garças e abutres… 03

valdemaro kaj hermeso

3. Os habitantes    

    Falei em garças e garras e bicos. Garças voam, é verdade. Mas garras e bicos é exagero literário. Não me lembro agora de um fato que me doa, que me assuste, que me apavore. Alguma coisa devia ser terrível, na ocasião, mas hoje não faz a mínima diferença.
Penso que todas estas lembranças poderiam ser apenas garças. À ocasião, é verdade, deviam ser aves trágicas e fatais, deformadas, monstruosas, há algumas parecidas, não mais garças, mas terríveis criaturas em cantinhos quase escondidos de Hieronimus Bosch. Mas, tanto tempo depois, agora, essas minhas lembranças se mostram suaves e delicadas, brancas garças a voar, numa pintura japonesa.
E se me pergunto se isto marcou os caminhos por onde perambula a minha vivência, respondo que não sei. É possível. É muito possível. A auréola que teci para mim, a couraça de protetora timidez, os sustos futuros, as saudades que senti… Não sei. Não sei. É possível. E muito possível.
É quase certo que sim.
A cena que me ocorre a seguir já me mostra sentado no chão, entre alguns meninos. Não, não eram meninos, eram garotos ou guris. O internato ficava em Campo do Meio, Minas Gerais. Pesquisando mais tarde em livros sobre municípios brasileiros, do IBGE, descobri o nome: Instituto Profissional e Agrícola São José. Estávamos em Minas, mas o ambiente era carioca. A maioria de nós tinha sido arrebanhada na cidade que, à época, era a capital federal: brancos, negros e mulatos. Logo logo, descobri que eu era um dos mais novos. Isto me ajudaria terrivelmente, facilitando muito as coisas para mim, em prejuízo dos mais velhos. Não sei os limites de idade daquela pequena população e, menos ainda, sei do número de seus habitantes. Imagino que as idades deveriam variar entre seis e quatorze anos (depois, não haveriam de tomar outro rumo?). Mas jamais conseguiria uma idéia precisa quanto ao número de crianças e adolescentes. De que mesquinharias depende nossa memória! Um mosquito pode permitir que ela levante impérios, componha painéis imensos. Bem…
Os pequeninos formavam seus grupinhos e assim os maiores. Quero me lembrar dos mais próximos, os mais íntimos: Valdemar, Hermes, Bojão, Zé da Silva, Gata Russa, Marquinhos… Devo ter esquecido algum… Talvez, para sempre.
Valdemar era claro, tinha a voz rouca. Cabelos encaracolados, olhos verdes, cinzentos, azuis, seus olhos mudam de cor a cada lembrança. Sentava-se no chão e desenhava uma sereia de perfil, inevitavelmente, desenhava uma sereia de perfil. Com ele aprendi a desenhar perfis femininos, que me perseguem até hoje. Seria por isso que as mulheres de Piero della Francesca me impressionam tanto? Aquelas enormes testas, os olhos um pouco empapuçados, os traços ligeiramente primitivos… Valdemar há de me acompanhar durante todas as lembranças. Quando eu falar “nós”, sem me referir a todo o corpo de alunos, estarei falando dele e dos outros poucos amigos.
Acho que ele era mais velho do que eu. Por que não me lembro dele, na sala de aula. Ou seriam tantos da mesma idade?, a ponto de serem distribuídos por muitas turmas da mesma série. Não sei. Valdemar está comigo quando desenhamos no chão, brincamos com barro ou cantamos.
Hermes era mulato, alto e magro. Um dia aprendi que na história do Brasil o primeiro presidente se chamava marechal Hermes e a partir daí sempre tentei imaginar o meu amiguinho vestido de marechal e segurando uma espada ou algo que presidente costuma segurar. Nunca consegui, ele ficava ridículo, se desequilibrava com aquela carga confusa e imprecisa, medalhas, cavalo, quem sabe uma coroa, farda, capa, tanta coisa importante! Voltava a ser Hermes, mulato mansinho, magro, alto. Sua voz era fina. Seus olhos me lembram o mel transparente. Parece que a gente atravessava através dele, quando o olhava nos olhos. A pele era bonita, um bronze queimado, e quando estudei, no ginásio, que os egípcios eram cor de bronze ou cobre, e assim também os hindus, lembrei-me, na hora, do amigo distante, com certeza seria egípcio ou hindu, porque tinha os cabelos lisos e era alto e magro. Lembro mais: algum tempo antes de minha saída, ele disse que estávamos todos muito magros. Eu pude reparar a verdade dolorosa. E me lembrei de como ele era forte e me parecia belo, à primeira vez que o vi.
Foi Hermes ou Valdemar quem ensinou ao resto do grupo a cançãozinha que falava de São Pedro?

