Quatro Marias (roteiro de filme, 1)

QUATRO MARIAS – Parte 1

(roteiro de filme) 

Nota: Este roteiro foi feito a pedido de Flávia Souza. A tragédia aconteceu em 1951. A protagonista Maria era irmã de minha mãe, esta, conhecida como Milota. A mãe de Maria, também Maria, foi minha avó materna. Todos os personagens principais são reais. E, com certeza, tomei a liberdade de delirar em torno dos fatos.

 

 

Primeira Parte: A mosca que caiu na teia de todas as aranhas.

 

 

Obs..: Em finais de cena, quando houver fusão entre uma cena e outra, serão vistos, rapidamente, por alguns segundos, artistas de circo, em câmera lenta, executando seus números: a corda-bamba, o malabarismo, o contorcionismo, o comedor de fogo, o atirador de facas, etc.

 

Seqüência 1.

 

          Um caminhão velho e lento avança pela paisagem. Estrada de terra, pastos e áreas plantadas. Sobre a imagem da paisagem surge o texto: Primeira Parte. E, a seguir, outro texto: A mosca que caiu na teia de todas as aranhas.

 

          Dirige o caminhão um homem corpulento. Cabelos muito crespos e curtíssimos. Olhos verdes. Amulatado. É Jorge Carvalho. Ao seu lado dois outros homens, olhando a paisagem. Na carroceria, coberta pobremente, outros três homens, duas mulheres e enorme quantidade de caixotes e objetos. Há também duas crianças. Uma menina morena e um menino louro. São filhos de Jorge e são conhecidos como Menininho e Menininha.

          Casas avulsas anunciam a chegada a uma cidade. Numa curva, surge o rio e a partir daí a estrada correrá lado a lado com o rio. Próximo a uma grande casa, mulheres com as saias amarradas acima das coxas, lavam roupas na água do rio. Cantam alto:

 

          – Pombinha branca,

          Fuja do laço do caçador.

          Que eu também quero

          Fugir do abraço

          Do meu amor.

          Seu beijo arrebata

          E mata de paixão.

          Amor que mata, eu não quero não.

          Amor que mata, eu não quero não.

 

          – Você tem asas

          E no perigo pode voar.

          Mas eu não tenho

          E por castigo

          Vivo a chorar.

          O olhar dele maltrata

          Dá um nó no coração.

          Amor que mata, eu não quero não.

          Amor que mata, eu não quero não.

 

          Ao ouvir o caminhão, levantam-se e ficam olhando. Maria, uma delas, também olha mas, ao perceber que o caminhão está mais próximo, desamarra a saia que cai, vira-se de costas mas volta o rosto para olhar também. Jorge olha sério para ela.

          Um dos homens fala:

          – Pra estarem de perna de fora, devem ser as putas daqui. Se não, ficavam num lugar mais escondido.

           – Mas então o puteiro mudou de lugar. Deve ser essa casona.

          O caminhão entra na pequena cidade, pára e é rodeado de pessoas. Jorge fala para os homens:

          – Avisa a eles que eu vou conversar com o Padre.

          E para os filhos:

          – Menininho! Menininha! Querem ir comigo? Ih, mas vocês estão muito sujos. Está bem, vamos, vamos.

          Afastam-se. As pessoas da carroceria descem, misturam-se aos habitantes do local e começam a conversar. Não se ouve suas vozes, só os gestos. Logo depois…

          Jorge volta apressado. Entra na cabine e, da janela, pergunta às crianças da cidade:

           – Quem de vocês sabe onde é o campo em frente ao hospital?

          Todos se agitam dizendo eu, eu, eu. Ele aponta para um dos meninos e diz:

          – Vem comigo pra me mostrar.

          E, para um dos homens que estava na cabine:

          – Aquele lugar que a gente sempre ocupava foi vendido. Vamos mudar de lugar. Você vai lá pra trás com os outros.

           Tudo é rápido. Entram todos, ajeitam-se, ele põe o caminhão em marcha. O moleque escolhido arregala os olhos, deslumbrado. Olha os meninos que ficaram na rua, coloca o polegar na boca, a mão levantada e aberta, balança os dedos e, sorrindo, faz uma careta.

 

Seqüência 2.

 

          A cabine. Jorge, o outro homem e o menino. O menino não pára de sorrir, abestalhado.

          – Eu vou poder ver o circo de graça?

          – Claro. Todos os dias. Mas tem que ajudar no serviço. Topa?

          – Topo. Posso trazer meu irmão maior?

          – Quantos anos ele tem?

          – Dezesseis.

          – Negócio fechado. Mas é só mais ele, ninguém mais. E tem muito trabalho. Aceita?

          O menino acena que sim com a cabeça. E não consegue parar de sorrir.

 

Seqüência 3:

 

          As pessoas estão organizando a montagem da lona. Caixotes, panos, mastros, cordas. Todos se agitam. Jorge dá ordens. De longe vê-se que o menino da cidade se aproxima com um jovem, Jorge manda os dois para falar com um dos homens que estavam na cabine. À medida que a câmera se aproxima dele, sua voz fica mais audível.  Ordens e ordens. Close:

          – Chico, assume o comando que eu vou lá na venda negociar as compras. Daqui a pouco vai bater a fome. Depois que eu voltar você vai até lá com o carrinho pra trazer a comida.

