o dia sem nome, 9

O dia sem nome, 9.

Getsêmani, à mesma hora.

É verdade, é verdade que esta é a noite da minha agonia; pensou o homem triste, enchendo o segundo copo de vinho. Esta e a noite em que não impedirei no coração a abertura da chaga de sangue, porque eis que a taça transborda; continuou, enquanto fazia descer a amarga tinta da vinha machucada. Não tenho mais nada a padecer, não tenho mais destino a suportar, não tenho mais fado a sofrer. Pensarei tudo e apagarei a chama. É a hora, é a minha hora, aquela que eu escolhi como sendo a hora da minha liberdade.
Quero cuspir fora este meu tormento e esta minha angústia. Sofrerei apenas o que determinei para sofrer, nem um minuto a mais. O limite é o terceiro copo de vinho dessa ceia mística de meu eu lúcido com meu eu louco.
O homem triste, trinta e três anos, conhecedor do homem e da sua miséria e da sua glória, não estava resistindo mais. Chegava no limiar de seu ministério. A seguir, pretendia entregar-se ao efeito de uma droga mortífera.
Mas ainda tinha tempo, queria antes escrever alguma coisa. Que seria, talvez, o seu último clamor de desesperança.
O homem triste sentiu tonteira, as coisas começaram a ficar coloridas, destacadas, suficientes, importantes. Ligou a música, Prelúdio e Morte de Amor, do Tristão e Isolda. As notas prolongadas começaram a flutuar no espaço, ele teve a sensação de que poderia caminhar apoiando-se nos agudos punhais de esmeralda que eram aqueles sons.
Isso é uma loucura, dois copos de vinho e eu já estou enfeitiçado como um deus antigo. Não quero ter pressa de ir embora.
Foi ao banheiro e lavou o rosto. O barulho da água e aquele frio transfiguravam. Enxugou lentamente o rosto, prestando atenção no desvario que era aquela música, um desvario que era o dele, inebriado, além das fronteiras do suportável, mas seguro, contido, mantido numa prisão controlada e garantida. Depois, sim, na morte de amor, seria a libertação total e apocalíptica.
Abriu a gaveta para pegar papéis. Viu o pacote roxo, não deu atenção, não quis dar atenção, mas o embrulho nadava ante seus olhos, como um presente.
Não queria ler estas coisas, aliás não terei tempo de lê-las, pensou o homem triste, enquanto desfazia o pacote. Abriu e espalhou onze cadernos finos, onde durante toda a vida, ou, mais precisamente, durante os últimos três anos, ele tinha anotado, com calma, seus pensamentos, alguns ordenados e encadeados, outros soltos, avulsos.
O homem triste, funcionário de um Instituto Nacional de Seguros, sem curso superior, tinha tentado imprimir alguns dos cadernos. Os editores disseram sempre que era pouco material para livro, tentasse revista, os professores da Universidade o olhavam por trás de seus caiadíssimos guardapós, fazendo perguntas idiotas, para fazê-lo sentir-se inferior, ele acabara por desistir.
Parou de olhar para os cadernos e prestou atenção à música, para beber da taça da Isolda moritura. A orquestra se retorceu, subiu, desceu, enlouqueceu, preparou novamente o seu grito lancinante que penetrava como faca, abrindo o peito em ferida viva, rolando e repetindo um pedaço da frase fatal, como uma serpente de diamantes que prepara o salto, avança, recua, muda de posição, e, finalmente, se precipita no espaço, transformando-se numa ninfa resplandecente que, ao final, suspira e morre.
O homem triste começou a chorar.
Esses soluços de sangue e fel vinham de longe, rebentando suas entranhas, abrindo caminho para subir como a lava louca de um vulcão enfurecido que pretende soterrar Israel, abalar as muralhas de Jericó. Esses soluços roucos e empestiados vêm do dia distante, quando ele, com vinte anos, voltando ao lar, encontrou, numa casa totalmente revirada e ao som de Tristão e Isolda num disco que se repetia mecanicamente, a mulher e o filhinho recém-nascido assassinados. Depois disso não mais chorara, não mais ouvira o Liebestod.
A música dormira dentro dele com seu oceano de lágrimas. Nas horas de dor e saudade desenhava ou escrevia um pouco.
Voltou ao banheiro, lavou o rosto novamente, não parou contudo de soluçar. Abriu o primeiro caderno, um pequenino trabalho tendo por título
Quem são os responsáveis pela loucura coletiva?
Folheou outro; tinha sublinhado um pequeno trecho: Progresso, Sociedade, Capital livre; tantas civilizações foram construídas baseadas em sofismas, por que não seria a nossa uma delas?
Um terceiro caderno trazia o título A Espécie Humana, o homem triste se lembrou do sorriso incrédulo do único amigo a quem tinha confiado a idéia da pequenina obra.
Num outro caderno, uma escrita em vermelho lembrava que era a cópia de um texto de um velho professor do ginásio, que o tinha impressionado mas que ele nunca tinha entendido direito porque era assunto controverso e de difícil verificação:
esse povo admirável, que contribuiu com seus gênios fabulosos para o engrandecimento da humanidade, não consegue se livrar da cruz pesada que carrega pelos séculos afora: a cruz da adoração do bezerro de ouro!
Não queria continuar. Não tinha sentido prosseguir procurando flores ressecadas quando as agulhas de prata da música insistiam em dominar o seu entendimento, lembrando da saudade ressuscitada.
Abriu o último deles, ao acaso, lendo instintivamente
que castigo para estes que decidem destinos de nações inteiras, entregando-as à negrura da obscuridade, à humilhação aviltante ante a violência desenfreada, ao desespero mudo e eunuco da escravidão?
Era preciso resumir tudo, uma síntese com a tentativa de todo um sistema, pensou o homem triste, menos soluçante, mas um pouco mais embriagado. Numa página, a minha total visão do mundo… Não sei se conseguirei.
Ele recolocou os cadernos na ordem em que estavam antes, embrulhou-os com calma, ainda que tremessem muito as pontas dos dedos e o queixo. Abriu o papel, apanhou o lápis, escrevia a lápis. E fez-se um buraco diante dele.
Durante tantos anos esperei esse momento terrível, adiei-o, desejei-o, não quero ser infiel à minha paciência, pensou o homem triste, começando a escrever:

