quatro marias (roteiro de filme, 3)

QUATRO MARIAS – Parte 3

(roteiro de filme)

Terceira parte: A dor humana não cabe num picadeiro.

 

Seqüência 24:

 

          Dentro da barraca de Jorge e Maria. Maria senta-se a uma mesa pequena e escreve uma carta. Um close permitirá que se leia: Minha mãe. Maria está num vestido muito ordinário. A cena vai se alternar com imagens de dona Maria lavando roupa no rio, estendendo a roupa, recolhendo a roupa, colocando num cesto, entregando o cesto a um dos filhos, que sai. E também com imagens de dona Maria conversando com os filhos, como quem conta uma história. Todos sentados num chão de cozinha, comendo com as mãos. Ela conta, eles ouvem. Sobre estas cenas alternadas, Maria com a carta e dona Maria, aparecerão os dois textos: Terceira parte. A dor humana não cabe num picadeiro.

 

Seqüência 25:

 

          Jorge entra na barraca. Olha severo para a mulher. Nesta terceira parte, ele será o tempo todo grosseiro, não sorrirá. Um brutamontes. Ela fala:

          – O prefeito da cidade falou pra você ir lá. Quer conversar.

          – Conversar? Já conversei com o padre. Já está tudo combinado.

          – Veio um menino aqui e deu este recado.

          – Vou lá, então, conversar com o filho-da-puta. Me dá um pouco de pinga.

          – De dia, homem… Hoje à noite tem a estréia.

          – Cala a boca, vagabunda. Me serve a pinga e fique calada.

          Maria baixa os olhos e apanha a pinga. Ele bebe um pouco e sai com o copo na mão. 

  

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quatro marias (roteiro de filme, 2)

QUATRO MARIAS – Parte 2

(roteiro de filme)

 

Segunda Parte: Sonhar não é pecado.

 

          O circo é visto de longe, como que num crepúsculo, de diversos ângulos. Sobre tais imagens, os textos: Segunda Parte. Sonhar não é pecado. A imagem desmaia até desaparecer.

 

Seqüência 15:

 

          Aplausos, risadas, rostos que gargalham, em flashes rápidos. Uma tomada mostra palhaços que trocam porradas entre si. Jorge observa por trás da cortina. Chico chega e cochicha:

          – Tem um ceguinho aí, pedindo para assistir sem pagar.

          – Um ceguinho? Então, não é assistir. É ouvir. Bota ele aqui perto de mim. Já que ele não vai ver, deixa ele aqui. Ele que se segure nesta barra de sustentação.

          Tambores rufam. As luzes diminuem quase até a escuridão. O sanfoneiro entra lentamente, tocando alguns acordes, bem baixinho. Entra Jorge lentamente, com roupa mais luxuosa do que na apresentação anterior. Jorge fala sem estardalhaço, como que anunciando algo muito grave:

          – Senhoras e Senhores! Enquanto nosso pessoal prepara o cenário para o drama sacro A ressurreição de Lázaro, apresentaremos o nosso número mais emocionante. Preparem-se, corações apaixonados! Por que a seguir, ouviremos uma canção de amor. É com imenso orgulho que apresento a Vossas Senhorias minha esposa, minha bem amada… Com os Senhores… Maria!

          Uma salva de palmas. Maria surge deslumbrante, num vestido de baile com flores estampadas, jóias reluzentes e uma tiara na cabeça. Avança lenta, um sorriso mal esboçado. Segura um dos lados do vestido. Olha para Jorge. Ele a apresenta ao público num gesto suave, afasta-se e se esconde de novo. Maria espera, tranqüila. Jorge volta, trazendo pelas mãos, seus dois filhos. Leva-os até uma banqueta perto do sanfoneiro. Os dois pegam os seus instrumentos, um tambor e um pandeiro para Menininha, um triângulo para Menininho. Jorge solenemente dá um beijo na testa de cada um. E sai.

          Ao som dos instrumentos, Maria começa a dançar. E canta a canção da Pombinha branca:

          – Pombinha branca,

          Fuja do laço do caçador.

          Que eu também quero

          Fugir do abraço do meu amor.

          Seu beijo arrebata

          E mata de paixão.

          Amor que mata, eu não quero não.

          Amor que mata, eu não quero não.

 

          – Você tem asas

          E do perigo pode voar.

          Mas eu não tenho

          E por castigo vivo a chorar.

          O olhar dele maltrata

          Dá um nó no coração.

          Amor que mata, eu não quero não.

          Amor que mata, eu não quero não.

 

          Menininho e Menininha cantam o refrão em duas vozes. Durante a canção, serão vistos rostos que ouvem com atenção. E Jorge, chegando-se ao seu lugar, verá o ceguinho, grudado numa barra de madeira que sai do chão. Entre as tomadas do rosto de Maria, da dança e do público, Jorge olhará o ceguinho. Na segunda vez estará desconfiado. Uma tomada mostrará o ceguinho, totalmente embevecido, como em oração, com os olhos para o vazio, ao alto. Numa pose de extrema comoção. O ceguinho está maravilhado. O rosto de Jorge indica, primeiro, estranheza, depois, alguma preocupação. E se transforma numa máscara de dureza.

