quatro marias (roteiro de filme, 3)

QUATRO MARIAS – Parte 3

(roteiro de filme)

Terceira parte: A dor humana não cabe num picadeiro.

 

Seqüência 24:

 

          Dentro da barraca de Jorge e Maria. Maria senta-se a uma mesa pequena e escreve uma carta. Um close permitirá que se leia: Minha mãe. Maria está num vestido muito ordinário. A cena vai se alternar com imagens de dona Maria lavando roupa no rio, estendendo a roupa, recolhendo a roupa, colocando num cesto, entregando o cesto a um dos filhos, que sai. E também com imagens de dona Maria conversando com os filhos, como quem conta uma história. Todos sentados num chão de cozinha, comendo com as mãos. Ela conta, eles ouvem. Sobre estas cenas alternadas, Maria com a carta e dona Maria, aparecerão os dois textos: Terceira parte. A dor humana não cabe num picadeiro.

 

Seqüência 25:

 

          Jorge entra na barraca. Olha severo para a mulher. Nesta terceira parte, ele será o tempo todo grosseiro, não sorrirá. Um brutamontes. Ela fala:

          – O prefeito da cidade falou pra você ir lá. Quer conversar.

          – Conversar? Já conversei com o padre. Já está tudo combinado.

          – Veio um menino aqui e deu este recado.

          – Vou lá, então, conversar com o filho-da-puta. Me dá um pouco de pinga.

          – De dia, homem… Hoje à noite tem a estréia.

          – Cala a boca, vagabunda. Me serve a pinga e fique calada.

          Maria baixa os olhos e apanha a pinga. Ele bebe um pouco e sai com o copo na mão. 

  

       

Seqüência 26:

 

          Durante o caminhar levará um esbarrão do ceguinho.

          – Não enxerga?, animal. É. Não enxerga. Presta atenção aos ruídos, safado. Quase derrubou minha pinga.

          – Desculpa.

          – Fala direito, infeliz.

          – Desculpa, seu Jorge.

          Enquanto caminha em direção à saída do acampamento, cantarola:

          – Pombinha tola

          Caiu no laço do caçador…

          Volta-se rápido e grita:

          – Ceguinho!

          O ceguinho, lentamente, vai até ele, testando o caminho com um bastão.

          – Sim, senhor, seu Jorge.

          Jorge o segura pelo ombro. Primeiro delicadamente. Depois, meio que o levanta violento. E já novamente delicadamente:

          – Escuta aqui, seu ordinário. Este teu segredinho de merda, qualquer criança sabe o que é. Tá escutando? Qualquer burro descobre. Então, presta atenção. Está escutando?

          – Sim, senhor, seu Jorge…

          – Se você tiver a coragem de se aproximar da rainha… Está escutando?

          – Sim, senhor, seu Jorge…

          – Eu furo os teus olhos. Ah, com você, isso não adianta. Eu corto os teus dedos. Está escutando?

          – Sim, senhor, seu Jorge…

          – Agora, desapareça da minha vista. Cachorro leproso!

          O ceguinho começa a se afastar. Jorge ri, fora de si. E grita novamente:

          – Ceguinho! Aqui!

          O ceguinho volta.

          – Você fica tremendo feito vara verde. Te cuida. Quero uma sanfona bem tocada. Vou te dar um conselho.

         

Seqüência 27:

 

          Jorge o toma pelos dois ombros, esfrega as mãos suavemente. E começa a conduzi-lo pelas ruas, com suavidade.

          – Vamos por aqui. Um conselho de amigo… Sou teu patrão e zelo pelo espetáculo. Ouça o meu conselho. Presta atenção! Imaginar, ceguinho, imaginar você pode. Escutou? Tudo! Tudo que você quiser imaginar… você pode. 

          O ceguinho se mostra transtornado, seus olhos marejam.

          – Imaginar… o que você quiser… já pensou? O que você quiser… Seu safado! Se você ficar feliz… tua sanfona vai soar mais bonita durante o espetáculo. E é isso que eu quero. Na tua imaginação… a rainha é tua… Seu safadão. Você é um homem feliz… 

          O ceguinho se acalma um pouco.

          – Mais uma coisa, ceguinho. Quero dizer que sou teu amigo. Zelo pelos meus empregados. Alguém do circo me disse que você conhece uns versos…

          – Minha vó lia pra mim, seu Jorge.