          Pelos gestos, se percebe que o menino da cidade se aproxima para indicar o caminho. Jorge nega, manda ele trabalhar com os outros, sorrindo. Junta o polegar e o dedo médio e bate sobre os dois com o dedo indicador, num gesto que significa que há muito o que fazer. O mesmo se dá com seu filho, aproxima-se e é mandado para ajudar os outros. Jorge afasta-se. A agitação continua.

 

Seqüência 4.

 

          Dentro da venda. O dono atrás do balcão e Jorge em frente a ele.

          – Combinado, então?, seu Zé. No final a gente acerta tudo. O senhor já sabe que eu sempre fui honesto.

          – Claro, claro, seu Jorge. Mas, me diga: quantas pessoas eu posso levar na noite da estréia?

          – A família toda, ué. Não é o senhor, a mulher e as cinco crianças?

          – A minha cunhada enviuvou e tá aqui com os dela. É ela e mais três. Pode ser?

          Jorge sorri, acena que sim e se aproxima, cochichando:

          – Casa cheia é melhor que vazia. Todo mundo sai falando e no dia seguinte vai ficar lotado.  O senhor sabe como é. Na estréia, muitos convidados. Nos outros dias, todo mundo tem que pagar. Não posso fazer diferente.

          – Eu sei. E a gente vai todas as noites, por causa do teatro. São as mesmas peças de sempre?

          – Não. Alguma coisa mudou. Mas já falei das mudanças pro padre e ele aprovou.

          – E a dona Maria vai cantar, como sempre?

          Jorge fica sério:

          – Seu José, há seis meses que eu estou viúvo.

          – Oh! Ela ficou doente, de repente?

          – Foi bem isto. A gente estava numa cidade que nem médico tinha. Foi tudo muito rápido.

          – E quem está cuidando das crianças?

          – Eu mesmo. O pessoal do circo ajuda.

          – Vai precisar casar de novo. Sozinho, com filho, não é fácil.

          – Vamos ver. Espero todos, então. Obrigado, seu Zé.

          Vira-se para sair. Olha assustado. Maria está entrando na loja com outra mulher. Maria pára, estremecendo por inteiro. Jorge a olha fixamente. E olha rápido para o dono da venda.

          Este faz um arremedo de careta, de difícil significado. Jorge sai rápido. Maria, amedrontada, entrega ao senhor José uma lista de compras. Este fica olhando o papel, num longo silêncio. A música e o colorido irreal da cena a seguir, indicarão que se trata de um sonho, uma visão, uma imagem…

         

Pantomima:

 

          Uma figura caminha por um corredor cheio de curvas. Vê-se sua sombra projetada para a frente mas não se identifica quem é. Chega a um pequeno palco. Há uma placa onde se lê: Hoje: O Príncipe Azul.

 

          Entram, lentamente, em passos de dança, um casal com uma jovem. Trazem roupas barrocas, todas em tom azulado. Surge o Príncipe Azul. Cumprimenta cortesmente a todos e apresenta à jovem um anel. Coloca no dedo dela. O casal quer impedir que a moça vá com ele. E ela se mostra indecisa. Vai até eles, vai até o Príncipe. Finalmente o Príncipe Azul coloca a jovem no colo, ela o abraça e eles se afastam, girando numa valsa. A jovem dá adeus ao casal e eles retribuem o gesto.

 

Seqüência 5:

 

          Jorge é visto de costas, chegando no acampamento, agora, bem mais organizado. As pessoas continuam trabalhando. Ele supervisiona, aponta para coisas, conversa. Logo a seguir todos são vistos com bacias de alumínio nas mãos, comendo, sentados uns e outros de cócoras. E a seguir ele conversa com um dos auxiliares, aponta para um lugar e começa a caminhar. Os filhos querem acompanhá-lo. Ele acena negativamente e os manda para o meio dos outros. Sai de cena. Enquanto caminha solitário, a melodia das lavadeiras pode ser ouvida em off, através de instrumentos.

 

 Seqüência 6:

 

          Jorge entra no bordel. É um barzinho, muito pobre, misturado com um tipo de sala de visitas. Um balcão, algumas mesas com cadeiras. Ele se senta. Uma mulher mete a cara na porta. Jorge fala:

          – A dona Olinda?

          A mulher desaparece. Logo a seguir entra a dona. Veste-se de negro, da cabeça aos pés e tem um grande xale. A conversa entre os dois será lenta, com longos intervalos entre uma fala e outra. Eles já se conhecem de longa data. Ela se senta diante dele.

          – Já estou sabendo que ficou viúvo.

          – Há seis meses que eu estou só.

          – Entendo. Quer uma pinga?

          – Só meio copo.

          Ela vai, coloca a pinga no copo e o coloca diante dele.

          – Vai precisar casar de novo. Homem não presta pra cuidar de criança.

          Ele apenas olha para ela e silencia.

          – A estréia é sábado?

          Ele acena que sim.

          – E na estréia vai ter o teatro da ressurreição de Cristo? Você sabe que eu só vou na estréia. Levo as meninas e a gente fica escondidinha atrás daquela cortina preta.

          – Não fazemos mais a ressurreição de Cristo.

          – Homem, mas o quê que é isto? Então vai ser só cantoria e palhaçada?

          – Não, não. Vai ter o teatro mas não é mais a ressurreição de Cristo.

          – Mas era a coisa mais bonita do mundo!

