o dia sem nome, 22

O dia sem nome, 22.
Baby Longfuck não mordeu o segundo naco de queijo. Parou para prestar atenção ao zumbido, quem sabe seria um tipo de alarme de alta frequência, o braço pendeu e seu corpo dourado e perfeito começou a se derreter, como uma estátua de Adônis nu que fundisse.
Fora dali, sempre o mesmo. Por ser em Nova Iorque, porém, o silêncio pareceu maior, porque parido por um gemido mais intenso. Os milhões de habitantes, como uma monstruosa, irreverente, escandalosa, ousada e obstinada colônia de térmites, todos eles se desfizeram com o mesmo espanto que não chegou a ser cumprido nas consciências. Houve também desastres de fogo, água, colisões, desabamentos, tudo em maior escala, mas que diferença faria agora uma maior ou menor escala?
O formigueiro tinha sido vencido, finalmente. A imensa Babilônia tinha sido arrasada então, não sendo necessário um Átila do Nada espalhar sal sobre as suas ruínas porque também os animais e as plantas dançaram breves a imensa valsa do aniquilamento da vida.
O Hamlet, sozinho e agonizante, no imenso palco, não terminou seu monólogo de angústia e delírio. Ficavam os textos. Nem traças restavam para devorar as letras, enquanto ignorassem a dor e a loucura do mundo. Torturadores e torturados misturaram-se impudicamente, a mesma massa informe, impassível e incapaz. Acabara-se a humilhação diante da força mas acabara-se também a esperança de um dia poder-se acabar com a força da força. As imensas naves dos templos fizeram ecoar por muitos anos as quedas dos objetos e dos cacos de vidro e dos pedaços de paredes. Os deuses não precisavam mais dos templos, que não mais havia homens que precisassem de deuses.
Um computador numa capital africana terminava ironicamente a contagem para indicar um primeiro presidente eleito. Eleito mas não coroado se não pela coroa da morte.
O que dizer das serpentes e dos escorpiões e das aranhas, cheios de peçonha? O que dizer dos sabiás e dos cisnes e dos esquilos? O que dizer da imensa brincadeira de guerra dos soldados noviços, amputada inesperadamente de seu troar retumbante da artilharia pesada, perigosa e idiota? O que dizer da orgia aflita dos corpos misturados às drogas e ao suor, todos tentando ser felizes num fugidio momento de orgasmo, esquecidos de que, para um grande gozo, basta um parceiro cheio de amor e confiança?
Os culpados foram desculpados, os feitos foram desfeitos, os governos foram desgovernados, os mascarados foram desmascarados. Os crentes, descrentes, os ditosos, desditosos, os acatados, desacatados, os armados, desarmados. Acreditados, desacreditados, ajustes, desajustados, infectos, desinfectados, acertos, desacertados.
Desconjunto, desnível, desnorteio, desconcerto, desconsolo, destroço, despropósito, desmantelo, desordem, desespero, descontrole.
Tudo isso era Nova Iorque. O maior vazio da terra. Do tamanho de todos os outros vazios. O maior silêncio do mundo. Como todos os outros silêncios. A grande massa esfarelada. Ferro, cimento, asfalto, ao vento, ao sol, ao que não fazia mais sentido, ao que era mas não era. Era, mas não adiantava mais ser.
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