GIL VICENTE 40. AUTO DA CANANÉIA (1534)

belzebu

Resumo:

Três pastoras se apresentam, representando as três leis: lei da natureza, lei da escritura e lei da graça. Silvestra, a lei da natureza, pastoreia os gentios; Hebréia, a lei da escritura, pastoreia os judeus;  Veredina, a lei da graça, é pastora dos cristãos. Esta última anuncia que o Messias já nasceu e que está pregando entre as gentes. A seguir Satanaz reclama por não ter conseguido tentar o Cristo. Belzebu lhe diz que está atormentando a filha da Cananéia. Saem e entra Cristo com seis apóstolos. Estes pedem que Cristo lhes ensine a rezar. Cristo ensina o pai-nosso, estendendo o texto em explicações detalhadas. A Cananéia vem e lhe pede para curar sua filha, que está possuída. Ela faz uma descrição do sofrimento da moça: “Tem os seus braços torcidos, os olhos encarniçados, os cabelos desgrenhados, seus membros amortecidos. Dá gritos, faz alaridos, e o socorro está em ti”. Cristo diz a ela que veio para salvar os judeus: “Meu padre me fez pastor do gado da sua vontade, das ovelhas de Jacob que procedem de Abraão”. Os apóstolos intercedem. Segue-se a passagem bíblica da réplica da mulher sobre os cachorrinhos que se alimentam das migalhas do banquete. Sua fé a salva. Sua filha é curada. Os demônios se atormentam.

GV133. Silvestra

Serra que tal gado tem,
Não na subirá ninguem.
Não na subirá ninguem.
Serra que tal gado tem.

(canta Carmen Ziege)

GV134. Veredina

Serranas, não hajais guerra,
Que eu sam a flor desta serra.
Pera ser flor desta serra.
Serranas, não hajais guerra.
E vos escusae a guerra,
Que eu sam a flor desta serra.
Eu sam a flor desta serra.
Serranas não hajais guerra.

(canta Kátia Santos)

GV134. Cananea

Senhor, filho de David,
Amercea-te de mi:
Clamabat autem.

(canta Kátia Santos)

 

Comentário:

Fez Gil Vicente este Auto a pedido de uma abadessa. É uma das últimas obras. Percebe-se um estilo maduro, fluente e equilibrado, que tira partido dos momentos mais dramáticos.
Cristo aqui aparece pela terceira e última vez na obra do autor. No Auto da Barca da Glória sua presença é muda: apenas estende os remos da barca para que os pecadores nele se apoiem e ganhem a salvação. No Auto da História de Deus, Cristo dialoga com o Diabo, resistindo às tentações, e anuncia que está indo para Jerusalém, para sofrer os tormentos. Neste auto da Cananéia, é descrita toda uma cena do apostolado.
Foi dito no comentário sobre o Velho da Horta que por duas vezes Gil Vicente se utilizou do texto do pai-nosso em suas peças. No Velho da Horta, o personagem acrescenta a cada frase em latim um desdobramento da idéia, enriquecendo-a. No Auto da Cananéia, Cristo fala a metade da oração em latim e em versos apresenta um texto em português, detalhando partes do original: “… E  direis com grande amor: seja louvado teu nome, e santificado neste nosso orbe menor como és no Céu adorado. E direis a sua alteza: o teu reino venha a nós, em que pedis fortaleza…” O resultado é um belíssimo poema.
Falemos de judeus. Sabe-se que a presença de judeus na península ibérica era maciça e vinha de longa data. O convívio entre cristãos, árabes e judeus foi pacífico durante muito tempo. No Comentário que fiz sobre a peça Auto da História de Deus, enumero a sequência de fatos que terminaram com as fogueiras da inquisição.
Gil Vicente, como não podia deixar de ter feito, por ter incluido em suas peças pessoas de todos os tipos sociais do Portugal de seu tempo, apresenta personagens judeus em alguns autos. A Sibila Cassandra é cortejada por um judeu e judeus são seus tios. Na farsa de Inês Pereira, judeu é o casamenteiro que vem apresentar à protagonista o escudeiro que toca viola. No Auto da Barca do Inferno um dos condenados é um judeu, não por ser judeu, mas porque não cumpria com os preceitos do cristianismo. No Auto da Lusitânia há a presença tranquilíssima de uma família de judeus, devendo ser eles mesmos quem vai montar um teatro para comemorar a presença da corte na cidade. Não nos esqueçamos também da carta enviada por Gil Vicente ao Rei João III, criticando a atuação de padres após o terremoto de 1531, que bradavam ser o cataclismo culpa da presença dos cristãos novos – judeus convertidos – em Portugal. A última mostra de judeus na obra do autor será no Diálogo sobre a ressurreição.
Nesse Auto da Cananéia, pela única vez, Gil Vicente se mostra preconceituoso. A pastora Hebréia diz que deve cuidar dos judeus: “… meu gado é tão erreiro, que sempre o verás errar, dum pecar em outro pecar, de cativeiro em cativeiro…”  Mas ela tinha acabado de dizer: “… tudo raposas e lobos e eu te dou minha fé, que é a mais falsa ralé que há aí nos gados todos…”