          – Deixa eu contar: no fim do ano passado, durante as enchentes, nós ficamos presos num morro. A enxurrada levou tudo em volta, casas, estradas. A gente achou que ia acabar logo e ficou esperando ali, debaixo das lonas, mas a chuva não parava e a cada vez vinha mais forte. E nós no cocuruto do morro. E acabou a comida. Só tinha feijão e farinha. A água em volta de nós era um mar que levava tudo, até boi morto passava boiando. E a gente não tinha mais madeira pra cozinhar o feijão. Era a cruz e os mastros da tenda. E tivemos que rachar a cruz do teatro em pedaços pra acender o fogo do feijão. Duas semanas.

          – Que vergonha.

          – Era nós ou a cruz. Acho que Jesus deve ter entendido.

          – E se não tem ressurreição, que teatro vocês vão fazer na estréia?

          – A ressurreição de Lázaro. É uma pedra de papelão pintado. Fica mais fácil.

          Ela se põe pensativa. Olha algumas vezes nos olhos dele.

          – Esse Lázaro é o mesmo santo dos cachorros?

          – Como que eu vou saber? Um padre da Bahia escreveu pra nós. Lázaro é um homem que Jesus ressuscitou… e é tudo em verso…

          Ela pensa de novo. De repente, pergunta:

          – Faz a gente chorar?

          – Isso eu garanto. No final, a mulherada toda está chorando.

          Ela sorri vagamente, feliz e aliviada.

          – Então, eu vou. Mais pinga?

          – Só meio copo.

          Ela repete a busca da pinga.

          – E depois da estréia os seus homens vêm pra cá, como sempre. E você?        

          Ele acena que não. Começa a ficar zonzo e fala olhando um ponto fixo, inexistente.

          – Quem é a menina branquinha que chegou?

          – A Maria? Hum… Acho que começo a entender. Mas o que quer com ela? Não sabe que é puta?

          – Desde quando?

          – Na verdade… Bem… Vou te contar uma coisa esquisita. Ela é puta mas ainda não é puta. (Sorri).

          – Não sei se dá pra entender…

          – Está aqui há duas semanas. A mesma história de sempre. Um homem a desonrou, a mãe botou pra fora de casa, elas acabam aqui. Na primeira semana não comeu quase nada e não parava de chorar. Agora está um pouco mais calma, ajuda no serviço.

          Ele fica olhando para ela, esperando mais relato.

          – O safado veio aqui essa semana e queria ela. Ela mandou me dizer que, se ele entrasse lá, arrancaria os olhos dele com as unhas… Eu acho que entendo. Mas no final ela vai ficar calminha e obediente como as outras. Ela tem que comer. Nada como a fome pra sufocar a indignação das pessoas. Eu deixo as coisas acontecerem…

          – E se eu quiser levar ela?

          – Eu podia dizer que pra mim seria uma boca a menos. A cidade tem pouco homem e ninguém quer pagar o que a gente pede. Mas é delas que vem meu lucro. Você sabe, não tenho pensão. Só esta casa.

          – E se eu quiser levar ela? (meio autômato, absorto).

          – Ô homem, o que quer que eu diga? O quê que eu ganho com isso? Comeu e dormiu aqui por duas semanas. Se fosse um cavalo, você não teria que pagar?

          Jorge esvazia o copo. Dá dois murros na mesa.

          – É minha. Ninguém mais toca. Mais pinga. Só meio copo.

          A mulher se levanta e quando se senta de novo diante dele, e apresenta o copo, vê à sua frente uma grossa corrente de ouro.

          – Ô homem. Você tá ficando louco. Nem um cavalo vale isso tudo. Você sempre foi sem medidas.

          Ele se levanta, aponta para ela com o indicador e repete, absolutamente transtornado mas não dando sinais de embriaguês:

          – É minha. Ninguém mais toca. É minha. Ninguém mais toca.

          Ameaça falar mais alguma coisa, levanta a mão. Estaca. Volta-se e sai. A mulher fica pensativa. Olha a pinga que ele não tomou. Engole tudo num só trago. Faz uma careta. Grita:

          – Ana!

          A mesma cara de antes aparece na mesma porta.

          – Traz a Maria aqui.

          Enquanto espera vê a corrente e rapidamente a coloca no bolso. Maria se aproxima, medrosa. A mulher vai até ela, abraça-a e a leva até a janela. Abre a janela. Dá para ver Jorge se distanciando.

          – É o dono do circo. Viúvo, com dois filhos. Vai levar você.

          Maria a olha, intrigada apenas. E ela:

          – Acho que sua mãe vai gostar.

          De repente os dois olhares das duas, vistas de frente, demonstram que algo estranho aconteceu. É que Jorge parou de andar e fica um instante paralisado. De repente se vira e começa a caminhar em direção a elas.

          – Está voltando. Vá para o quarto da Ana.

          Maria obedece.

 

Seqüência 7:

 

          Jorge chega. A mulher pergunta:

          – Mudou de idéia?, homem.

          – Quero falar com ela.

          – Imaginei isso. Mas não vá assustá-la.

          Ele sorri enigmático e acena que não.

          – Quero vê-la de perto.

          Percebe-se que Jorge não está senhor de si. Não mostra sinais de embriaguês, pois está acostumado a grandes tragos. Mas sua fisionomia indica uma pessoa que está ficando fora de si. Apesar disso, não é assustador, apenas patético.

