Alma desdobrada, cap. 86, 87, 88, 89 e 90.

Alma desdobrada, capítulos 86, 87, 88, 89 e 90.

  

086.

 

         escrevi na minha mão: amar é achar um pai; desamar é ficar novamente órfão.

  

087.

          não sei o que espera meu choro. não sei por que ele não se desencadeia de vez, em vez de ficar se amarrando por dentro. me amarrando, como eu tenho sentido nestes últimos dias.

         me amarrando sem cordas. num purgatório.

 

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Alma desdobrada, cap. 82, 83, 84 e 85.

Alma desdobrada, capítulos 82, 83, 84 e 85.

  

082.

          saio da terapia e entro na estação terminal do ônibus expresso. não quero contatos, quero apenas ir para casa, para dormir por um bom tempo um sono de recém-nascido. mas vejo que há um jovem se dirigindo ao sanitário. vou atrás. ele pára no bebedouro, eu entro. enquanto limpo o rosto com o lenço, ele se chega. é forte, tem o rosto bonito, olhos de anjo semimorto, estranhos olhos aguados de um verde esquecido no antes. é um olhar de vampiro, meio cadáver. ele percebe que eu começo a desabotoar a calça, fixa os olhos em minhas mãos. eu urino e exibo meu princípio de ereção. ele urina, olhando-me com olhos de obsessão, mas protege a visão do seu sexo.

         está indo pra casa? sim! mora onde? atrás do boa vista.

         silêncio. olhares cúmplices. eu sorrio.

         quer dar umas voltas comigo? não tenho dinheiro. eu tenho. posso pagar o ônibus.

         ele não entende. está meio tonto e suas palavras saem com dificuldade, lentas.

         não quer mesmo sair comigo? eu tenho de ir pra casa. vai depois. não, eu não tenho dinheiro. eu tenho.

         tiro do bolso o dinheiro e mostro, uma nota de duzentos, uma de cinquenta.

         me empresta estes duzentos? não posso; vem comigo. não, tenho de ir pra casa, não posso sair. por que? sou doente. o quê você tem? problemas psíquicos.

         e aponta pra cabeça.

         então, a gente se vê noutra hora, tá?, tá. ciao.

  

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Alma desdobrada, cap. 76, 77, 78, 79, 80 e 81.

Alma desdobrada, capítulos 76, 77, 78, 79, 80 e 81.

 076.

           como é bom, como está sendo bom escrever destas coisas. com a minha lucidez de agora, com a minha tranquilidade de hoje. é bom lembrar disto tudo, sinto-me me refazendo aos poucos, a partir de pedaços. tudo isso sou eu. alguém duvida? o que está por vir ainda? enquanto lembro, não sinto dores fortes. é tão somente comovedor. tudo que sou, vai subindo aos poucos. minha maior comoção, todavia, é o momento que estou vivendo: minha paixão pelo meu amigo, minha terapia, o me sentir produzindo coisas.

  

077.

           eu saberia me virar sozinho. eu continuo falando com eles, a sessão de terapia ainda não acabou.

          eu vou aprender a ser órfão. vou aprender que devo crescer sozinho. contarei comigo mesmo, de agora. eu não fui inteiramente destruído, amarrado. dentro de mim, escondida, esteve à espera uma vidinha qualquer. ela vai crescer e tomar conta do resto daquilo que sou. ou é bem uma pequena chama que vai aumentando. não tenho mais medo de vocês. vocês são fantasmas apagados que desaparecem e diminuem por fora do que sou. quase não os sinto mais, são como presenças passadas. eu, nascido de novo, vou criar meu jeito de ser feliz. falta apenas, me falta apenas, agora, abrir os olhos. não é difícil abrir os olhos. difícil é ser parido, parir-se a si mesmo. agora, posso abrir os olhos quando quiser.

          no entanto, é com extrema dificuldade que abro os olhos e, em silêncio, saio do tablado do psicodrama.

  

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