          – Quem sabe… ceguinho… Pensa bem! Uma sanfona baixinho… e você… solta um verso bonito pra platéia… E agradece os aplausos… Ceguinho, diga um verso, quero ver se é verdade mesmo… diga um verso!

          O ceguinho novamente se mostra nervoso, está muito emocionado.

          – Vamos, ceguinho. Sou teu amigo. Fala. Põe a alma na boca!

          – Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada…

          – E triste, e triste e fatigado eu vinha… Esse, eu conheço, ceguinho. Esse é dos bons. Vamos, ceguinho, outro… outro…

          – Ventre mártir, a rútila visita do amor fecundo te arrancou do sono…

          – Para a maternidade e para a glória.  Ceguinho, você aprendeu os melhores. Mas esse soneto… não, esse você não pode falar. Vai fazer a rainha chorar. Ela nunca engravidou. Você não sabe?, ceguinho. A rainha nunca engravidou. Nossos filhos são da minha primeira mulher… Outro verso, ceguinho. Outro verso… Pensa com calma. Temos tempo. Estamos indo até a Prefeitura… Vamos…

          – Quero um beijo sem fim, que dure a vida inteira e aplaque o meu desejo…

          – Ferve-me o sangue. Acalma-o com teu beijo. Beija-me assim! Viu, só, ceguinho. Conheço todos. Este é um dos mais bonitos. Mas é muito grande. Quem sabe um dia você declame um pedaço dele diante da rainha. Ela gosta muito desse poema… Pensa bem, ceguinho. Uma sanfona toca baixinho e você declama um poema… de roupa nova… e o público aplaude, você agradece… quem sabe, até o povo do circo entra em cena e aplaude junto…

          Jorge pára.

          – Daqui pra frente, eu vou sozinho, ceguinho. Pode voltar pro circo.

          – Eu não conheço o caminho, seu Jorge.

          – E daí?, ceguinho. Não te falei que eu ia maltratar você? Você que se vire. Não quer ser feliz? Pra ser feliz, tem que sofrer. Vagabundo… Safado… Quero uma sanfona bem tocada, monte de merda. Está escutando?

          – Sim, senhor, seu Jorge.

          – Agora vai, homem de Deus. Saia da minha frente.

          – Obrigado, seu Jorge.

          – Obrigado? Obrigado, por quê?

          – O senhor não entende, seu Jorge. O senhor não entende… Posso ir agora?

          Jorge o olha e quase sente piedade.

          – Vai embora, homem de Deus. Cuidado pra não cair. E… não esqueça daquele conselho que te dei… Na imaginação… Tudo… tudo… Agora… vamos lá ver o que aquele viadão quer comigo.

          Começa a caminhar. Caminhando, olha o copo vazio em sua mão, joga-o no chão, quebrando-o, e desaparece.

 

Seqüência 28:

 

          As pessoas do circo organizam cenários e objetos para a apresentação. Jorge está voltando. Entra no meio deles:

          – Atenção, minha gente. Quero falar com todo mundo. Todo mundo aqui, agora. Menininho!

          Menininho se aproxima. Agora, é um adolescente. Através dele e de Menininha, agora, uma mocinha, perceber-se-á que algum tempo passou.

          – Cadê a sua mãe?

          – Tá na barraca.

          – Mande ela vir aqui.

          Todos vão se juntando.

          – Tenho uma boa notícia. Um boa notícia. Hoje à noite… depois da nossa estréia… o Prefeito… vai dar uma festa para nós, para o pessoal do circo. E só vai convidar gente granfina… Uma festa só para nós. Vamos ter que caprichar hoje à noite…

          Todos se alvoroçam e falam ao mesmo tempo. Alguns dançam. Os filhos de Jorge o abraçam. Vai saindo com eles. Maria vai junto, um pouco atrás.

          – Viu?, mulher. Que notícia! Vamos à festa… vai ser no pavilhão da escola…

          – Pois eu não vou.

          – Como é que não vai? Como é que não vai?

          Despede os filhos e fala ríspido:

          – Vão, vão. Vou conversar com tua mãe. (Os dois desaparecem, depois de um olhar sério para ambos).

          – Como é que não vai?, sua vagabunda. Quer me fazer ficar com cara de palhaço?

          – Como é que eu vou nesta festa?, homem. Tem dois anos que eu não compro um vestido novo. Eu tô falando pra você…

          – E pra que é que quer um vestido novo, vagabunda. Pra ficar balançando o bundão na frente dos homens…

          Maria baixa os olhos.