 

Seqüência 8:

 

          A porta se abre e vê-se Maria, encurralada na cama. (Na minha cabeça, a postura dela repete a Maria da pintura A Anunciação (Ecce Ancilla Domini), de Dante Gabriel Rossetti, pintor inglês, pré-rafaelita). Jorge entra lentamente e se senta bem longe dela. Ele se mostra indeciso sobre o que falar e o diálogo só vai ser mais direto após a troca de algumas frases. Durante toda a seqüência, far-se-á noite.

          – Eu não posso comprar você como se você fosse um cavalo… Se fosse pra entrar aqui e… bem… se fosse pra te usar… não precisava conversa nenhuma.

          Maria se mexe na cama e passa a impressão de que se colocou um pouco mais confortável. Ele continua:

          – Sou viúvo, tenho dois filhos, tenho um circo, minha vida é dura mas meu trabalho garante a comida de todos os dias… Quero levar você comigo. Mas quero que você diga que quer ir.

          Ela o olha mas não responde. Puxa parte da colcha dos pés da cama e se cobre um pouco.

          – Quer que eu vá embora?

          Levanta-se e empurra a cadeira mas ela é rápida:

          – Não… Não.

          Ele a olha por um momento. Leva a cadeira um pouco mais para perto e se senta novamente.

          – Posso falar com a sua mãe, amanhã.

          – Minha mãe? Ela me botou pra fora de casa numa noite de chuva.

          – Numa noite de chuva?

          – Três vizinhas ficaram horas conversando com ela. Depois que elas se foram…

          – E o que você fez?

          – Fui até a casa do padre mas não tive coragem de bater. Fiquei feito uma tonta… Um homem me viu, me cobriu com o guarda-chuva e me trouxe praqui.

          – Mulher… se você conhecesse o mundo como eu… não ficava com raiva da sua mãe.

          –  Ficar com raiva de quem?, então…

          – Isso eu não sei… Quer que eu vá embora?

          Ela acena fracamente que não. E fala com a voz fraca:

          – Veio só pra isso? Pra ficar falando?… Eu vou ter que tirar a…

          – Não vai tirar a roupa! Vim pra ficar falando… Quero saber se quer ir comigo.

          – Agora?

          – Não. Não agora. Daqui a dois dias, sábado, será nossa estréia. Vocês todas estarão lá.

          – Eu não vou de jeito nenhum…

          – Por que não vai? Ninguém vai pagar.

          – Tenho medo de encontrar minha mãe.

          – Entendo. De qualquer jeito, quando acabar a sessão, meus homens virão pra cá…

          – Eles não são casados lá no circo?

          – São. Mas para eles a festa tem que terminar aqui… Eu venho com eles, chamo você e nós dois vamos pro circo, pra minha barraca, você de braço dado comigo, com a cabeça erguida. Entendeu? Acabou essa história de puta. Posso trazer um vestido bonito. Quer?

          Novamente ela acena que não, quase imperceptível.

          – Eu vou do jeito que estou aqui. Só tenho um vestido.

          Ele se levanta, sério. Está muito emocionado.

          Mulher! Eu te vi no rio. Eu te vi na venda. Eu te vejo agora. Você não entende o que é isto. E eu estou com pena de mim. Porque estou ficando louco… Porque encontrei uma mulher… eu tenho dois filhos… e eu trabalho muito… e eu encontrei você… Você não entendo o que é isto…

          Os olhos de Maria começam a marejar. E os dele, logo a seguir, também.

          Ela se encolhe e seu corpo começa a estremecer.

          – Fiquei andando na chuva… Tanto tempo… Perdida… Ia e vinha e via a janela da minha mãe acesa…

          – Mulher, isto acabou.

          Ele se aproxima, ela se encolhe e ele volta. Olha um tempo para ela, leva a cadeira para mais longe e se senta. Maria começa a chorar, convulsionada. Mal se entende o que fala. Aos poucos se percebe que ela repete:

          – O que Deus quer de mim? O que Deus quer de mim?…

          Jorge vai até ela.

          – Deite-se, mulher. Deite-se. Está na hora de ir. Cubra-se. Vou cobrir você. Deite-se.

          Ela se encolhe na cama, ele a cobre. Ele se põe de pé em frente a ela:

           Olhe para mim. Quero falar mais uma coisa. Mas você não vai chorar. A vida do circo é muito dura. Um dia aqui, um dia ali. É pior do que vida de cigano porque tem as apresentações. Ninguém pode errar, tudo tem que dar certo. Escuta bem o que vou dizer. Vamos trabalhar duro porque temos que precisamos comer. Mas há um momento na sessão em que todos estão arrumando o cenário do teatro, que é a última apresentação. Para distrair o público, meus filhos cantam um desafio. O Menininho e a Menininha. Mas antes, quem cantava era a minha mulher. Tinha o mesmo nome que você. E eu vou te ensinar e é você que vai fazer o número. Enquanto eles trabalham em silêncio, uma luz vai acender no meio do picadeiro… Você vai entrar bem devagar… Com um vestido de baile, comprido, cheio de flores. E brincos e um colar e uma pulseira. E uma coroa. Nada é de ouro, mas parece que é. Um homem vai tocar uma sanfona. Menininho vai bater um tambor, bem de leve, a Menininha vai bater num ferrinho que se chama triângulo. E você vai dançando, segurando a saia com uma das mãos, a outra você gira no ar. E vai cantar a canção da pombinha branca. E vai brilhar no picadeiro como se fosse uma rainha… Mulher… como uma rainha… Maria!…

          Maria, que levantou o rosto para melhor ouvi-lo, quer sorrir mas não consegue, porque seu rosto virou uma máscara de êxtase. Há um choro escondido atrás dessa máscara. É a primeira vez em que ela se mostrará como pessoa e não como objeto.

