o dia sem nome, 23 (final)

O dia sem nome, 23 (final).
O dia sem nome.

A madrugada surgiu com a mesma ternura. Rósea e fria, primeiro aqui, depois ali, a brisa, o vermelho, o dia. O dia que não teria nome. O primeiro dia de uma série de desesperados dias iguais. Geleiras desceriam, continentes deslizariam, por que não novos Andes e novas fossas oceânicas?
Desceu sobre a terra o primeiro dia da descriação.
Não havia homem a perguntar para quem a luz foi feita ou para quem foram separadas as terras das águas.
Em volta, no buraco sem fundo, a mesma regularidade, silenciosa, desconhecida, eterna.

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Foi Wilhelm, Gaston, Sven, Ali ou Luís, aquele que queimou noites acordado, em busca da fórmula maligna?
Foi o Deus dos dez mandamentos, quem apontou seu dedo em direção ao planeta azul?, com seus míseros quatro e meio bilhões de anos!
Foi James, Mark, René, Gaspar, Giuseppe ou Vassili, o Mestre da Guerra que patrocinou a estadia de luxo aos sábios da destruição inapelável?
Foi o Deus da vitória, quem soprou a morte sobre a vidinha teimosa da poeirinha?, essa vidinha com seus três e meio bilhões de anos!
Ari ou Hector, Mulla ou John, Arnold ou Matteo, o homem que trancou à chave os papéis do projeto implacável?
Foi o Deus do dilúvio, arrependido pela segunda vez por ter criado, que resolveu descriar?
Hindu ou grego, peruano ou iraniano, belga ou coreano,
russoouamericanoouchinês?,
aquele que deu o sinal aos computadores orbitais, seguido de outros sinais por pura segurança, retaliação, vingança,
senósnosvamoselestambémsevão,
senósnãoescaparemosninguémescapará,
nadavaisobrarparacontarcomofoi
nemoquêexatamenteaconteceu…
A terra não teve chance de chorar seus mortos. Foi inútil o grito agoniado dos últimos profetas.
A qual Deus foi feito o sacrifício absoluto, idiota e fatal?
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Foi tudo de repente. Foi tudo tão de repente! O assobio e a morte. A foice degolou simultaneamente a todos os micróbios do planeta vadio. Crianças mamando, velhos apagados e semimortos, fetos e soldados, homens que lutavam e casais em êxtase orgástico.
Não houve aviso, e, exatamente por isso, não houve espera nem desespero. Ninguém tivera tempo de tecer a lamentação de Cassandra. O fim tocou de mansinho, abateu um homem assinando a ruína de todo um povo com a mesma doçura com que desmanchou o suspiro do menino apaixonado.
Chegou com a mesma brandura para o homem que acabava de escrever um livro qualquer e um qualquer outro homem que acabava de ler um outro livro qualquer.

Curitiba, 07 de outubro de 1976.
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o dia sem nome, 22