          – Responde, sua pestilenta. Responde.

          – Cada dia tá mais difícil de conversar com você, criatura. Parece um bêbado louco. Eu não sei mais o que fazer…

          Ele apenas a olha.

          – Vocês vão pra festa e eu vou visitar o meu sobrinho. Quero saber notícias da Milota.

          – Às vezes eu me pergunto pra que foi que eu te tirei daquele puteiro maldito…

          – Pois pra que foi? Pra cuidar dos teus filhos. Pra lavar a tua roupa. Cozinhar pra esse povaréu…

          – Esqueceu que eu cuido bem de você toda noite, na cama?, vagabunda.

          – Não quero mais falar disto, criatura. Eu tenho até vergonha.

          – Então por que não ficou naquele puteiro do diabo?

          – Lá, pelo menos, pra páscoa e pra missa do galo, a dona Olinda dava um dinheirinho e cada uma ia na venda do seu José e comprava um tecido colorido e costurava um vestidinho novo. E eu?, criatura.

          – Pois eu vou sozinho. Quem sabe arranjo por lá uma gostosona e leva ela num hotelzinho… Desgraçada… Você empesteia a minha vida!

          Sai. Maria olha para o chão, triste, e assim fica um tempo.           Entram os dois filhos. Estão sem graça. Menininha fala:

          – Você não vai, mesmo?, mãe. Eu também não queria ir. Minhas roupas estão tão velhas… Mas eu tenho medo do pai brigar.

          – Vai, sim, minha filha. Vocês vão se divertir. Eu… é que já não tenho gosto com estas coisas.

          Maria sorri para eles. E os abraça. A cena escurece.

         

Seqüência 29:

 

Pantomima:

 

          Jorge vai surgindo no centro do picadeiro, com as roupas da primeira apresentação. Uma música sinistra indicará que se trata do irreal. Falará, mas sua voz não será ouvida. Anuncia, em gestos econômicos, a apresentação. À sua frente há uma placa coberta por um pano vermelho. Jorge, solenemente, tira o pano e apresenta a placa, onde se lê: Hoje: O triângulo fatal. 

 

          Entra um casal, vestido com as mesmas roupas barrocas das pantomimas anteriores. O homem está coberto por um manto azul, brilhante. Dançam. Outro jovem se aproxima e começa a dançar sozinho. O homem da dupla pára de dançar e fica a olhá-lo. A mulher e o jovem dançam sozinhos, um de costas para o outro, longe um do outro. Cai o manto azul do outro homem e ele se apresenta de negro. Pega ao lado uma máscara de demônio do teatro oriental e um grande punhal. Com gestos teatrais, mata o jovem com uma punhalada no coração e, a seguir, a mulher. E se mata, ao fim.

 

          Cenas da festa. Muita gente dançando e comendo. No meio deles, vez ou outra, um rosto do circo. Jorge está de pé, junto a um tipo de balcão, bebendo. Chega alguém do circo. Ele pergunta:

          – Cadê o ceguinho.

          – Não sei. Não vi. Como é que ele podia vir, se o senhor não quer que ninguém o ajude?

          A pessoa sai.

          Jorge começa a abrir caminho entre as pessoas. Encontra Chico.

          – Se perguntarem por mim, diga que estou por aí.

          – Não vai ficar?, seu Jorge.

          – Não. Vou me divertir dum jeito muito melhor.

          Caminha e se perde no meio das pessoas.

         

Seqüência 30:

 

          Está entrando no acampamento. Dirige-se a uma das barracas mas vê luz na sua. Vai para lá. Entra. Maria está sentada, cotovelos sobre a mesa e a cabeça entre as mãos. Jorge fala:

          – Você não ia na casa do Zico?

          – Desisti.

          – E por quê?

          – Não quero falar…

          – Não quer falar… Ou fala de mais ou não quer falar… Você sempre complica tudo.

          – Pois eu vou falar… como é que eu vou aparecer na frente do meu sobrinho vestida feito um trapo?… Pra eles pensarem que eu estou passando fome? Estou ficando cansada desta merda de vida.

          – Merda de vida? Merda de vida? E o que é que queria?, vagabunda. Que todo o meu dinheiro servisse pra comprar vestidos? Pra ficar por aí…

          – Chega, chega, criatura. Você não vê como trata a gente? Tua filha parece uma mendiga. Eu, nem se fala. 

