A ditadura da burrice 11: O PAÍS DE COCANHA
País de Cocanha, palcos deslumbrantes,
E luzes, matizes, e um som de quermesse.
Imagens que iludem gentes delirantes
Que nascem e crescem e morrem e estão
De acordo em tudo com a televisão.
Mas atrás do vídeo o que é que acontece?
E o que é que se vê, descendo ao porão?
O pobre jornalista Don Quixote, amordaçado.
O cabelo comprido empapado de sangue.
Rasgada a túnica, com bordados indianos.
A caneta quebrada num canto da sala.
E por sob os colares de conchas,
vestígios da tortura.
Ele é obrigado a escutar
a voz de bruxo do delegado a ranger,
como um odre gordo, cheio de vinho azedo:
nós não somos moinhos de vento;
e isto vai sempre acontecer
a cada vez que você
tentar socorrer, com sua pena do diabo,
menores ladrões, bichas e prostitutas.
Seu hippy idiota, eu não gosto
dessa sua bondade
mas o que mais me enfurece
é essa sua liberdade
de sair por aí, como quer,
e poder defender aos que ama.
E amanhã, como será?
Será ele torturado ainda uma outra vez
em algum outro lugar?
País de Cocanha, o estádio repleto.
Bandeiras ao vento, foguetes sem conta.
Platéias em fúria, o herói predileto,
O arcanjo ultrapassa terrível barreira
E é o gol que redime a fé brasileira.
Mas fora do estádio, o que é que se encontra?
E o que é que se vê, se é segunda-feira?
O professor Galileu Galilei,
famoso em todo o mundo civilizado,
encerrado numa cela vadia
por querer blasfemar, afirmando
que o que interessa não é nem o sol
nem a lua nem toda a tecnologia.
Mas tão somente o homem
e é em torno do homem
que gravita o universo de todos os atos
da humanidade.
Ele teve que se retratar e dizer
que é o progresso que se movimenta
e é o progresso que não pode parar;
conforme ensinou o filósofo Aristóteles Onassis.
E o senhor Galileu, um homem qualquer,
é impedido de ir por aí.
E amanhã, como será?
Será ele confinado ainda uma outra vez
em algum outro lugar?
País de Cocanha, em luz a avenida,
Nas arquibancadas o pasmo estrangeiro.
Pandeiros e surdos, eis o show da vida.
E brilhos e plumas e a mulata diaba.
O enredo, enaltece, a percussão, desaba.
E a vida no mês que não fevereiro?
E o que é que se faz quando a festa acaba?
Encerrado num lugarejo afastado
nos montes do Cáucaso
o professor Prometeu
que pretendeu, ousadia sem nome,
ensinar a ler o que não é escrito,
ensinar a desvendar a palavra enganosa
e a entender o mau cheiro escondido
nas brilhantes promessas da oratória.
Isto seria como dar fogo a crianças
que não estão preparadas para votar,
falou o ministro passarinho,
puxa-saco do Zeus das quatro estrelas.
E o professor Prometeu é visitado
diariamente por uma águia fardada
que vai lhe bicar com o bico podre
as mesmas perguntas de sempre.
O professor já está até sofrendo do fígado.
E amanhã, como será?
Será ele insultado ainda uma outra vez
em algum outro lugar?
País de Cocanha, pinheiros com neve.
Amor, o sagrado, de lado, o profano.
Mensagens de paz, o espírito leve.
Papai Noel nas lojas, comprar com vantagem.
Não mais pessimismo e nem malandragem.
Mas como é o amor no resto do ano?
Se não é natal, como é a mensagem?
Uma carta sofrida, chegada de fora.
Um tal de Gregório de Matos a assina.
Diz que tem saudades, quer voltar
e aguarda resposta ao seu pedido.
Mas o censor burocrata, homem inteligente,
que até conseguiu fazer
o primeiro ano do segundo grau,
sorri desdenhoso e vomita:
esse aqui, se depender de mim,
vai apodrecer no estrangeiro.
É desses músicos indecentes
que canta o que quer
e cada canção
tem mais palavrão
que palavras.
Além do quê, tem mania
de falar mal do patrão.
Não, não, não, não, não, não,
não, não, não, não e não.
E amanhã, como será?
Será ele exilado ainda uma outra vez
em algum outro lugar?
País de Cocanha, desfile da história.
Canhões, estandartes, vigor, galhardia.
Crianças a ouvir, discursos de glória.
Garboso uniforme. A espada dourada.
E o hino da pátria que a fileira brada.
E eu pergunto: O dia da Pátria é só um dia?
Que coisas encobre o fulgor da parada?
A cabeça de Tomás Morus, assassinado!
Suicidado na prisão.
Teria ousado um golpe de estado
o bom servidor da Constituição?
Saiu no jornal
que ele tentou contra a Lei
de Segurança Nacional.
Mas o que fez, realmente,
foi cometer o grave pecado
de se opor às decisões
do tirano zangado.
E divulgar os mistérios poltrões
da numerosa corte brasiliana.
E tudo se fez claro, como uma grande noite de corrupções.
E amanhã, como será?
Será ele assassinado ainda uma outra vez
em algum outro lugar?
Curitiba, 26.02.1981