          Ao término da canção, um grande aplauso. Maria e os meninos, de mãos dadas, agradecem. Jorge vai até eles. Dá a mão à mulher, entre ela e Menininha, e agradecem diversas vezes. Jorge cochicha algo à mulher. Ela sorri, lisonjeada e espera. Ele pede silêncio, com as mãos. E fala:

 

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Quatro Marias (roteiro de filme, 1)

QUATRO MARIAS – Parte 1

(roteiro de filme) 

Nota: Este roteiro foi feito a pedido de Flávia Souza. A tragédia aconteceu em 1951. A protagonista Maria era irmã de minha mãe, esta, conhecida como Milota. A mãe de Maria, também Maria, foi minha avó materna. Todos os personagens principais são reais. E, com certeza, tomei a liberdade de delirar em torno dos fatos.

 

 

Primeira Parte: A mosca que caiu na teia de todas as aranhas.

 

 

Obs..: Em finais de cena, quando houver fusão entre uma cena e outra, serão vistos, rapidamente, por alguns segundos, artistas de circo, em câmera lenta, executando seus números: a corda-bamba, o malabarismo, o contorcionismo, o comedor de fogo, o atirador de facas, etc.

 

Seqüência 1.

 

          Um caminhão velho e lento avança pela paisagem. Estrada de terra, pastos e áreas plantadas. Sobre a imagem da paisagem surge o texto: Primeira Parte. E, a seguir, outro texto: A mosca que caiu na teia de todas as aranhas.

 

          Dirige o caminhão um homem corpulento. Cabelos muito crespos e curtíssimos. Olhos verdes. Amulatado. É Jorge Carvalho. Ao seu lado dois outros homens, olhando a paisagem. Na carroceria, coberta pobremente, outros três homens, duas mulheres e enorme quantidade de caixotes e objetos. Há também duas crianças. Uma menina morena e um menino louro. São filhos de Jorge e são conhecidos como Menininho e Menininha.

          Casas avulsas anunciam a chegada a uma cidade. Numa curva, surge o rio e a partir daí a estrada correrá lado a lado com o rio. Próximo a uma grande casa, mulheres com as saias amarradas acima das coxas, lavam roupas na água do rio. Cantam alto:

 

          – Pombinha branca,

          Fuja do laço do caçador.

          Que eu também quero

          Fugir do abraço

          Do meu amor.

          Seu beijo arrebata

          E mata de paixão.

          Amor que mata, eu não quero não.

          Amor que mata, eu não quero não.

 

          – Você tem asas

          E no perigo pode voar.

          Mas eu não tenho

          E por castigo

          Vivo a chorar.

          O olhar dele maltrata

          Dá um nó no coração.

          Amor que mata, eu não quero não.

          Amor que mata, eu não quero não.

 

          Ao ouvir o caminhão, levantam-se e ficam olhando. Maria, uma delas, também olha mas, ao perceber que o caminhão está mais próximo, desamarra a saia que cai, vira-se de costas mas volta o rosto para olhar também. Jorge olha sério para ela.

          Um dos homens fala:

          – Pra estarem de perna de fora, devem ser as putas daqui. Se não, ficavam num lugar mais escondido.

           – Mas então o puteiro mudou de lugar. Deve ser essa casona.

          O caminhão entra na pequena cidade, pára e é rodeado de pessoas. Jorge fala para os homens:

          – Avisa a eles que eu vou conversar com o Padre.

          E para os filhos:

          – Menininho! Menininha! Querem ir comigo? Ih, mas vocês estão muito sujos. Está bem, vamos, vamos.

          Afastam-se. As pessoas da carroceria descem, misturam-se aos habitantes do local e começam a conversar. Não se ouve suas vozes, só os gestos. Logo depois…

          Jorge volta apressado. Entra na cabine e, da janela, pergunta às crianças da cidade:

           – Quem de vocês sabe onde é o campo em frente ao hospital?

          Todos se agitam dizendo eu, eu, eu. Ele aponta para um dos meninos e diz:

          – Vem comigo pra me mostrar.

          E, para um dos homens que estava na cabine:

          – Aquele lugar que a gente sempre ocupava foi vendido. Vamos mudar de lugar. Você vai lá pra trás com os outros.

           Tudo é rápido. Entram todos, ajeitam-se, ele põe o caminhão em marcha. O moleque escolhido arregala os olhos, deslumbrado. Olha os meninos que ficaram na rua, coloca o polegar na boca, a mão levantada e aberta, balança os dedos e, sorrindo, faz uma careta.

 

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