“O homem vem ao mundo para ser feliz. Tudo que existe traz em si, enquanto ser, a necessidade de continuar existindo. Bom, é o atributo de algo que esteja favorecendo ou propiciando a algum ser a sua continuidade. Mau é o atributo daquilo que impede ou desfavorece. Algo que seja bom para um pode ser mau para outro. Ser bom ou ser mau é encerrar uma possibilidade em relação a. Nem tudo é relativo. O bem e o mal são.
O homem vem ao mundo para ser feliz. Para exigir do mundo que o mundo seja bom para com ele.
Ética será o pesar na balança em relação a que coisa meu ato será bom ou mau, para concluir se devo ou não praticá-lo.
Ser moral é ser livre sem ser molesto.
Se a liberdade não é dada, porque a moral do outro é outra, o homem deve conquistá-la a fim de ser bom para si mesmo.
Nenhum homem devia ter medo de se olhar no espelho.
E nada disto que escrevo modifica a situação do homem diante do Mistério.”

O homem triste suava extenuado. Não era muito, era tudo o que ele tinha pretendido. Ele sabia que não adiantava ir mais longe, era difícil escrever estando já embriagado.
Levantou-se lento, apanhou o pequeno vidro, encheu o copo de vinho e nele despejou tranquilamente o pó da noite eterna.
Se eu cheguei até aqui, por que não continuaria o caminho mais um pouco?
mas sua voz baixinho advertiu:
Não. A hora dessa música é a hora da minha morte. Este é o momento da minha liberdade.
Pegou o aparelhinho e regulou-o para a repetição automática da mesma música, ajustando-o, esperou, com o copo na mão, que as cordas começassem a chorar e quando os sopros arrebentaram o primeiro gemido, ele levantou o copo. 
Bebeu.
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