O dia sem nome, 22.
Baby Longfuck não mordeu o segundo naco de queijo. Parou para prestar atenção ao zumbido, quem sabe seria um tipo de alarme de alta frequência, o braço pendeu e seu corpo dourado e perfeito começou a se derreter, como uma estátua de Adônis nu que fundisse.
Fora dali, sempre o mesmo. Por ser em Nova Iorque, porém, o silêncio pareceu maior, porque parido por um gemido mais intenso. Os milhões de habitantes, como uma monstruosa, irreverente, escandalosa, ousada e obstinada colônia de térmites, todos eles se desfizeram com o mesmo espanto que não chegou a ser cumprido nas consciências. Houve também desastres de fogo, água, colisões, desabamentos, tudo em maior escala, mas que diferença faria agora uma maior ou menor escala?
O formigueiro tinha sido vencido, finalmente. A imensa Babilônia tinha sido arrasada então, não sendo necessário um Átila do Nada espalhar sal sobre as suas ruínas porque também os animais e as plantas dançaram breves a imensa valsa do aniquilamento da vida.
O Hamlet, sozinho e agonizante, no imenso palco, não terminou seu monólogo de angústia e delírio. Ficavam os textos. Nem traças restavam para devorar as letras, enquanto ignorassem a dor e a loucura do mundo. Torturadores e torturados misturaram-se impudicamente, a mesma massa informe, impassível e incapaz. Acabara-se a humilhação diante da força mas acabara-se também a esperança de um dia poder-se acabar com a força da força. As imensas naves dos templos fizeram ecoar por muitos anos as quedas dos objetos e dos cacos de vidro e dos pedaços de paredes. Os deuses não precisavam mais dos templos, que não mais havia homens que precisassem de deuses.
Um computador numa capital africana terminava ironicamente a contagem para indicar um primeiro presidente eleito. Eleito mas não coroado se não pela coroa da morte.
O que dizer das serpentes e dos escorpiões e das aranhas, cheios de peçonha? O que dizer dos sabiás e dos cisnes e dos esquilos? O que dizer da imensa brincadeira de guerra dos soldados noviços, amputada inesperadamente de seu troar retumbante da artilharia pesada, perigosa e idiota? O que dizer da orgia aflita dos corpos misturados às drogas e ao suor, todos tentando ser felizes num fugidio momento de orgasmo, esquecidos de que, para um grande gozo, basta um parceiro cheio de amor e confiança?
Os culpados foram desculpados, os feitos foram desfeitos, os governos foram desgovernados, os mascarados foram desmascarados. Os crentes, descrentes, os ditosos, desditosos, os acatados, desacatados, os armados, desarmados. Acreditados, desacreditados, ajustes, desajustados, infectos, desinfectados, acertos, desacertados.
Desconjunto, desnível, desnorteio, desconcerto, desconsolo, destroço, despropósito, desmantelo, desordem, desespero, descontrole.
Tudo isso era Nova Iorque. O maior vazio da terra. Do tamanho de todos os outros vazios. O maior silêncio do mundo. Como todos os outros silêncios. A grande massa esfarelada. Ferro, cimento, asfalto, ao vento, ao sol, ao que não fazia mais sentido, ao que era mas não era. Era, mas não adiantava mais ser.
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o dia sem nome, 21

O dia sem nome, 21.

  São Paulo, dia 14 de abril, 13 horas.

Confusão e sono. Sono e dor. Dor e ruídos. Ruídos e dormência.
João tentou levantar a perna insensível mas não conseguiu, sentiu que não conseguia. Pensou, no meio do nevoeiro, pensou com dificuldade que, se respirasse muito fundo, conseguiria levantar a perna morta. Respirou mas ouviu zumbidos, estalos que rebentavam e luziam ante seus olhos inchados e meio cegos. O esforço foi muito grande, sentiu rebentar dentro dele uma espécie de balão inflado, houve uma dor, uma faca rasgando alguma carne muito sensível, a dor o fez mergulhar numa pequena morte. Não percebeu que tinha urinado. Alguém trocou a calça do seu pijama, limpou a urina, mudou o lençol, uma pessoa qualquer o levantou pelos ombros e foi como se um estilete cheio de fogo percorresse toda a sua coluna vertebral.
João não sabia se estava gemendo ou não. Os olhos arregalavam mas ele via apenas uma fina fresta porque as pálpebras enormes se recusavam a abrir, pesadas e roxas. U’a mão o empurrou para o lado, João sentiu apalparem a nádega
vão me dar outra daquelas injeções
quis levantar o braço para impedir mas não conseguiu. A mão apalpou, mas como a carne estava machucada demais e muito magra, a mão virou-o e o álcool foi passado na coxa e na coxa ele sentiu a fincada violenta enquanto a dor penetrava grossa como um azeite empelotado.
João não queria mais dormir porque sabia que as idéias custariam a voltar ao lugar. Ele vomitaria verde de novo, algumas bolotas de sangue também. A vantagem, porém, era que, pelo menos, enquanto dormisse, ele não seria levado lá. Mas ia perder novamente a noção de tempo, há quanto tempo tinha começado tudo aquilo?, desde o momento inesperado, quando, ao abrir o quarto da pensão, sentiu um cano no peito e uma voz soou no escuro
comunista porco, me siga ou te castro e te mato!
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