          – Uma rainha… Está na hora de ir…

          Sai. Encontra a dona.

          Você não entende o que é isto… Você não entende o que é isto…

          E desaparece.

 

Seqüência 9:

 

          A dona do bordel, meio indiferente, se senta numa cadeira de balanço. Fecha os olhos. Abre-os. Vê-se em seguida os olhos bem abertos de Maria. E também o rosto de Ana. Novamente, a música e as cores do irreal.

         

Pantomima:

 

          O corredor e o palco. A placa diz: Hoje: A princesa com fome.

 

           Uma jovem com uma camisola branca comprida passeia de um lado para o outro do palco. Ao se aproximar da saída, um casal a impede de sair e faz o gesto do anjo na expulsão do paraíso. O homem tem uma espada na mão. Ela vai até o centro e fica chorando. Os pais desaparecem. Entra uma rica mulher, vê-a, sai e já volta com um vestido belíssimo. Veste na jovem. A mulher acena para o lado de fora e entram muitos homens. Eles rodeiam a moça e cortejam-na com poses exageradas. Ela reluta e quer sair mas não conseguem. Um dos homens a toma no colo e se dirige até a saída contrária ao lado em que estavam os pais. Até que desapareçam, ela vai passar do colo de um ao colo do outro mas estará chorando.

Enquanto a imagem vai se diluindo, ouve-se uma batida repetida na janela.

 

          A mulher abre de repente os olhos.

          – Ana!

          Ana surge, abre a janela. Surge um homem. A mulher grita.

          – Hoje, não! Estamos fechados. Volte amanhã. Ou venha sábado depois do circo, que vai ter uma festança.

          Ana conversa baixinho com o homem e fecha a janela.

          – Trouxe um bilhete do dono do circo.

          – O quê?

          – Um bilhete do dono do circo. Pra entregar à Maria.

          – O homem está louco! A Maria nem sabe ler. Me dá isso, aqui.

          Abre. Lê em silêncio:

          Três vezes te vi.

          Três vezes te amei.

          Me chame de escravo,

          Teus pés beijarei.

          – Minha nossa!

          Ela fica pensativa.

          – Estou com pena da Maria. Ele a conheceu hoje. Esses amores são perigosos…

 

Seqüência 10:

 

          Jorge e os dois filhos caminham pela cidade. A cada momento as casas ficam mais isoladas. Num final de caminho, vê-se pequena casinha. Há três adolescentes brincando, dois meninos e uma menina. Ao ver os visitantes, todos se juntam. Uma mulher chega à porta. E dona Maria, a mãe de Maria. Coloca as crianças para dentro. Ela se coloca à frente dos visitantes mas nada fala. Jorge está meio sem graça.

          – Bom dia. A senhora é a dona Maria…

          – Sim, senhor. O senhor é o homem do circo. A dona Olinda veio aqui ontem, tarde já. Ela disse que…

          – A dona Olinda esteve aqui? Então a senhora já sabe de tudo. Dona Maria, eu vou me casar com a sua filha.

          – Oh, meu Deus, mas como é que pode ser uma coisa destas. Eu nunca ouvi uma história assim.

          – Dona Maria, estes são meus filhos. Sou viúvo. Eu não posso entrar e conversar com a senhora?

          – A minha casinha é tão pobre… O senhor desculpa a gente… Nem tenho… É tudo tão difícil, meu Deus…

          – Se a senhora quiser, conversamos aqui mesmo. Eu só queria que soubesse que eu sou um homem honesto, tenho estas duas crianças, sou viúvo… E tenho um cirquinho que nos dá a comida. É só isso.

          – Viver ficou tão difícil pra mim nos últimos tempos… Se não fosse o meu genro, a gente estava passando fome… O senhor desculpa eu falar dessas coisas… Isso que o senhor está querendo dizer… eu nunca vi uma coisa destas. Eu não queria falar na frente das suas crianças…

          – O que eu quero falar, posso falar na frente das minhas crianças. Eu preciso de uma mulher que me ajude a cuidar dos meninos. A sua filha não mora mais aqui mas a senhora sempre vai ser a mãe dela. E vim pra dar uma satisfação pra senhora. Sua filha vai comigo.

          – Que a Virgem Maria proteja o senhor. E a ela também. E a ela também. O senhor se chama Jorge?

          – Jorge Carvalho.

          – Se o senhor não se incomodar de se sentar no único banco comprido que eu tenho… Vamos entrar.

          Entram. De vez em quando um dos menores enfia a cara para olhar. A mãe olha severa e eles desaparecem. Jorge senta-se com Menininha ao lado. Menininho fica entre suas pernas.

          – Tem quase um ano que eu fiquei viúva, seu Jorge.

          – De quê que seu marido morreu?

          – De úlcera no estômago. Mas essas conversas não se faz na frente de criança…

          – No circo, dona Maria, a gente não consegue esconder nada das crianças. É uma barraca do lado da outra, todo mundo meio junto… Mas eu posso voltar aqui numa outra hora, pra conversar.

