desenho de Ricardo Garnhani
Nota: A segunda novela do Decameron de Boccacio (1313/1375), entre algumas outras, mostra a devassidão no comportamento dos religiosos católicos no século XIV. Parece que nem a contra-reforma conseguiu alterar a moral de muitos padres.
Esta historinha, na verdade uma debochada anedota, exemplifica, de modo cru. um tipo de comportamento clerical que floresceu (ou espinhou) até metade do século passado. Muito disso é resultado de um costume da maioria das famílias com algumas posses: um dos filhos era destinado ao sacerdócio, desrespeitando-se individualidades e vocações. A vítima era a última a manifestar alguma vontade.
Era uma vez um padre muito sem-vergonha. Quando ele ia confessar as mulheres, ficava perguntando indecências pra elas. Mas ele preguntava de um jeito muito matreiro, que mais parecia que era mesmo confissão. Aí, quando ele entendia que a mulher tinha pecado contra o marido, ele conversava e conversava e acabava dando um jeito de seduzir a coitada. Umas gostavam e acabavam se acostumando, de jeito que nas confissões aconteciam outras coisas. E assim ele ia vivendo.
Aconteceu de mudar praquela cidade uma mulher casada com um viajante. Ela era muito bonita. No sábado foi à igreja e se apresentou pro padre, que queria confissão. Na verdade o que ela contou foi um bocado de pecadinhos bobos. Ele mandou que ela rezasse ave-maria e credo e ela foi embora.
Mal sabia a coitada que tinha acendido os desejos na alma do padre pecador. Naquela noite ele não conseguiu dormir. Só pensava na mulher bonita e virtuosa e resolveu que teria que dormir com ela porque se não ia ficar maluco.
Aí o padre começou a perturbar a mulher. Primeiro ele falou que todas as tardes passava perto da casa dela e podia ir lá confessar ela. Ela aceitou porque nem desconfiava das intenções do sem-vergonha. Então ele passou a visitar ela e ficavam conversando na sala de visitas. Depois ele começou a perguntar perguntas difíceis de responder mas ela era tão virtuosa que disse que nunca pensava pecados. Mas daí em diante ela começou a ficar perturbada. Ele ficava conversando de coisas feias, insinuando que seria muito bom tentar alguma aventura diferente e numa tarde ele confessou abertamento que estava louco de amor por ela. Ela começou a chorar e disse que ele não podia pensar aquilo nem falar, porque afinal ele tinha confiado a alma a Deus e tinha também feito voto de castidade. Ele então falou que não amava porque queria. Que tinha lutado com todas as forças pra esquecer o que sentia mas ela era tão bonita que ele não conseguia esquecer e ele só ficaria curado se ela concedesse uma entrevista no quarto dela. Ela chorou mais ainda e pediu que ele fosse embora e não entrasse mais naquela casa. Ele se levantou mas antes de sair falou que queria ser perdoado e pediu pra voltar no dia seguinte, que nunca mais falaria nada a respeito daquilo tudo e voltaria a ser um padre casto. Aí ele foi embora.
No dia seguinte ele voltou e conversaram de pecadinhos e de orações e o padre não falou nenhuma inconveniência. No outro dia, a mesma coisa. Passou-se um tempo. A mulher acabou esquecendo tudo.
Vai que certa vez, depois que o padre confessou ela, ela beijou a mão dele pra se despedir, como fazia todo dia, e ele segurou a mão dela com força e disse com os olhos brilhando que não tinha conseguido esquecer e que a culpa era dela porque ela era bonita demais.
Disse tudo isso e saiu depressa.
A coitada ficou muito assustada e resolveu contar tudo ao marido. Ela não tinha contado nada ainda porque tinha medo. Os homens antigamente eram muito bravos e matavam por um isso-me-dói. Mas ela achou que o padre estava passando dos limites e resolveu contar. De noite, então, ela falou tudo pro marido. Aí o marido falou pra ela não se preocupar e de manhã dariam um jeito. E de manhã ele combinou com ela um plano.
