18. Auto da Barca da Glória (1519)
Resumo:
Na parte final da trilogia, ao contrário das duas cenas anteriores, inteiramente em português, a cena da Barca do Paraíso é em castelhano. As duas barcas estão no cáis. O Diabo reclama com a Morte que esta só lhe traz “pobrecicos”, enquanto tardam os ‘”grandes e ricos”. A Morte lhe promete: “Verás que nada me escapa, desde o Conde até o Papa”. O que se segue é um majestoso ritual, próximo de uma missa de réquiem, onde cada um dos condenados, ao orar, repete lições e responsos da liturgia, alternando frases do ofício dos defuntos com textos religiosos (O Livro de Jó). O Conde, o Duque, o Rei, o Imperador, o Bispo, o Arcebispo, o Cardeal e o Papa são rejeitados pelo Anjo e condenados pelo Diabo. Ao Papa diz o Diabo: “Quanto de mais alto estado, tanto mais é obrigado a dar o melhor exemplo…”. Os Anjos anunciam a partida da barca porque as preces não foram ouvidas. Ao baixarem a vela aparece a pintura do crucifixo. De joelhos todos pedem pela última vez. Ainda assim os Anjos dão a partida. Mas vem o Cristo, estende a eles os remos da barca do Paraíso e os leva consigo.
GV040. Diabo
Los hijos de Doña Sancha…
(canta João Batista Carneiro)
Nunca fué pena mayor… (v. GV049)
GV041. Anjo
Vuestras preces y clamores,
amigos, no son oidas:
pésanos tales señores
iren á aquellos ardores
ánimas tan escogidas.
Desferir;
ordenemos de partir;
desferir, bota batel:
vosotros no podeis ir,
que en los yerros del vivir
no os acordastes dél.
(fala: Jorge Teles)
Comentário:
A concepção geral da obra é magistral. Pela primeira vez, Gil Vicente muda a tonalidade de seu texto, assumindo uma linguagem altissonante, grandiosa. Imita assim as tragédias sacras do final da idade média, das quais a mais fascinante e grandiloquente é o Auto de la Pasión (entre 1500 e 1503), de Lucas Fernandez (1474-1552), contemporâneo do dramaturgo português. Notemos, pois, com honestidade, que o teatro espanhol começou a se desenvolver antes do português. Os críticos espanhóis de hoje, todavia, por força do desenvolvimento de seu teatro posterior, consideram Gil Vicente o maior dramaturgo da península ibérica, no seu tempo.
A título de curiosidade, observemos que na citada tragédia de Lucas Fernandes há na fala de Mateus: Lágrimas, sangue e suor, para expressar o sofrimento da via crucis. Um discurso de Churchill vai tornar popular esta expressão, após a segunda guerra mundial. Com certeza estas palavras percorreram séculos, traduzidas em diversas línguas, a cada vez que o sofrimento exigisse do ser humano um esforço sobrenatural.
A Barca do Paraíso oferece algumas constatações: o povo falava o português e a corte o espanhol. Dentre as duas hierarquias, a política e a religiosa, a religiosa era mais poderosa, pelo menos em Portugal. Os mortos vão surgindo na ordem de poder, o temporal culminando com o imperador e o religioso com o papa.
Aos nossos olhos de hoje o final é bajulador e desconsidera os crimes e as maldades dos grandes, mesmo levando-se em conta que durante a peça todos são mostrados a nu e ridicularizados pelo Diabo. Cristo surge como um Deus ex machina. E os ricos e poderosos não vão pro inferno. Parece até a justiça de certos países.
Sobre a postura de Gil Vicente me vem à mente uma anedota dos tempos da ditadura no Brasil. O torturador dizia: desculpem, mas eu preciso sobreviver. Talvez a diferença entre um torturador hideputa e um grande artista seja que no rastro do primeiro há mortes e dores e no do segundo a perenidade conquistada por uma obra de arte.