          – Eu acho que a gente já conversou o que precisava. O senhor vai levar a minha filha com o circo. Pra mim vai ser um descanso. Desculpa se eu falo assim… Tem duas semanas que eu não durmo, é só chorar em silêncio, pra não acordar os pequenos…

          Jorge se levanta. Está muito sério.

          Não queria que se preocupasse com a Maria… Ela vai comigo… E…

          A mãe começa a chorar baixinho. Tentou até aqui dominar-se mas não consegue mais. Sua fala é um desabafo cheio de lágrimas.

          – O senhor me desculpa. Eu já não sei o que falo… Sou uma viúva pobre… A gente diz que meu marido morreu de úlcera… mas foi de fome… A gente tinha a comida mas ele não conseguia comer… Parou de trabalhar, parou de entrar dinheiro… Quando ele morreu, os pedreiros estavam fazendo uma casa com ele… e eu tive que ajudar na construção porque a gente já tinha recebido parte do dinheiro… Agora eu lavo roupa pra fora e a Milota traz a comida pras crianças, toda semana… Então se a Maria vai com o senhor… é uma benção… Não é fácil falar com os meninos que ela está na casa da dona Olinda… Acho que já entendem… A vida nunca foi fácil, mas, agora… não sei até quando agüentarei… o senhor me desculpa…

          Enxuga o rosto com a manga da camisa. Tenta se recuperar do choro.

          – Os seus meninos são bonitinhos… Estão limpinhos… A Maria gosta de criança, ela me ajudava demais… Cuide dela, seu Jorge, cuide dela… É tão bobinha… O homem que abusou dela já tinha abusado da outra irmã, que agora está no Rio…

          – Se o seu marido estivesse vivo, este homem já estava morto e enterrado…

          Dona Maria o olha silenciosa. E, depois de um tempo:

          – Gente pobre não tem direito à vingança, seu Jorge. E eu fico perguntando à Virgem Maria quando é que vai acabar tanto sofrimento… A gente não deve ficar chorando na frente dos estranhos… das pessoas… E se eu não tivesse posto ela para fora, o que é que os outros iam falar?… Eu não queria mandar ela embora… Mas tem hora em que a gente não sabe o que fazer… Eu nem sei ler… Passei aquela noite em claro, chorando…

          Há um silêncio constrangedor. Os filhos de Jorge se achegam a ele e escondem o rosto junto ao corpo do pai.

          – Eu voltarei pra me despedir, dona Maria… Não vou incomodar mais…

          – E eu nem ofereci um café…

          – Fica pra outra vez… Não se incomode…

          Vão até a porta. Nada mais falam. Cumprimentam-se com um balanço de cabeça. Jorge sai. Dona Maria fica olhando enquanto eles se afastam. Uma mulher está vindo de longe, com um bebê no colo. Pára diante de Jorge e dos filhos. Dona Maria percebe que eles se falam. Um dos adolescentes grita para dona Maria:

          – Minha mãe, não é a Milota?

          – É. É a Milota. Parece que eles estão conversando. Não. Ela já está vindo.

         

Seqüência 11:

 

          Chega Milota, a filha mais velha de dona Maria, com um bebê no colo. Tem, pendurada ao ombro, uma sacola de macramé.

          – Minha mãe, falei com o dono do circo. Disse que veio conversar com a senhora…

          – Disse que veio me trazer satisfações. Você já sabe?

          – A Ana bateu na minha janela bem tarde, a mando da dona Olinda, e me contou tudo.

          – E o que vocês conversaram ali, rapidamente.

          – Só perguntei se era ele. Hoje de tarde vou ver a Maria.

          – Você não pode ir lá, Milota. É uma casa de mulheres perdidas.

          – Minha irmã está lá… Eu vou. Se não, ela vai embora e eu nunca mais a vejo.

          – E o Juca? Se ele ficar sabendo?

          Milota leva o bebê para o único quarto e o coloca na cama. Os menores o envolvem e ficam brincando com ele:

          – Zelinha! Bilu bilu! Zelinha!

          Milota volta à salinha.

          – Eu converso com o Juca. Com ele eu resolvo. Outro dia uma vizinha me visitou e disse que o marido dela viu o Juca saindo da casa da dona Olinda. Falou bem na frente da Ieda, que já está começando a entender as coisas…

          – Ai, que vergonha! Um homem casado numa casa de perdidas. E o que você falou pra ela?

          – Perguntei se o marido dela, quando viu o meu, estava entrando ou saindo da casa. Mas eu vim aqui por outra coisa. É essa caixa que trago. O compadre Inácio mandou para mim do Rio de Janeiro. Comprou de um soldado que chegou da Itália.

          – E se ele mandou para você, por que você traz para mim?

          – Vou mostrar.

          Milota tira a caixa da sacola e a abre. Há uma Virgem Maria com uma roupa de tecido. Enfiadas no seu peito, sete espadas de madeira dourada, quatro no lado direito, três no lado esquerdo.

          – Que horror! Que santa é esta?, Milota.

          – Mostrei pro padre. Me disse que é uma Virgem das Dores. Mas falou que esta santa não é conhecida no Brasil, que é melhor não ficar mostrando pra todo mundo, porque é uma imagem muito forte.

          – E por que você trouxe?

          – Mostrei pro Juca, minha mãe. Ele mandou eu jogar a santa no rio. A senhora conhece o Juca. Outro dia chegou meio bêbado em casa e pegou os dois quadros que eu tenho na sala, os dois Sagrados Corações, virou os dois pra parede e disse que não queria que santo nenhum ficasse olhando pra cara dele. E quando ele viu esta imagem falou: se é pra mostrar que está sofrendo, não basta uma espada? Pra que sete? É uma pra cada dia da semana? Pra não criar problema, disse que ia trazer a imagem pra cá.

