O SACI
Capítulos 9, 10, 11 e 12
9 – A sucuri
— Um monstro! Acuda, saci! Um monstro com corpo de cobra e cabeça de boi!… — gritou Pedrinho, trepando de novo no guarantã com velocidade ainda maior que da primeira vez.
O saci foi ver o que era e voltou dizendo:
— É uma sucuri que acaba de engolir um boi. Desça que não há perigo. Ela está dormindo e dormirá assim dois ou três meses até que o boi esteja digerido.
Apesar da confiança que o saci lhe merecia, o menino foi pulando de árvore em árvore para só descer a cem passos dali. Mas como a tentação de ver a sucuri fosse grande, foi voltando, voltando, até chegar em ponto de onde pudesse observá-la à vontade.
Era das maiores que se poderiam encontrar, devendo ter pelo menos uns trinta metros de comprimento e a grossura da cabeça de um homem. Pedrinho não podia compreender como um boi inteiro pudesse caber dentro dela.
— Muito simples — explicou o saci. —A sucuri enlaça o boi, quebra-lhe todos os ossos e amassa-o de tal maneira que o torna comprido como chouriço. Depois cobre-lhe o corpo de uma baba muito lubrificante e começa a engoli-lo sem pressa. Vai indo, vai indo, até que dá com o boi inteiro no estômago; só ficam de fora a cabeça e os chifres. E leva meses assim, até que a digestão se complete. Quando está nesse estado, a sucuri não oferece perigo nenhum, porque fica inerte, caída em estado de sonolência.
E não foi só essa cobra que Pedrinho conheceu naquele dia. Logo depois percebeu um ruído seco de guizos. Era uma cascavel que passava; muito aflita, como que fugindo de algum inimigo.
— Que será que a está perseguindo? — indagou ele.
— Alguma muçurana — respondeu o saci. — As muçuranas são cobras sem veneno que só se alimentam de cobras venenosas. Lá vem uma!
De fato, uma muçurana de cor escura surgiu no rastro da cascavel, que foi alcançada logo adiante. Luta terrível! Pedrinho nunca imaginou um tal espetáculo. A muçurana enleou-se na cascavel e as duas rebolaram no chão como minhocas loucas. Muito tempo estiveram assim. Finalmente a cascavel morreu sufocada, e a muçurana engoliu-a inteirinha, apesar de serem ambas do mesmo tamanho.
— Que horror! — exclamou Pedrinho. — A vida nesta floresta não tem sossego. Só agora compreendo porque os animais selvagens são tão assustados. A vida deles corre um risco permanente, de modo que só escapam os que estão com todos os sentidos sempre alertas.
— É o que os sábios chamam a luta pela vida. Uma criatura vive da outra. Uma come a outra. Mas para que uma criatura possa comer a outra, é preciso que seja mais forte — do contrário vai comer e sai comida.
— Mais forte só?
— Mais forte ou mais esperta. Aqui na mata todos procuram ser fortes. Os que não conseguem ser fortes, tratam de ser espertos. Na maior parte dos casos a esperteza vale mais do que a força. Os sacis, por exemplo, não são fortes — mas ninguém os vence em esperteza.
10 – A floresta
— Pois assim é — continuou o saci. — A lei da floresta é a lei de quem pode mais — ou por ter mais força, por ser mais ágil, ou por ser mais astuto. A astúcia, principalmente, é uma grande coisa na floresta. Está vendo ali aquele galhinho seco?
— Sim. Um galhinho como outro qualquer — respondeu o menino.
— Pois está muito enganado — replicou o saci. — Não é galho nenhum, sim um bichinho que finge de galho seco para não ser atacado pelos inimigos.
Pedrinho não quis acreditar, mas cutucando o galhinho viu que ele se mexia. Ficou assombrado da esperteza.
— Bem diz vovó que a mata é perigosa! Um que não sabe há de levar cada logro aqui…
— E aquilo? — perguntou o saci apontando para uma folha. — Que parece a você que aquilo é?
Pedrinho olhou; viu bem que era uma folha de árvore; mas como já estava ficando sabido nas traições da floresta, piscou para o saci e disse:
— Desta vez não caio na esparrela. Parece que é uma folha, mas com certeza é outro bichinho que se disfarça em folha.
