canção 04. vende tudo que tens e segue-me

A ditadura da burrice 02: VENDE TUDO O QUE TENS, E SEGUE-ME

Não era ensolarado o dia em que chegaste,
não era não, decerto, mas, todo esse frio,
quem o trouxe até nós, e quem, o desvario
plantou em nossa casa, horror que se não baste?

Não foi a nossa sorte, a sorte a que libaste,
com o vinho, sangue negro atroz, formando um rio
e a música estertor do enfurecer vadio
e os lobos no covil, comandando o desbaste!

Não foi pensando em nós que pensaste a loucura,
nem foi a defender-nos que armaste a armadura,
e nem à nossa causa empregaste o coveiro.

Tudo isso, a falcatrua, o desconsolo, a agrura,
todo esse desatino, a infecção, a tristura,
tão só por engordar teu saco de dinheiro.

(canta jorge teles)

Curitiba, 28.09.1977

GIL VICENTE 11. FARSA CHAMADA AUTO DAS FADAS (1512)

fada

Resumo:

    Ginevra Pereira, feiticeira, se apresenta diante da corte. Explica aos reis sua profissão e se diz necessária para resolver problemas de amor das pessoas. Para isso, diz ela, é preciso invocar os mortos, andar nua pelos cemitérios. Está sendo perseguida por um meirinho, que é um policial da justiça da época. Resolve fazer feitiços diante de todos, para mostrar seu poder. Chama um diabo e este chega, falando uma algaravia (um francês da Picardia, ininteligível). Discutem. Ela fala em “Jesu” e ele começa a falar português. Manda que ele vá às Ilhas perdidas e traga três fadas marinhas (sereias). Ele traz do inferno dois frades, havia entendido errado. A Feiticeira manda que um deles faça uma pregação. Tomando o mote de Virgílio “amor vincit omnia” (o amor vence tudo) ele prega, fazendo alusões aos amores das pessoas presentes. A seguir ela entoa uma engraçadíssima paródia de ladainha. Vêm as Fadas, cantando. Estas passam a ler a sorte aos reis, príncipe e infantes. Para os demais lêem a sorte, relacionando cada um deles a um animal.

GV027. Fadas e Sereias

Qual de nós vem mais cansada
Nesta cansada jornada?
Qual de nós vem mais cansada?

Nosso mar he fortunoso,
Nosso viver lacrimoso,
E o chegar rigoroso
Ao cabo desta jornada:
Qual de nós vem mais cansada
Nesta cansada jornada?

Nós partimos caminhando
Com lagrimas suspirando
Sem saber como nem quando
Fará fim nossa jornada.
Qual de nós vem mais cansada
Nesta cansada jornada?

(cantam Carmen Ziege e Kátia Santos)

Comentário:

Texto quase todo em português. A fala do diabo é, inicialmente, em francês irregular. E o sermão do frade é em espanhol e em decassílabos. Eis uma das mais engraçadas peças de Gil Vicente. Pena que o final não tenha muito significado para nós modernos, por constar de alusões aos nobres e seus vícios e virtudes. Cabe observar que, num Portugal tão católico (após pouco mais de 20 anos a Inquisição se instalaria no país), o Autor apresentasse um tema tão perigoso, quase justificando-o. A apresentação de uma feiticeira que resolve, principalmente, problemas de amor, é uma situação semelhante a da alcoviteira, mulher que faz intermediação entre os amantes, geralmente em adultério. Eis a pacífica convivência entre as normas éticas e uma moral explicitamente hipócrita, que não escapa à observação de Gil Vicente. Muito do humor vem desse impasse. Os diálogos são ágeis e cômicos.

A canção das Fadas tem um texto triste e lírico. O dramaturgo se firmava como um dos mais importantes de sua época, original e ousado.

canção 03. reflexão pequenininha

Canções Diversas 01: REFLEXÃO PEQUENININHA.

Perdido no nevoeiro
da vida mal percebida,
pensei em pensar, primeiro,
pra não errar toda a vida.

Mergulhei no contratempo
pra vencer o mundo meu.
Não queria perder tempo,
mas o tempo me perdeu.

Achado no nevoeiro,
Eu pude entender a vida.
E fui o meu timoneiro
pra vida ser bem regida.

Criei o meu passatempo
Mas meu mundo envelheceu.
Queria enganar o tempo,
e o enganado fui eu.

(canta jorge teles)

Curitiba, 1976