          – Se não está gostando, por que não desaparece? Hã?

          – É o que eu me pergunto toda a noite. E você, por que é que você não me manda embora?

          – É o que eu me pergunto todo dia.

          – Ô, meu Deus! Por que é que a gente tem que ficar escravizada a uma pessoa, amarrada?… amarrada de corpo e alma… A gente não devia ter se casado…

          – Pois, então, desapareça, sua filha-da-puta! Desapareça.

          Maria choraminga.

          – Eu já tinha ido, se não fosse pelas crianças.

          – Não são mais crianças. Não vê que já podem cuidar de si mesmos?

          – Pra mim serão sempre crianças.

          – Nem são teus filhos!

          – Ô, criatura, não fala uma coisa destas. São meus filhos… São meus filhos…

          – Nem pra me dar filhos você prestou! Puta!

          Maria começa a chorar.

          – Não seja cruel, criatura. Chega! Você sabe que a culpa não é minha.

          – Se não tem filhos, Deus deve saber o motivo… Me dá uma pinga. Um copo cheio.

          – Pare de beber, homem. Não viu o que aconteceu com o Juca da Milota? Encheu ela de filho, começou a beber, ela teve que ir pro Rio com os menores.

          – A safada abandonou o marido? Foram pra casa da tua irmã… sabidona… morar na capital, num apartamento.

          – Lá não cabia todo mundo. Colocou as quatro crianças num orfanato.

          – Isso não mata ninguém. Me dá uma pinga. Um copo cheio.

          – Pega você.

          Ele a olha com raiva, dá um murro na mesa e se levanta. Pega a pinga e enche um copo. Bebe um grande trago.

          – Trouxe você pra mim, pra me fazer feliz. Não pra ficar dia e noite com essa cara amarrada…

          – Pra viver esta vida? Você não me deixa sair… não posso nem olhar pro lado… Se não fosse pela festa, eu não ia poder visitar meu sobrinho…

          – Por que eu te conheço!, vagabunda. Quem foi puta uma vez, sempre vai ser puta. E não chore de novo que eu não agüento ver essa tua cara feia.

          Maria começa a pensar em voz alta.

          – Até pra aprender a ler, tive que aprender com as crianças… Se não, ia ficar uma burra velha…

          – Mulher não precisa ler nem escrever. Pra mandar bilhetinho pros machos?

          Maria o olha, agressiva. Levanta-se e ameaça sair. Jorge é rápido:

          – Fique aqui, mulher… Fique aqui… Eu também sofro… Tenho estado cansado…

          Ela o olha, baixa a cabeça e se senta. De novo a cabeça entre as mãos.

          – Ô, criatura, como eu fui boba. Sonhei! Sonhei feito uma menininha. O circo! Lantejoulas! Luzes! Você se lembra? Disse que eu ia entrar no picadeiro, vestida de rainha, até coroa ia ter, e ia cantar a música Pombinha Branca… Pombinha Branca…

          – Não fique triste, mulher. Nem sempre é do jeito que a gente quer.

          – E o meu teatro? E o meu teatro?

          – Que teatro?, mulher.

          – Na cabine do caminhão, saindo de Manhuaçu, uma criança de cada lado, dormindo no meu colo. Você falava sem parar. E passava a mão na minha nuca. Que eu vou escrever um drama pra você. Tudo em verso. Um drama de amor… Tudo em verso…Será a história de uma moça, inocente, levada pra um puteiro, por ignorância da mãe dela… E chega um circo… E o dono se apaixona por ela e ela foge com ele. E na primeira noite em que estão juntos… ele descobre que ela era virgem. E dizia que todo mundo gosta destas histórias. E que ia se chamar A Puta Virgem. Não, não, depois disse que a palavra puta não pode aparecer, se não as casadas não iam querer assistir. O título ia ser: A prostituta Virgem. Todo mundo gosta disso. E será tudo em verso. Tudo em verso.

          Jorge a olha e demonstra estar muito comovido. Durante este relato de Maria, começará a soar, bem baixinho no começo e aumentando aos poucos, uma sanfona. Enquanto Jorge olha Maria, percebe a sanfona e pergunta ríspido.

          – Que sanfona é esta?

          – Como é que eu vou saber? Deve ser o sanfoneiro.

          – O ceguinho?

          – E tem outro?, criatura.

