não posso. vou trabalhar. só no domingo.
e se você não trabalhar?
eu preciso trabalhar. todo mundo que já é grande precisa trabalhar. você sabe pra que é que eu trabalho?
sei. pra comprar coisas.
que coisas?
chocolate.
que mais?
balas.
que mais?
sorvete.
que mais?
doces.
Todos começam a rir. A mãe o tira do pai, o beija, ciao querido, entrega-o à vozinha que o abraça bem apertado e depois o põe no chão.
Julek brinca com o Toicinho, a vó liga a televisão e pergunta se ele quer ver as danças do povo polonês e Julek pergunta o que é povo e a avozinha responde cheia de amor, com a frase de uma peça do tempo da independência
povo é o mais velho herói do mundo.
Dando beijos, com os olhos brilhantes como os da velhinha da multidão, mas, desta vez, sem fazer cócegas.
Toicinho corre até a cozinha e Julek sai atrás dele, pulando, rindo e gritando. Toicinho deixa-o chegar bem perto, late, dá pulos e corre novamente ao quarto do menino. Julek corre atrás, a vó aumenta o som da antiga, antiquíssima polonaise que faz girar delirante toda a alma machucada de um povo finalmente livre. Toicinho sossega e deita, com a língua de fora. Julek, com o coraçãozinho batendo, confuso, com cores nos olhos e música nos ouvidos, com tontura na sua cabecinha mal preparada para festejos gloriosos de uma nação, agora neutra, Julek se deita, rindo, colocando a cabeça sobre o corpo de Toicinho, que continua com a língua de fora.
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