Naquele tempo as casas não tinham banheiro. De noite as pessoas usavam um pinico e de manhã as pessoas lavavam os pinicos no rio. Mas muitas casas não ficavam na beira do rio, ainda mais as casas dos ricos, que ficavam na rua principal. Nessas casas eles arranjavam uma barrica muito grande e iam jogando os pinicos lá dentro e depois tampavam. Quando a barrica ficava mais ou menos cheia, os escravos levavam no rio e descarregavam a merdaria e a mijarada.
Aquele viajante era rico e na sua casa também tinha uma barrica. A barrica já estava até a metade e a mulher falou pros escravos levarem a barrica pro seu quarto. Eles levaram. Aí o marido pegou o cavalo e foi embora. Na hora da confissão, a mulher foi pro quarto e ficou esperando. O padre bateu na porta da casa toque-toque-toque. A escrava foi abrir e deu com o padre. Aí a preta falou que a mulher estava adoentada e ia receber a confissão no quarto dela. O padre perguntou pelo marido. A escrava falou que ele tinha ido viajar. Então o padre compreendeu que ela tinha resolvido do melhor modo e foi ao quarto dela. A preta abriu a porta do quarto e o padre entrou e a preta foi embora. A mulher fingiu que desejava ele mas falou que estava morrendo de medo porque o marido dela era muito bravo. O padre riu e disse que a estas horas ele já devia estar longe. Aí bateram na porta do quarto. A escrava gritou:
– Sinhá, é o sinhô que tá chegando!
A mulher deu um pulo da cama e fingiu grande aflição.
– Meu marido! Vai me matar! Vai matar o senhor! Vai matar nós dois.
O padre começou a tremer de medo. Aí a mulher falou:
– Pule a janela!
O padre olhou pela cortina e falou:
– Está louca! Estamos no sobrado e a rua tem muita gente. Eu ia quebrar uma perna e toda a gente ia desconfiar.
– Ai, meu deus do céu! O quê que eu vou fazer? O senhor tem que se esconder.
Aí o padre falou que ia se enfiar debaixo da cama.
– Meu marido é ciumento. Sempre olha debaixo da cama e dentro do guarda roupa. Ah, já sei! O senhor vai entrar aqui dentro. É o único lugar onde ele nunca olha.
O padre não queria porque sabia muito bem o que tinha dentro da barrica. Mas aí bateram com força na porta. Era o marido e ele gritou bem alto:
– Quem está aí?
A mulher cheia de medo respondeu:
– Espera um pouco, meu senhor! Estou vestindo o vestido.
Aí o padre viu que o único jeito era entrar na barrica de merda. Tapou o nariz e entrou. A mulher colocou a tampa e foi abrir a porta. O marido entrou e foi gritando:
– Por que demorou tanto?
– Desculpa, meu senhor. Eu estava me vestindo.
Aí o homem começou a procurar:
– Tem alguém aqui dentro?
– Mas, meu senhor, por que havia de ter?
– Ah, porque se tivesse eu matava ele. Podia até ser o filho do rei!
Aí ele olhou debaixo da cama e dentro do armário. E falou bem alto:
– Quero um banho!
Nessa altura o pobre do padre já estava quase sufocado. Se tampava o nariz, ficava sem ar. Se destampava, era um bafor tão violento que ele quase desmaiava. E a bostarada ia até o pescoço dele.
Aí a mulher chamou três escravos e falou:
– Levem daqui esta barrica e tragam uma tina com água quente para o banho do senhor.
Os escravos levaram dali a barrica e no descer a escada o mijo subia e descia e o padre quase se afogou na bosta.
Os escravos deixaram a barrica junto da porta e saíram. A preta destampou a barrica e falou rindo:
– Por aqui, seu padre!
O padre saiu todo emporcalhado e fugiu pela primeira porta que encontrou. Mal deu um passo na rua e a porta da casa foi batida.
Quando as pessoas da rua viram aquele padre inteirinho de merda, começaram a rir bem alto. Aí ele ficou furioso e foi andando e gritando:
– Gente porca, gente porca que atira barrica de merda pela janela! Gente porca! Gente porca!
E todo mundo descobriu depois a verdade e aquele padre se safou daquela cidade e nunca mais foi visto.