          – E o que é que este desgraçado está fazendo aqui? Hum… entendo. Tô entendendo. Vocês dois… (debochado) Vou na casa do meu sobrinho… (muito baixinho) Malditos…Malditos…

          – Não seja louco de pensar uma coisa destas… Não seja louco…

          Jorge esfrega o rosto com as mãos. E fala:

          – É. Hoje é mesmo um dia de festa. Vou convidar ele pra beber um vinho com a gente.

          – Que vinho?, criatura.

          – Tenho um vinho aqui no circo. Escondido. Guardado para uma ocasião especial. Vou lá buscá-lo. E vou trazer o ceguinho.

          – Quer que eu vá?

          – É bem o que você quer, não? Sua puta… Desculpa… Desculpa… Estou muito nervoso hoje.  (Esvazia o copo). A estréia… a estréia… deixa pra lá…

          Sai.

         

Seqüência 31:

 

          Jorge se dirige à barraca. Tem uma garrafa de vinho na mão e com a outra ajuda o ceguinho. Educadamente.

          – Entra, entra, rapaz. Olha o degrau. Vamos fazer a nossa festa… a nossa festa será melhor do que a deles…

          – Seu Jorge, não é melhor eu ir embora?

          – Ô, homem de Deus, está com medo de quê? Hoje é festa. A tua patroa vai gostar.

          Entram na barraca. Maria olha. Está desconsolada.

          – Mulher. Aqui estamos. Sente-se, ceguinho. Sente-se. Isto. Aqui estamos. Os três.

          – Deixa o moço ir dormir, criatura.

          – Não hoje. Hoje é o dia! Ceguinho! Fale uma poesia pra tua patroa. Cadê a sanfona? Ah!, que pena. Esquecemos da sanfona. Fale uma poesia. Vamos.

          O ceguinho está assustado.

          – Vamos, rapaz. Eu não quero ficar irritado!

          Jorge vai até ele, se agacha e põe a mão em seus ombros.

          – Vamos, rapaz. Uma poesia para a patroa!

          O ceguinho se levanta, balbucia quase inaudível:

          – Quero um beijo sem fim, que dure a vida inteira e a…

          Jorge corta ríspido:

          – Ah, cabra safado! Isso lá é poesia pra se falar na frente de uma senhora casada?

          O ceguinho esconde o rosto nas mãos.

          – Fale uma poesia. Fique calmo. Todos no circo… somos uma família. Estão todos se divertindo na festa do prefeito mas nós estamos aqui. Nós três. Somos uma família. Vamos lá, vamos lá! Fale uma poesia pra tua patroa.

          O ceguinho, já começando a chorar:

          – Armas… num galho de árvore… o alçapão… E, em breve… uma avezinha descuidada…

          E Jorge, cortando:

          – Isso, garoto. Batendo as asas, cai na escravidão…  Sente-se, ceguinho. Obrigado, ceguinho. Estou muito emocionado mas não vou bater palma.

          Maria está de pé, petrificada. Olha, mas não tem coragem pra se mexer. Jorge se levanta. Abre a garrafa, solene. Pega três copos. Enche os três. Pega um copo.

          – Primeiro, você, ceguinho. (levanta o copo) O cordeiro inocente.

          Vai até o ceguinho. 

          – Ceguinho, vou beijar a tua testa. Assim. Agora, beba. Eu ajudo. Assim. Assim.

          Maria começa a chorar. Corre até a cama. Cobre-se com o lençol. E se põe novamente na posição da virgem do quadro de Dante Gabriel Rosseti.

          – Agora, você, mulher. (levanta o copo) A puta virgem.

          – Você não vai fazer isto comigo. Filho do diabo!

         

Seqüência 32:

 

          Corte abrupto para a festa do prefeito. Nesta seqüência, todas as imagens serão da festa. Tudo em câmara lentíssima. Rostos sorridentes, gente dançando, homens bebendo. Discurso do prefeito, palmas. Alegria.

          Sobre estas cenas, os gritos de Jorge e Maria representarão os gritos de uma cena de estupro:

          – Você não vai fazer isto comigo, filho de diabo!

          – Venha aqui, vagabunda. Você é minha. Você é minha. Puta. Eu vou te possuir. Vou te possuir, sua puta.

          – Me larga, desgraçado. Me larga. Tá me machucando. Pare. Tá me machucando.