E cutucou-a para ver se mexia. A folha, porém, não se mexeu.
— É folha mesmo, bobinho! — disse o saci dando uma risada. — Ainda é muito cedo para você “ler” a mata. Isto é livro que só nós, que aqui nascemos e vivemos toda vida, somos capazes de interpretar. Um menino da cidade, como você, entende tanto da natureza como eu entendo de grego.
— Realmente, saci! Estou vendo que aqui na mata sou um perfeito bobinho. Mas deixe estar que ainda ficarei tão sabido como você.
— Sim, com o tempo e muita observação. Quem observa e estuda, acaba sabendo. Aqui, porém, nós não precisamos estudar. Nascemos sabendo. Temos o instinto de tudo. Qualquer desses bichinhos que você vê, mal sai dos casulos e já se mostra espertíssimo, não precisando dos conselhos dos pais. Bem consideradas as coisas, Pedrinho, parece que não há animal mais estúpido e lerdo para aprender do que o homem, não acha?
O orgulho do menino ofendeu-se com aquela observação. Um miserável saci a fazer pouco caso do rei dos animais! Era só o que faltava…
— O que você está dizendo — replicou Pedrinho — é tolice pura sem mistura. O homem é o rei dos animais. Só o homem tem inteligência. Só ele sabe construir casas de todo jeito, e máquinas, pontes, e aeroplanos, e tudo quanto há. Ah, o homem! Você não sabe o que o homem é, saci! Era preciso que tivesse lido os livros que eu li em casa da vovó…
11 – Discussão
O saci deu uma gargalhada.
— Que gabolice! — exclamou. — Casas? Qual é o bichinho que não constrói sua casa na perfeição? Veja a das abelhas, ou das formigas, ou os casulos. Poderão existir habitações mais perfeitas? Todos aqui na mata moram. Cada um inventa o seu jeito de morar. Todos moram. Todos, portanto, têm suas casinhas, onde ficam muito mais bem abrigados do que os homens lá nas casas deles. O caramujo, esse então até inventou o sistema de carregar a casa às costas. É o mais esperto. Vai andando. Assim que o perigo se aproxima, arreia a casa e mete-se dentro.
— Casa, vá lá — disse Pedrinho meio convencido. — Mas aeroplano? Que bichinho daqui seria capaz de construir aviões como nós homens os construímos?
Outra risada do saci.
— Pedrinho, você está-me saindo tão bobo que até me causa dó. Aviões! Pois não vê que o avião é a mais atrasada máquina de voar que existe? Aqui os bichinhos de asas estão de tal modo adiantados que nenhum precisa de mostrengos como o tal avião. Todos possuem no corpo um aparelho de voar aperfeiçoadíssimo. Não vê que voam, bobo? Outro dia assisti a uma cena muito interessante. Eu estava perto duma lagoa cheia de patos, quando um avião passou voando por cima das nossas cabeças. Os patos entreolharam-se e riram-se. Você sabe, Pedrinho, que bicho estúpido é o pato. Pois mesmo assim um deles disse com muita sabedoria: “Parece incrível que os homens se gabem de ter inventado uma coisa que nós já usamos há tantos milhares de anos…”
— Sim — continuou Pedrinho — mas nós sabemos ler e vocês não sabem.
— Ler! E para que serve ler? Se o homem é a mais boba de todas as criaturas, de que adianta saber ler? Que é ler? Ler é um jeito de saber o que os outros pensaram. Mas que adianta a um bobo saber o que outro bobo pensou?
Era demais aquilo. Pedrinho encheu-se de cólera.
— Não continue, saci! Você está me ofendendo. O homem não é nada do que você diz. O homem é a glória da natureza.
— Glória da natureza! — exclamou o capetinha com ironia. — Ou está repetindo como papagaio o que ouviu alguém falar ou então você não raciocina. Inda ontem ouvi Dona Benta ler num jornal os horrores da guerra na Europa. Basta que entre os homens haja isso que eles chamam guerra, para que sejam classificados como as criaturas mais estúpidas que existem. Para que guerra?