    Meu pai amarrou meus olhos
Para São Pedro desamarrar.
A menina que tem dó de mim
Venha meus olhos desamarrar…

Não consigo lembrar. Lembro, porém, que foi ele, com certeza, que inovou as rodas dos carrinhos de barro e nos maravilhou com a invenção das grades do carburador. Voltarei a isto, noutro capítulo.
A última lembrança que tenho desse menino triste e magro, de olhar transparente como o de um anjo, é a da noite que antecedeu a minha partida. Ele estava profundamente triste, cabisbaixo e abatido. Acho que chorava. Falei que preferia não ir embora, que não queria deixá-los lá. Ele disse que eu não tinha direito de estar triste. Eu tinha mãe, ia voltar, era um sonho maravilhoso. Eles continuariam ali, sofrendo, comendo misérias, levando porradas, emagrecendo… Colocou seu bracinho junto do meu e, ao ver aqueles ossinhos sob a pele, meu corpo todo estremeceu e eu senti como que uma faca mexendo no meu coração. Doeu muito vê-lo com os braços tão fininhos, ele todo fraco, tão melancolicamente doente.
Eu disse que não há mais garras nem bico de abutres dentro de mim. Mas que mistério é esse que enche meus olhos de água e me estremece a mão? Onde se escondeu o fantasma benévolo desse anjinho mulato que não cresceu mais, que não me acompanhou pela vida afora, que se plantou dentro de mim, como um menino imorredouro?