          Os dois berram juntos:

          – Me larga! Fique quieta. Assim! Assim! Puta! Você é minha!      – Desgraçado! Me solta! Rasgou a minha roupa! Pare! Pare com isto! Pare com isto! (chorando) Assim! Assim! Abra! Abra, sua filha duma puta! Eu vou enfiar tudo! Assim! Assim! Tudo! Tudo! Assim!

          De repente, surge Jorge dando o último gole do copo à Maria, que está com a roupa toda rasgada.

          – Tudo! Abra! Tudo! Assim!

          Jorge deixa cair o copo vazio.

          Vai até a mesa, pega o último copo. Está tremendo. Olha para os dois.

          – Agora, eu. (levanta o copo) O que mata por amor! O que mata por amor!

          Maria fala baixinho:

          – Não faça isso, criatura. Pense nas crianças!

          – Eles terão que me perdoar.

           E bebe. A cena escurece.

         

Seqüência 33:

 

          A cena clareia e mostra os três na mesma posição. Close do ceguinho: está paralisado, olhando para o alto. Close de Maria: está paralisada, olhando pra frente. Close de Jorge: o mesmo, olhando para o vazio. Maria fala:

          – Quanto tempo isto vai durar?

          – Não sei. Esqueci de perguntar. Sei que não vai doer. Vamos sentir sono e dormir. Mulher!

          Maria não responde.

          – Mulher! Eu nasci no picadeiro. Quero morrer no picadeiro. Venha comigo…

          Levanta Maria e dá-lhe o braço. Vão até o cego.

          – Venha, ceguinho. Venha também. Eu ajudo.

          Os três estão com o olhar perdido no vazio. Como que hipnotizados.

          – Vamos… Vamos…

         

Seqüência 34:

 

          Durante toda a cena os três se mostrarão como que hipnotizados, olhando para o vazio. Como se já estivessem mortos.

          O picadeiro. Ainda vê-se a placa da pantomima. Jorge deixa os dois, vai até um canto, pega cadeiras e as dispõe num triângulo, todas próximas. Senta os dois, delicadamente. Senta-se. Fala o ceguinho, como que num delírio:

          – Quero um beijo sem fim, que dure a vida inteira e aplaque o meu desejo…

          Jorge levanta Maria. Leva-a até o ceguinho.

          – Mulher. Dê um beijo na boca do ceguinho.

          – (chorando) Você é demente?, criatura. Está completamente louco!

          – (chorando) Dê um beijo nele, mulher… Pra que a alminha dele vá pro céu.

          Maria olha o ceguinho, que está em estado de êxtase. Olha apavorada para o marido. Vai até o cego.  Pega-o no rosto, com as duas mãos. Dá-lhe um beijo casto. Olha-o. Puxa seu rosto e dá um beijo demorado em sua boca. Continua hipnotizada. Vai em silêncio e se senta. O ceguinho:

          – Obrigado, seu Jorge.

          – Homem de Deus. Eu te mato e você me agradece…

          – Obrigado, seu Jorge. O senhor não entende isto… Eu morro como o homem mais feliz da terra. Eu era um papel, seu Jorge. Um papel em branco. Depois daquela noite… a noite do bis… o senhor me ensinou…

          – Quem te disse que era eu?, homem de Deus.

          – Alguém do circo me contou, seu Jorge. Mas eu sempre soube… Só o senhor fala da… Rainha… Depois daquela noite… o senhor me ensinou… que sonhar é bom. Se eu não tenho uma estrela… eu sonho… e ela vem parar na minha mão… Dona Maria… Dona Maria…

          Maria, apesar de petrificada, tem os olhos cheios de lágrimas.

          – Fala, criança. Fala.

          – Eu nunca vi a senhora. Foi bom não ter visto… A senhora… a senhora tem uma voz maravilhosa…

          O ceguinho e Maria escondem o rosto entre as mãos. Faz-se um silêncio. Depois de um tempo, Jorge fala:

          – Mulher…

          Maria não se move.

          – Vou te contar um segredo. Vou te fazer uma confissão. Eu te comprei, mulher. Eu te comprei como quem compra uma égua. Se você tivesse fugido comigo, nunca mais eu ia poder voltar naquela cidade. E aquela cidade sempre deu um bom dinheiro. Eu te comprei da dona Olinda. Dei pra ela uma grossa corrente de ouro puro.

          Após um silêncio:

          – Mulher…

          Maria não se move.