— E vocês aqui não usam guerras também? Não vivem a perseguir e comer uns aos outros?
— Sim; um comer o outro é a lei da vida. Cada criatura tem o direito de viver e para isso está autorizada a matar e comer o mais fraco. Mas vocês homens fazem guerra sem ser movidos pela fome. Matam o inimigo e não o comem. Está errado. A lei da vida manda que só se mate para comer. Matar por matar é crime. E só entre os homens existe isso de matar por matar — por esporte, por glória, como eles dizem. Qual, Pedrinho, não se meta a defender o bicho homem, que você se estrepa. E trate de fazer como Peter Pan, que embirrou de não crescer para ficar sempre menino, porque não há nada mais sem graça de que gente grande. Se todos os meninos do mundo fizessem greve, como Peter Pan, e nenhum crescesse, a humanidade endireitaria. A vida lá entre os homens só vale enquanto vocês se conservam meninos. Depois que crescem, os homens viram uma calamidade, não acha? Só os homens grandes fazem guerra. Basta isso. Os meninos apenas brincam de guerra.
Pedrinho nada respondeu. Estava um tanto abalado pelas estranhas ideias do saci. Quando voltasse para casa iria consultar Dona Benta para saber se era assim mesmo ou não.
12 – O jantar
O sol já estava descambando e o menino sentiu fome.
Havia esquecido de trazer matalotagem.
— Amigo saci, estou sentindo uma coisa chamada fome. Mostre-me a sua habilidade em sair-se de todos os apuros, arranjando um jantar.
— Nada mais fácil — respondeu o capetinha. Gosta de palmito?
— Gosto, sim. Mas como poderemos derrubar uma palmeira tão alta para colher o palmito? Sem machado é impossível.
O saci deu uma risada.
— Não há impossíveis para mim, quer ver? — e metendo dois dedos na boca tirou um agudo assobio.
Imediatamente um enorme besourão, chamado serra-pau, surgiu do seio da floresta. O saci fez-lhe uns sinais e o besourão, voando para o alto duma palmeira de tronco fino, mas muito alta, abarcou a base do palmito entre os seus ferrões dentados como um serrote e começou a girar com grande velocidade, zunindo como um aeroplano — zunnn…
Em menos de cinco minutos o tronco da palmeira estava serrado, e o palmito, acompanhado da copa, veio com grande estardalhaço ao chão.
— Bravos! — exclamou o menino. — Nunca imaginei que nesta mata houvesse serrador tão hábil. Quero agora ver como você prepara o petisco.
— Muito fácil — disse o saci. — Fogo não falta. Tenho sempre fogo no meu pitinho. Panelas também não faltam. E só procurar por aí alguma casca de tatu. Água temos dentro dos gomos de taquara; basta rachar um ou dois. E para gordura, é só quebrar uma porção de coquinhos e espremer entre duas pedras o óleo das amêndoas.
— E sal?
— É o mais difícil; mas como há mel, você comerá palmito preparado sob forma de doce, que é ainda mais gostoso.
E assim foi feito. Em menos de vinte minutos estava diante de Pedrinho uma casca de tatu cheia de um doce de palmito muito bem preparado. O menino comeu a fartar e ainda teve uma sobremesa de amoras do mato, que o saci colheu ali mesmo.
— Há muito tempo que não como com tanto apetite! — comentou Pedrinho depois que encheu o papo. — Você é um cozinheiro ainda melhor que tia Nastácia, que é a primeira cozinheira do mundo.
E, dando tapinhas na barriga, pôs-se a palitar os dentes com um comprido espinho de brejaúva.
A tarde ia morrendo. Não tardou que Pedrinho visse brilhar no céu, por entre uma nesga aberta na copa das árvores, a primeira estrelinha.
Que coisa impressionante era a noite! Até aquele momento Pedrinho ainda não havia prestado atenção nisso. Noite em casa não é noite. Acende-se o lampião, fecha-se a porta da rua — e que é da noite?
Mas ali, oh, ali a noite o era de verdade -— das imensas, das completamente escuras, apenas com aqueles vaga-lumes parados no céu que os homens chamam estrelas…