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 02

garças e abutres 02

2. A viagem

    Havia muita luz ao redor. Parecia que estávamos num palácio de vidro. Não sei como chegamos ali porque eu já estou sentado, dentro do trem. Geraldo está perto de mim. Vejo pela janela que, do lado de fora, minha mãe chora. Tia Ananísia enfia a cara pela janela e pergunta:
Quem é que vai tomar conta deles?
O Aluísio.
Quem é?
É aquele ali; alguém apontou um rapagão corpulento, gordo mesmo, claro, cabelos anelados, mais tarde me lembraria, como os das estátuas do deus Apolo. Mais tarde, também me lembraria sempre dele, ao ouvir a palavra balofo.
Moço, é você que vai vigiar eles?
Sim, senhora!
Tome conta deles, Aluísio, pelo amor de Deus! Cuide deles. Não deixa ninguém judiar deles, não! E apontava para mim e pro Geraldo.
Minha mãe chorou mais alto e Geraldo também começou a soluçar. Não entendia como era possível chorar num lugar tão lindo, quanta luz!, eu dentro do trem!, minha primeira viagem!
O fato é que a viagem era mais fascinante que todo o resto. Eu vestia minha capinha preta, daquelas antigas, que envolvia todo o corpo, sem mangas, os braços soltos por dentro. Esperava ansioso o primeiro movimento.
Lembro agora, enquanto escrevo, que ele também estava lá. O inspetor. Antonio. Mulato enorme, pele mais para clara. Tinha chapéu. Só me lembro desse detalhe por que durante uma parada ele haverá de encher o chapéu com goiabas e sairá correndo atrás do trem, já em movimento. Foi ele que acabou de avisar alguma coisa e todos silenciamos e nos sentamos e minha tia repete o pedido ao Aluísio,
o senhor vai ser o responsável, moço, nós confiamos no senhor, moço,
minha mãe se desespera, ouço um baque, tudo começa a tremer, e em vez do trem começar a andar para frente, são eles que deslizam para trás: a tia, a mãe, os outros, cada vez mais depressa, até que se faz negrura completa lá fora.
Geraldo chora. Alguém mais choraria? Não me lembro de ninguém. Eu, Geraldo, o inspetor Antonio, e o moço que recebera as recomendações da tia: Aluísio. Na viagem soubemos mais. Ele era morador do internato para onde íamos, mas ajudava o inspetor nas idas e vindas, trazendo e levando alunos. Não sei se foi na viagem ou depois, que ouvi:
O Aluísio é mulher do Antonio.
Minha compreensão não alcançava as sutilezas da frase. Tenho noção bem precisa de minha compreensão do fato na época: eles dormiam juntos, eles eram casados. E como “dormiam juntos” eu só entendia que se dormisse junto, mesmo. Nada mais interessava. Não sabia que era preciso ser mulher para ser mulher de Fulano. Devia ser assim mesmo e o jeito era aceitar a verdade, guardá-la, poderia precisar dela noutra ocasião. Mas por quê aqueles risinhos, quando eles repetiam a frase?
Algum tempo depois de iniciada a viagem, descobri uma verdade que me encheu de alegria. Se eu olhasse pela janela, o trem andava; tudo corria para trás, mas era ele que andava. Se, ao contrário, olhasse para o chão do trem, ele parava e apenas tremia. Não, ele não parava, essa era a verdade maravilhosa. Ele parecia parado, mas andava. Fiquei assim muito tempo, concentrado em pensar que ele parecia parado, que tudo parecia parado, se eu olhasse para o chão.
E eis que já estou num caminhão. Estamos amontoados numa carroceria, é noite. Anos depois, Geraldo lembraria que fomos do Rio até Cruzeiro, em São Paulo. De lá, noutro trem, para uma estação que tinha algum nome além de João, João-não-me-lembro-do-quê. Depois é que tomamos o caminhão para Campo do Meio. Não sei disso, não existem estes detalhes dentro de mim. Do trem da Central do Brasil, aquela possante máquina, me vejo no caminhão. Há muita gente agora, todos amontoados, está escuro, falam, mexem, eu me cubro com minha capa.
Agora, já estamos caminhando em direção à casa. É noite, eu de mãos dadas com Geraldo. De repente, percebo que estou sem minha capa. Ele me adverte que não adianta mais, o caminhão já foi embora. A capa sumiu. Era negra, era quente, era um pedaço de minha cidade, Manhuaçu, que me acompanhava, era a lembrança constante e viva do olhar triste de minha mãe, que a tinha feito para mim, quando comecei a ir à escola.
Então, nalgum momento entramos naquela casa. Também este momento está completamente apagado em minha memória. Mas, forçosamente, entramos. Entramos, sim, com certeza, porque meu coração não esqueceu jamais o punhado de recordações que se desenharam dentro de mim. Algumas recordações são brancas e apagadas, como garças que voassem na neblina; outras são vivas, nítidas, com cheiro e volume, como um abutre feroz, com suas garras afiadas, ou seu bico implacável, sanguinário…

continua no próximo domingo.

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garças e abutres… 01

garças e abutres 00

    Um homem inteiramente só, não teria memória; nem precisaria dela. (Pierre Janet)

O Senhor Freud estava errado.
O inconsciente não tem poder sobre nós, mas, sim, a memória.
É a memória como uma Imperatriz das Almas. É ela quem decide aquilo de que lembraremos por todo o tempo e aquilo que se apagará de dentro de nós, para todo o resto da nossa vida. Podemos aprender a tornar a memória mais ampla. Podemos, numa terapia, resgatar lembranças que pareciam perdidas. Mas NÃO PODEMOS ESQUECER, por opção, aquilo que a Imperatriz das Almas não permite que seja esquecido.
É o terrível jogo entre as lembranças que temos, e aquilo que não conseguimos esquecer, é esse o jogo que define cada ser humano. Somos essa soma. Aqui não há subtrações. O apagado apenas significa o que não nos pertence; o que não somos mais, nem voltaremos a ser.