          – Um dia, eu mandei o Chico lá, com muito dinheiro. E ele comprou dela a corrente. Falou que eu queria. Paguei o dobro. E eu fui num ourives. Mandei derreter. E ele botou mais ouro. Ouro puro. E fez um presente pra você. Está aqui, mulher. No meu bolso. É tua.

          Jorge vai até ela. Tira do bolso uma pequena estatueta. É a Virgem das Dores, com suas sete espadas. Em ouro. Maria olha. Volta a cobrir o rosto com as mãos.

          – Deixa eu morrer em paz, criatura. Deixa eu morrer em paz… Estou pensando nas crianças… Estou pensando na minha mãe… Por que é que Deus criou tanto sofrimento?…

          Jorge volta a se sentar. Olha o ceguinho. Vai até ele, levanta-o e faz com que ele se deite no chão. Faz o mesmo com Maria. Beija a mão dela e se deita junto. Abre os olhos e vê a jóia. Fecha a imagem na mão. 

          Os três rostos estão um pouco sonolentos. O ceguinho começa a recitar, baixinho, mecanicamente:

          – Se por vinte anos, nesta furna escura…

          Deixei dormir a minha maldição…

          Hoje, velha e cansada da amargura…

          Minha alma se abrirá… como um vulcão…

          Maria fala baixinho:

          – Você foi o único homem que amei…

          Jorge fala baixinho:

          – Mulher… Perdoa, minha santa… Perdoa…

          Por um momento, ouvir-se-á os três repetindo, vozes sobre vozes, cada vez mais baixo:

          – … como um vulcão… você foi o único homem que eu amei… Mulher… como um vulcão… você foi o único homem que eu amei…

          Jorge percebe que os dois silenciaram.

          – Mulher! Mulher! 

          Olha a mão fechada:

          Perdoa, minha santa… Perdoa…

          Começa a apertar a mão que tem a jóia. Um close de seu rosto mostra que está doendo. Um close da mão, demorado. Nesse momento ouvir-se há gemidos de Jorge, cada vez mais fortes e mais rápidos, com closes da mão que se fecha e do rosto, até um berro doloroso, quando ele gritará:

          – Maria.

          Nesse momento, sairá sangue entre seus dedos.

          E todos estes sons repetirão os gemidos roucos de um orgasmo colossal.

          A cena escurece.

         

Seqüência 35:

 

          Corte abrupto para um grupo de pessoas que caminha pelas ruas. É o pessoal do circo, voltando da festa. Estão alegres, falam alto. Mas nenhuma fala é entendida em especial. 

          Já se aproximam do circo. Um rosto arregala os olhos. Confusão total e frases simultâneas:

          – Será que não estão? Aqui está tudo derrubado. Será que deu ladrão? Mãe! Pai! Alguém acende a luz. Alguém pegue uma lanterna. A chave geral está desligada. Acendam a chave geral! Acendam a chave geral!

          De repente, todo o circo fica aceso. Todas as luzes. O grupo entra aos poucos e, um após o outro, param, olhando o centro do picadeiro que não será mostrado. Um close mais demorado mostrará Menininho, depois Menininha. A cena se fundirá com…

         

Seqüência 36:

 

          … Uma foto dos três, caídos, publicada num jornal. Aos poucos vai-se aumentando o plano e vê-se um jovem, sentado a uma mesa com o café servido. É Zico, sobrinho de Maria. Está lendo a notícia. Seu rosto mostra preocupação. De repente ele dá um grito:

          – Eva! Eva!

          Surge na porta o rosto de uma mulher jovem.

          – O que foi?

          – O Jorge Carvalho matou a tia Maria. Matou e se matou em seguida. Está aqui no jornal.

          O rosto da mulher, à medida que o homem vai contando, vai se contraindo.

          – A polícia acha que foi isso. Por que ela está toda machucada. Tem também uma terceira pessoa, o sanfoneiro do circo. Ninguém soube explicar por que ele estava ali. E diz… o Jorge morreu com um objeto na mão ensangüentada. O médico não quis abrir a mão dele, ia ter que cortar…

          Batem à porta.

          – Quem será.

          – Eu vou ver.

          Ela vai e já volta.

          – A polícia quer que você vá à Delegacia. Alguém da família tem que reconhecer os corpos. Os filhos dele falaram seu nome.

          Zico fica pensativo.

          – Que chato. Vou ter que mandar uma carta pra vovó Maria.

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