          – Esta santa está com o coração igual ao meu. Ô minha filha… O homem do circo vai levar a Maria. Isso é bom ou ruim?

          – Isso eu não sei. Mas não é melhor que ela saia da cidade? Hoje à tarde vou visitá-la. Quero dizer pra ela que a senhora também está sofrendo.

          – Você quer um café?

          – Não. Vou descansar um pouco antes de voltar. A senhora está precisando de alguma coisa?, minha mãe.

          – Não. Ainda tem muita coisa. O Juca manda coisa de mais.

As duas olham um tempo para o chão, absortas. Milota corta o silêncio.

          – Quer saber uma novidade?, minha mãe. O Juca encomendou um rádio. Vai chegar na semana que vem.

          – Um rádio. Eu vi um, uma vez, numa estação de trem. Como é que eles colocam as pessoas naquela caixinha?

          – Não, não é assim. A voz vem pelo fio da luz. Vamos ouvir a Rádio Nacional, da capital. Os artistas todos. O Vicente Celestino, a Gilda… Até a Dalva, uma nova que eu ouvi quando viajei pro Rio com o Juca. Vai ser o primeiro rádio da cidade. Nem a Milica tem um.

          – Esta santa está com o coração igual ao meu, Milota. Sete espadas, sete dores… Sete espadas, sete dores… Uma dor pra cada dia da semana.

Milota olha para a mãe e se cala.

 

Seqüência 12:

         

Jorge Carvalho está no centro do picadeiro, com roupas circenses.

          – Senhoras e Senhores! Com muitíssimo orgulho, nós, da Companhia do Grande Circo Mineiro, abrimos nesse momento a nossa noite de estréia. Preparamos para Vossas Senhorias números incríveis, admiráveis, emocionantes… E terminaremos a nossa grandiosa noite com a apresentação de uma nova peça sacra, um milagre maravilhoso exatamente conforme é relatado nos Evangelhos. (Um palhaço entra correndo e se coloca ao seu lado. Ele o olha mas continua.) E garantimos a Vossas Senhorias… (O palhaço faz um sinal para ele.) E garantimos a Vossas Senhorias… (O palhaço se mostra desesperado. Cochicha no ouvido do apresentador. Jorge, com um gesto, ordena que fique quieto.) E garantimos a Vossas Senhorias que na nossa noite de estréia não será visto nenhuma palhaçada. (O palhaço se mostra exageradamente desesperado e aponta para os bastidores.)

          Jorge muda de tom, mas ainda se mostra completamente teatral:

          – Mas o que acontece?, palhaço. Você me interrompe bem na noite da estréia. O que aconteceu?

          O palhaço fala algo inaudível.

          – Mais alto!, palhaço. Não estou escutando!

          O palhaço aumenta um pouco o volume da voz, ainda inaudível.

          – Mais alto!, palhaço. Parece que você não come angu. Eu não ouvi nada. Os senhores ouviram?

          Alguns da platéia gritam Não!

          – Ouviram ou não ouviram?

          – Não!

          – Viu?, palhaço. Conte alto o que está acontecendo e eu vou começar a apresentação de novo.

          O palhaço grita altíssimo na orelha de Jorge:

          – É o Pirulito!

          – Na minha orelha, não, seu animal. O que é que tem  o Pirulito?

          – Ele diz que não vai entrar em cena hoje.

          – O quê? Você está louco! Por que é que ele não vai entrar? Não, não. Não precisa responder. Vai lá e traz ele aqui, na marra. Vai já!

          O palhaço sai. Ouve-se tambores e pratos e uma gritaria. Volta o palhaço mancando.

          – Ói, seu apresentador. Ele não vem e não vem e não vem. Falou bem assim: Não vou e não vou e não vou.

          – Pois volte lá e me traga ele na marra.

          – Ói, seu apresentador. Pois eu estou com medo e estou com medo e estou com medo.

          – Pois então, deixa comigo.

Faz um sinal para o lado e um outro palhaço, até então escondido, lhe apresenta um revólver. Jorge vai até a cortina, abre-a um pouco e grita:

          – Pirulito!

Ninguém responde.

          – Ô Pirulito!

Ninguém responde. Jorge dá um tiro para o alto. A cortina se abre a aparece um homem barbudo com a boca vermelhíssima e uma peruca colorida e horrenda na cabeça. Pirulito fala:

          – O que foi, o que foi, o que foi?

          – Pois eu vou dizer que você está me deixando nervoso e nervoso e nervoso! Entra já, pra gente começar o nosso teatro sério.

          – Eu estou com vergonha, com vergonha, com vergonha.

Jorge dá um tiro para o alto. Pirulito entra. Tem uma saia imensa e muito rodada. Enchimentos nos peitos e na bunda o transformam numa megera.

          – Não fique nervoso, homem. Já entrei… Aqui estou, aqui estou, aqui estou…

          – E por que é que não entrou antes?

          – Ói, homem. Pois eu estava com vergonha. Eu, assim, vestida de mulher, na frente desse povão todo. Ui, que vergonha, que vergonha, que vergonha!