1. Antecedentes

garças e abutres 01

Num resumo, os fatos que antecederam a minha chegada à estação de trem foram os seguintes.
Tínhamos viajado para o Rio, mamãe, Geraldo, Amélia, eu e Angela. Três dias de viagem na cabine do caminhão, Geraldo na carroceria com o ajudante. No segundo dia, em Muriaé, Ângela fez cinco anos. Vinte e quatro de março de 1949. Eu tinha, portanto, seis anos e quase nove meses.
A viagem, hoje, mais parece uma seqüência breve de fotografias. Pedaços de memória. Ou cenas curtas de um filme mudo, arranhado, muito claro, montagem complexa em que imagens se misturam umas dentro das outras.
As cenas do caminhão; o almoço na pensão, no dia do aniversário; todos nós sentados numa calçada e em volta da mãe, numa noite escura e morta, dormindo encostados uns nos outros, enquanto ela conversava com uma moradora da cidade (Leopoldina?).
Na avenida Presidente Vargas, um homem parou a moto e nós, aflitos, atravessamos a rua larguíssima. Pensei que nunca mais tornaria a vê-lo. É a primeira vez, que me lembre, de ter tido esta idéia: vendo ou sentindo alguma coisa, concluir que aquilo não se repetirá.
Do homem da moto, já estamos no apartamento da tia. Telefone, os carrinhos lá embaixo, rua Washington Luis, número 1, apartamento 801, telefone 32-8366. Seria mesmo isto? Geraldo jogou um tostão lá do alto, nós descemos e o procuramos, inutilmente. Não sei quantos dias ficamos ali.
Porque, na cena seguinte, já estou olhando o grande portão de ferro do SAM (Serviço de Assistência ao Menor), algum menino me dizendo que não daria para fugir por ali. Mas por que alguém quereria fugir dali?, eu penso. Eu visto um macacão azul, como todos, o padre nos ensina um canto, cujas palavras eu já esqueci:

    Queremos Deus, homens ingratos ….. Zombam da fé os insensatos…..Da nossa fé, oh, Virgem, o brado abençoai…

Que seria brado?, eu penso. A música me entra e engasga minha alma, a comoção dói e o padre se dilui, desaparecendo.
Geraldo devia estar por ali, decerto, porque volta e meia ele aparece, como se fosse mágica. Sua presença me dá muita segurança, sei que logo ele vai fazer doze anos!
Estou no meio de alguns meninos, um deles coloca o dedo rígido junto ao rosto de um outro e chama:
Ô garoto!
E o outro, ao virar-se, bate o rosto em seu dedo. Todos riem. Acho que eu também ri. Faço o mesmo com algum vizinho:
Menino!
Mas a palavra me soa estrangeira e desarmada. Eu me encolhi todo, envergonhado. Menino ali não era menino, era garoto. Ou então guri. Garoto, guri, as palavras dançavam dentro de mim.
Ignoro quantos dias ficamos naquele prédio. Teríamos dormido ali? Com certeza, porque me lembro de visitas, lembro de maçãs e lembro do olhar triste de minha mãe. E se alguém me perguntasse o que era viúva…
…naquele tempo, eu conhecia uma tristíssima canção infantil:

    Eu tenho um rochedo tão alto
Que ninguém pode alcançar.
Sentou-se a pobre viúva
E triste pôs-se a chorar,
A chorar,
A chorar…

…e se alguém me perguntasse o que era viúva…
…eu diria que viúva era o que era minha mãe.
Todavia minha mãe não era viúva. Apenas abandonara o marido alcoólatra, carregando a prole para a cidade grande…
De repente o portão, o padre, o canto comovedor, os garotos, as visitas, tudo corre para trás. Estou no trem.
Estou no trem!
Cheguei, enfim, à estação. Anos depois, saberei que era sexta-feira santa.

continua no próximo domingo.

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