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dalva, herivelto, amarcord

DALVA, HERIVELTO, AMARCORD

    Dalva de Oliveira e Herivelto Martins? Claro que me lembro! Eu me lembro??
    Existe um tipo de mentira que não transforma o mentiroso em pecador: é aquela, resultado de uma traição da memória.
    Quando eu era menino, minha avó contava uma história que teria acontecido no sertão mineiro: certo homem comprara um par de botas mas elas estavam muito largas. Apesar de ter ficado bravo por causa disto, um dia ele calçou as botas e saiu pra caçar. Perto de um rio, um jacaré de papo amarelo (ói tu aí em cima, que assinou o decreto do acordo ortográfico, como é que fica isso? jacarédepapoamarelo?), um jacaré, eu dizia, minha avó contava, pegou-o pelo pé e começou a arrastá-lo até a água. Ele conseguiu se segurar numa árvore fina e puxa que puxa, o jacaré, segura que segura, o herói, ele mexeu o pé da bota abocanhada, a bota saiu e o jacaré lá se foi com a bota e safou-se o quase coitado. Pois é. Amarcord.
    É um episódio possível. Não é nenhuma peripécia à la barão de Münchhausen, com trema. Para usar uma expressão linguisticamente ridícula, dá pra dizer que esta narrativa contém um alto teor de plausibilidade.
    Minha irmã Angela, que mora nos Estados Unidos, há alguns meses me contou que eles lá adoram ouvir a história do nosso avô com o jacaré e a bota. Tive que desmenti-la. Ela é mais nova que eu 2 anos, não lembrava direito. Não foi com o nosso avô que aconteceu mas com um homem qualquer. Isto é um exemplo do que eu disse na introdução.

    Esta minissérie sobre a Dalva de Oliveira e o Herivelto Martins, com toda certeza, deve ter sacudido, em milhares de brasileiros, a poeira da saudade. Velhas emoções esquecidas sobem num redemoinho e começam a machucar, ainda mais porque a madame Música está no olho do furacão.
    Cada um tem lá as suas lembranças. Cada outro sabe onde o calo dói. Minha recordação sobre a época não tem nenhum jacaré mas garanto que tem lá sua pontinha de charme. Vou transcrever trechos de mensagens trocadas nesses últimos dias, que ajudarão na sequência da narrativa.

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o homem que queria tremer

quinto A

O HOMEM QUE QUERIA TREMER

quinto A

Nota: Esta peça foi apresentada em novembro de 1972 no Auditório da Biblioteca Pública do Paraná, por alunos da turma Quinto A, da Escola Raphael Hardy. Durante o segundo semestre, de duas aulas semanais de Educação Artística, uma era dedicada aos ensaios. Foi um interessante exercício, escrever a cada semana um episódio, que era dado aos atores responsáveis pelos papéis.
    Baseei-me em dois famosos contos dos Irmãos Grimm (1785/1863 e 1786/1859), O Homem que queria tremer (Märchen von einem, der auszog, das Fürchten zu lernen) e O Túmulo (Der Grabhügel). Informação curiosíssima: No conto O Túmulo, o Soldado menciona o personagem de O Homem que queria tremer. Que eu me lembre, isto não ocorre em nenhum outro conto dos Irmãos Grimm. Isto poderia significar que os Irmãos, que saíram pela Alemanha anotando da boca do povo os seus contos e lendas, fariam algum tipo de “literatura” em cima do material anotado?
    Ao final do texto, apresento a lista dos alunos-atores, com seus respectivos papéis.

Cena 1. Sala (Pai, Compadre, Homem).

PAI: Ah, meu Deus do céu! Onde andará esse meu filho? Passei a noite toda esperando, já amanheceu e nada dele chegar. (batem) Opa! Será que é ele?
COMPADRE (entrando): Bons dias, compadre. Vim ver se você me empresta uma galinha choca para cobrir uns ovos de galinha d’angola.
PAI: Pois não, pois não. E como está a comadre?
COMPADRE: Está bem, está bem. Espera o seu décimo sétimo filho. E o afilhado, por onde anda que há muito tempo não visita os pobres?
PAI: Ah, compadre. Está me dando aborrecimentos, este filho. Saiu ontem para vender uns patos na aldeia vizinha e não voltou até agora.
COMPADRE: Santo Deus! Pode ter acontecido alguma coisa! Há ladrões terríveis no caminho, bandoleiros desalmados. Que teria acontecido?
PAI: De ladrões e bandoleiros eu não tenho medo. Meu filho é forte, você sabe, e um murro dele derruba qualquer golias. Mas me arrepio só de pensar que ele teve que viajar à noite perto do cemitério da igreja abandonada. Estão falando que há assombrações horríveis vagando por lá.

 

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