          – Deixa de ser animal, seu burro! Isto aqui é um teatro. Você é mulher só por fora. Por dentro, você continua homem. Entendeu?

          – Eu entendi mas não compreendi. Ou melhor, eu compreendi mas não entendi.

          – Pois eu vou explicar. Aqui (aponta a cabeça), no teu cérebro, você é homem. Pensa como homem, quer coisa que homem quer, faz coisa que homem faz. Intindiu?

          – Entendei!

          – É só do lado de fora. As roupas são de mulher. A peruca é de mulher. Tudo por fora é de mulher. Mas por dentro, é tudo de homem. Intindiu?

          – Entendei!

          – Aqui (aponta para o sexo de Pirulito), aqui, Pirulito, você é homem e vai ser sempre homem, seu animal.

          – Pois ói, seu apresentador, imagine um Pirulito sem pirulito.

          – E chega de conversa e vamos começar. Senhoras e senhores! O grande drama cômico, a grande comédia trágica, A história da mocinha raptada pelo namorado no dia de seu casamento com o velho mais rico do mundo. Entrem os atores! (atira para o alto.)

          Entram Menininho, com roupa de adulto, com um bigode pintado. Um homem do circo, o mais alto e magro, de mocinha, com um vestido comprido branco. Pirulito fará a mãe. Uma mulher do circo será o velho rico, barba postiça bem artificial.

 

(Durante a apresentação, as imagens dos personagens vão ficando cada vez mais distantes. Closes da platéia, vendo-se os grupos: dona Olinda e suas mulheres atrás de uma cortina preta, junto à saída dos atores, os ricos com seus filhos, os pobres, planos gerais cada vez mais distantes, até que as últimas falas sejam ouvidas com imagens do circo visto de fora.)

 

Mãe e filha passeiam. O moço vê a mocinha.

Fala a mocinha:

 

– Minha mãe me deu uma surra

E anda me vigiando.

E tudo isso ela faz

Porque eu estou namorando.

 

Fala o mocinho:

 

– Oh, mas que linda mocinha.

Meu coração bate forte.

Ela vai ter que ser minha.

Se não, será minha morte.

 

Fala a mãe:

 

– Minha filha é meu tesouro.

Pois sou viúva e bem pobre.

Casarei ela com um velho

Que seja rico e bem nobre.

 

Fala o velho:

 

– Trabalhei a vida inteira

Sou rico mas vivo só.

Preciso de uma noivinha

Pra… pra… ai, triste de mim, que tenho tanto dinheiro mas não sei falar em versos. Ai, que dó!

 

Fala o mocinho para a mocinha:

 

– No alto daquele morro

Também cria perereca.

Tua mãe está te criando

Pra seres minha boneca.

 

Fala a mãe para o mocinho:

 

– No alto daquele morro

Também cria tico-tico.

Tô criando minha filha

Mas não é para o teu bico.

 

Fala a mãe para a mocinha:

 

– Florisbela, minha bela.

Um velho rico te espera.

Vamos sair da pobreza.

A vida será uma beleza.

 

Uma salva de palmas será ouvida de longe, sobre imagens do circo visto também de longe. Uma mudança nas cores e na imagem do circo sugerem o clima irreal da pantomima a seguir.

 

Pantomima:

 

O corredor. No palco, já descrito anteriormente, vê-se a placa: Hoje: A donzela vendida.

 

Uma casal de camponeses entra dançando. Sua roupa é cinza. A mulher traz ao colo uma menininha, dois ou três anos, com uma touca de babados e uma linda camisola de feitio antigo, com uma saia de mais de um metro de comprimento, toda de renda. Entra um homem grotesco, sua dança é toda desequilibrada. Veste-se de preto, mas sua roupa está coberta de brilhos, lantejoulas e pedrarias. Vê o casal e se aproxima. Olha a menininha. Admira. Retira dos dois bolsos jóias diversas, principalmente colares e correntes, e as entrega ao homem. A mulher lhe dá a criança. Ele leva a criança no colo, dançando. O homem divide as jóias com a mulher e ficam dançando, enquanto a cena desaparece.

 

 

Seqüência 13:

 

Interior da barraca de Jorge. Galos cantando longe indicam que amanhece. Jorge e Maria dormem num colchão sobre o chão. Os dois estão cobertos com um lençol. Jorge abre os olhos. Separa-se um pouco da mulher, suavemente, para não acordá-la e pega uma ceroula ao lado do colchão, que veste, sempre debaixo do lençol. Ao puxar o lençol para levantar-se, Jorge olha intrigado para o lençol sobre o qual Maria ainda dorme. Vê uma mancha de sangue. Empalidece. Fecha os olhos e se concentra por um tempo. Levanta-se e se senta diante da cama, sobre um tapete no chão. Fica um tempo a olhar a mulher. Maria se mexe no colchão, vira-se, abre os olhos e se espanta:

          – Ô, homem. Não tinha visto que já acordou.

Ao se perceber nua ela se cobre mais e fala:

          – Vira pra lá, que vou mudar minha roupa.

Jorge se vira. Vê-se seu rosto, muito sério.

          – Pronto.

Chega-se junto dele. Percebe sua seriedade.

          – Ê, homem. Quê que aconteceu? Fiz alguma coisa de errado?

Ele nega rapidamente com a cabeça, esboçando um sorriso cheio de mistério.

          – Mulher!

Nega novamente, seu sorriso se abre mais:

          – Mulher! Foi a noite mais bonita da minha vida.

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